Foi perante um salão nobre da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa completamente lotado que Bruno Lage deu, esta sexta-feira, uma palestra sobre periodização do treino em futebol. Durante hora e meia, o ex-treinador do Benfica não deixou nenhuma pergunta sem resposta, seguindo o tema de do evento, 'Caso de uma época com Mundial de Clubes FIFA 2025', que, no entender dos encarnados teve impacto na preparação desta época.
Como peixe na água, ou não fosse o setubalense, de 49 anos, um treinador saído do mundo académico, partilhou segredos da preparação deste 2025/26. Desde logo, revelou que seguiu o exemplo do Fazendense, em 2000/01, quando era preparador-físico da equipa técnica liderada por Jaime Graça. "Teve o torneio de Almeirim a meio da pré-época", lembrou, especificando que foi com base nessa experiência que se preparou o primeiro ciclo da temporada do Benfica, depois de um curto período de férias, que se seguiu à participação na competição que decorreu nos EUA.
"Tínhamos nove jogos e três objetivos: Supertaça, porque era um troféu e, pelo que tinha acontecido na Taça de Portugal, era uma questão de honra; a Liga dos Campeões, porque todos os jogadores e treinadores querem disputá-la e a há a responsabilidade financeira; e depois, claramente, o grande objetivo que é o campeonato nacional", recordou.
O tempo de preparação era curto. "Chegámos à conclusão que tínhamos 16 dias para preparar [a Supertaça]. E percebemos que, afinal, tínhamos de ter o jogo com o Fenerbahçe [na Eusébio Cup] em equação, porque podíamos defrontá-los na Champions. Tínhamos de dar tempo de jogo, criar ciclos de treino e recuperação. Começámos a organizar três momentos de competição, sempre com três dias de intervalo, jogando progressivamente", disse, com o ex-treinador do Casa Pia, João Pereira, atento entre os alunos de Mestrado em futebol.
Na altura, entrou um bluff em ação. "Houve muitas pistas que passámos que eram bluff, com ajuda dos nossos amigos da comunicação social. Disseram que não jogávamos a Supertaça e entrámos na onda. Era tudo bluff. No segundo dia, coloquei as bolas do Campeonato do Mundo, porque não queríamos que os jogadores ficassem pressionados. Não é que não quiséssemos jogar a Supertaça, mas queríamos tirar a pressão dos jogadores. Tivemos algumas lesões graves que condicionaram o plantel, como Manu e Bah, além dos que foram vendidos. Fizemos reforço da equipa consoante as nossas ideias."
A ideia passou por aumentar gradualmente o ritmo. "O primeiro jogo foi de 45 e o objetivo era manter toda a equipa junta, concentrada e focada. O segundo jogo, de 70 minutos. Jogámos contra a equipa sub-23 e, à tarde, com os sub-19. Foram dois jogos de 35 minutos cada. O que o Jaime [Graça] me dizia era que qualquer jogador com pouco de treino faz um jogo. O que difere é a forma de recuperar. Vai precisar de mais tempo. Debati-me internamente que o intervalo entre jogos devia ser cuidada. Não estou a dar indiretas a ninguém." E continuou: "O jogo três foi com o Estoril. Abordámos como um jogo normal. O quarto foi diante do Fenerbahçe. Uns jogadores fizeram 45 ou 65 minutos, outros X."
No entender de Lage, o pouco tempo de preparação não influenciou o lançamento de jovens, caso de João Veloso, titular na Eusébio Cup. "Não quero aprofundar esse tema e deixei-o escrito a quem de direito. O que se trata é de apostar e sentir que os jogadores têm competência para jogar no Benfica. O leque de jogadores para o Mundial e o início da época tiveram gente com muita qualidade a treinar. Contra o Fenerbahçe jogámos com o Veloso a titular."
