Contra-corrente

Pedro Brinca
Pedro Brinca Professor de Economia

Centralização e Redistribuição

Dificilmente haverá assunto de conversa no futebol português que gere mais consensos do que a centralização dos direitos televisivos. Os argumentos parecem à prova de bala: a negociação centralizada leva a um aumento das receitas e do equilíbrio competitivo. Diga-se em abono da verdade, que é uma receita seguida por quase todas as ligas europeias. Com a publicação a 25 de fevereiro do decreto-lei a determinar "a comercialização centralizada dos direitos televisivos e multimédia" dos jogos da Liga NOS e da Liga SABSEG, a ser implementado até à época desportiva de 2028/29, finalmente tornar-se-á uma realidade.  Mas tenho sérias dúvidas que seja a decisão acertada.

A Liga Portuguesa tem algumas características relevantes que importa refletir: está inserida num país com um mercado de apenas 10 milhões de habitantes; com apenas duas cidades de dimensão europeia; em que a esmagadora maioria dos adeptos apoiam três clubes; e que tem níveis de rendimento dos mais baixos da Europa. Mais, a subida substancial dos prémios de participação da UEFA, fez com que passasse a ser esta, e não os direitos televisivos, a principal receita dos clubes portugueses que conseguem um acesso regular à Liga dos Campeões.

O que pode trazer a centralização? Aumento das receitas? Que espaço há para que elas aumentem? É bom lembrar que em termos de receitas televisivas, os clubes portugueses geraram em 2016/17 cerca de 190 milhões de euros, ficando atrás apenas das 5 ligas principais (Inglaterra, Espanha, Itália, Alemanha e França), e da Turquia, país com menor poder de compra mas com oito vezes mais habitantes. Se tivermos em linha de conta as receitas por habitante,  Portugal ultrapassou a Alemanha e a França. Fica atrás apenas da Inglaterra e Espanha (57.91 e 31.76 EUR per capita respetivamente) e em empate técnico com a Itália (18.68 EUR vs 18.43). Fica mesmo assim a frente de países como Holanda e Bélgica - países com tradição de futebol, com mais população e, acima de tudo, com muito maior poder de compra.

Mas quanto podem os Portugueses pagar? Se tivermos em linha de conta os rendimentos de cada país (receitas televisivas sobre o PIB), Portugal dispara relativamente a Itália e perde apenas para Espanha e Inglaterra (que ficam 29% e 55% acima respetivamente). É bom lembrar que estes países geram receitas substanciais nos mercados internacionais: têm várias equipas que disputam de forma regular a mais importante prova do velho continente  e têm uma diáspora com importante poder de compra. Portugal não tem nem uma coisa nem outra. Tem diáspora de facto, mas numa região em que dificilmente vende – Brasil – e noutra sem poder de compra – África. Ao mesmo tempo, não tem uma liga competitiva que atraia estrelas que possam competir com o mediatismo das principais ligas europeias. O português já gasta (e muito!) em futebol. Será que a centralização pode gerar mais receitas ao ponto de tornar a Liga Portuguesa tão atrativa como a Espanhola ou a Inglesa? Para que possa disputar com estas os mesmos mercados internacionais, onde se afirmam? Parece-me utópico.

Para que serve a centralização então? Eu acredito que a negociação centralizada possa gerar mais receitas no global. A questão é quão mais. Aliás, no contexto atual de pandemia e a ver pelos recentes resultados da negociação do último ciclo de direitos televisivos da Bundesliga, a questão estará mais próxima do quanto é que a negociação centralizada poderá fazer para evitar que a queda das receitas seja mais acentuada. Pelos números acima, parece-me que o efeito será pequeno. Onde o efeito poderá ser mais importante, será precisamente no aumento da competitividade. Como? Através da redistribuição.