Lage até recuou a janeiro de 2019, quando assumiu o comando técnico das águias pela primeira vez, substituindo Rui Vitória. "Não gosto muito do termo aposta, mas há seis anos promovemos o Tino, o Ferro, o Zlobin e fomos buscar o Adel [Taarabt] à equipa B. Estavam preparados para jogar na equipA", sublinhou.
Recuando uns meses, Lage lembrou o final da temporada passada, com o campeonato e a Taça de Portugal perdidos para o Sporting, e o arranque do Mundial. O tempo era curto para recuperar a equipa animicamente. "Não há receitas", expressão usada várias vezes durante a palestra. "Não houve tempo suficiente para a energia ser renovada. E era cedo para haver um ataque ao mercado", acrescentou. Mas um detalhe ajudou. "Só o simples facto de trocarmos o equipamento, de vermelho para branco, deu logo a ideia de que o que estava para trás era passado e era o início de um novo ciclo."
A atitude dos atletas também ajudou. "Foi um grupo fantástico de jogadores, profissionais. Os mais experientes, Nico [Otamendi] e Di María, e mais jovens, todos encararam a prova como um Mundial de seleção. Tínhamos jogadores em final de contrato e outros queriam sair."
Lage não teve dúvidas em apontar a "falta de tempo" como o "principal adversário" nestas situações. "Há um ano chegámos nas mesmas condições [de Mourinho]. Há algo que mudou nos períodos de seleção e, por incrível que pareça, o selecionador tem mais tempo de treino do que nós", disse, recordando: "Todas as equipas que estiveram no Mundial de Clubes tiveram apenas um jogo por semana em agosto. O Benfica foi a única que teve de disputar pré-eliminatórias."
Descontraído, Lage falou da sua experiência profissional e do que aprendeu ao longo da sua carreira. "O mercado de janeiro é o mais difícil de fazer. É preciso ter muito cuidado nessa altura", alertou, sem esquecer as chicotadas psicológicas. "Cheguei ao Swansea em janeiro. Há jogadores que competem pouco e, quando chega um treinador que quer mudar muita coisa, os suplentes passam a jogar mais. Ao terceiro e quarto jogos é muito complicado. Uma vez mais a recuperação é muito importante."
O exemplo do Benfica também foi dado, recuando ao ano passado. "O onze mais utilizado por Schmidt e o nosso eram completamente diferentes. O Álvaro [Carreras] é um exemplo. Tivemos de ter cuidado com ele. O Kökçü jogava como médio-ala, posição em que os movimentos e corridas eram diferentes ao que passamos. Isto são tudo preocupações."
Para Lage, o segredo é só um. "As costas vão ficando cada vez mais largas e vais passando tranquilidade aos jogadores. Eles têm de sentir que estão protegidos por ti, que os vais defender em tudo, mas tem de haver muita exigência. O Pavlidis tinha um rendimento muito bom, ele é um indivíduo excecional. Podemos conversar sobre tudo e provar que a única coisa que faltava era o golo. A partir do momento em que marcou ao Barcelona as coisas saíram com naturalidade."
Licenciado em Educação Física, Saúde e Desporto, com especialização em futebol, Lage falou da "experiência fantástica" em Inglaterra, quer como adjunto de Carlos Carvalhal, quer como treinador principal. "Não me lembro de preparar dois jogos iguais, a riqueza tática das equipas é muito grande", relatou, aconselhando os mais jovens a não terem pressa em chegar a principal, dando o seu exemplo, pois desempenhou várias tarefas com Carlos Carvalhal.
E não terminou sem deixar um olhar ao panorama atual dos treinadores. "Hoje há cada vez mais uma aposta no treinador português jovem. Estamos a passar por uma dificuldade muito grande que é o treinador da formação. Comecei na formação, mas hoje um treinador com 30 anos prefere ir para a 2.ª Liga ou Liga 3. Há muita gente nova que faz esse percurso. A formação vai pagar mais à frente por isso", alertou.
Por Nuno Martins