É aqui, na redistribuição, que jaz o meu principal problema com a negociação centralizada dos direitos. Será muito difícil que essa centralização não traga consigo algum elemento redistributivo, uma vez que vendendo como um pacote, torna-se difícil separar o efeito clube do efeito competição. Aliás, isso mesmo foi dito pelo Secretário de Estado da Juventude e do Desporto: "o objetivo desta iniciativa legislativa é (…) [também tornar] a distribuição das receitas mais equitativa".  Essa redistribuição, sendo mais ou menos forte, terá de facto o poder de aumentar a competitividade interna da Liga, transferindo recursos dos três grandes para os restantes clubes. Com mais recursos e mais competitivas, as equipas ditas pequenas poderão bater mais frequentemente o pé aos grandes, agora com menos recursos, e aumenta o grau de incerteza dos jogos e com isso o interesse.

Ou não. É bom lembrar que em Inglaterra, mesmo o Leicester está situado numa cidade, com o mesmo nome, que seria a terceira cidade Portuguesa em população. Os seis clubes que tradicionalmente lutam pelo título em Inglaterra estão em cidades cuja população somada dá um total de cerca de 10 milhões. A média de espetadores dos jogos da Premier League foi, em 2016/17, de quase 38 mil espetadores. Ou seja, cada clube tem uma base de adeptos por si só que gera receitas e cuja possibilidade de vencer pode alimentar de forma substancial a capacidade de gerar receitas. Tondela tem menos de 5.000 habitantes, num município que não atinge os 30 mil. Teve uma média de 2.373 espectadores nos jogos em casa. Espectadores esses que são, que me perdoem os tondelenses (onde me incluo, como adepto, conterrâneo e ex-jogador), na sua quase totalidade adeptos ferrenhos dos três grandes. Não é óbvio para mim que, em termos de receitas, as últimas partidas que o Benfica jogou das quais ganhou poucas, tenham gerado mais receitas para os respetivos adversários pelos resultados positivos que tiveram, mesmo que tudo somado, que aquelas que o próprio Benfica perdeu. Desconfio mesmo que seja precisamente o oposto. E por uma diferença significativa.

Mas nem será este o maior problema com a redistribuição. O grande problema estará na competitividade internacional das equipas que participam na Liga dos Campeões. Portugal tem tido uma relevância desportiva na Europa nos últimos 10 anos que não encontra facilmente uma justificação na sua dimensão económica. Temos beneficiado da capacidade singular de comprar (e formar) jovem talento que não tem espaço nas principais equipas da Europa, para depois o potenciar e vender para essas mesmas equipas. Sofreu com o fim dos third party ownership contracts (TPOs), que limitou a capacidade que vinha demonstrando de contratar o melhor talento potencial que havia em mercados como o da America do Sul. Não obstante, tudo se torna ainda mais difícil se a redistribuição significar perdas financeiras para os clubes que disputam as competições europeias de tal forma que possa levar a perdermos a capacidade de atingir algum nível de exposição internacional. É muito mais difícil vender jogadores com preços elevados se não tivermos, pelo menos alguma, visibilidade nas provas europeias. Nesse sentido, a redistribuição, quanto mais significativa for, mais pode pôr em causa esse posicionamento. Veja-se mais, uma vez, Bélgica e Holanda, com população e poder de compra superiores e centralização dos direitos televisivos mas que, com honrosa exceção do Ajax recentemente, os respetivos clubes não têm tido performances de forma consistente na Europa nos últimos 10 anos que sejam comparáveis às dos clubes portugueses. Desde 2003/04, apenas por uma época Portugal esteve atrás da Holanda no ranking de clubes da UEFA, sendo que nunca esteve atrás da Bélgica. Sem centralização.

Em suma, o que é bom para os outros não quer dizer que seja necessariamente bom para nós. Eu concordo que se a Liga Portuguesa tivesse capacidade para competir com a Inglesa ou a Espanhola, quer em termos de receitas domésticas quer em termos de receitas internacionais; ou se houvesse ganhos grandes de receitas a realizar que não obrigassem a que a redistribuição significasse retirar recursos as equipas que disputam as provas europeias; que a negociação centralizada traria vantagens evidentes. Mas não tem e não acredito que haja. E não tendo e não havendo, aumentaria a competitividade interna à custa da competitividade internacional das equipas que participam nas provas Europeias, principalmente na Liga dos Campeões. O que seria mau para todos. Mesmo para as outras equipas da Primeira Liga.
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