Um Estado de cócoras
1 Já tínhamos dado conta da aprovação, pela Assembleia da República, da Lei nº 92/2021, de 17 de dezembro, que revogou o ‘cartão do adepto’, eliminando a discriminação e a estigmatização em recintos desportivos, alterando a Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, que estabelece o regime jurídico da segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos. À parte a desfaçatez do título da lei, o que fica para o futuro é um exemplo acabado de como o Estado – aqui a Assembleia da República – num muito especial domínio, carecido de atenção, estudo e eficácia, deu o dito por não dito, num processo legislativo carregado de urgência. Ninguém vai confiar nas próximas intenções e declarações do Estado sobre a prevenção e combate à violência no futebol.
2 Hoje a nossa atenção recai sobre outro particular tema, o do combate à dopagem. Coube também a recente legislação proveniente da Assembleia da República debruçar-se sobre esta complexa e essencial matéria. Estamos a referirmo-nos à Lei n.º 81/2021, de 30 de novembro, que aprova a lei antidopagem no desporto, adotando na ordem jurídica interna as regras estabelecidas no Código Mundial Antidopagem e revogando a Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto, diploma que – de forma inédita, encontra em anexo a publicação integral do Código Mundial antidopagem, da Agência Mundial Antidopagem.
3 Estabelece o artigo 8.º, sobre a responsabilidade do praticante desportivo: “1 — Os praticantes desportivos são responsabilizados, nos termos previstos na presente lei, por qualquer substância proibida ou os seus metabolitos ou marcadores encontrados nas suas amostras orgânicas, bem como pelo recurso a qualquer método proibido.”
Adita o n.º 4: a responsabilidade prevista no n.º 1 é objetiva, pelo que a responsabilidade pela violação de norma antidopagem não depende da prova da intenção, culpa, negligência, ou da utilização consciente de substâncias ou métodos proibidos por parte do praticante desportivo. Significa este estado de coisas que é totalmente afastado um princípio fundamental do direito sancionatório, estabelecido a nível dos principais textos internacionais públicos e presente ainda na nossa Constituição: o princípio da culpa.
4 Recuperemos, a este respeito, alguns excertos de parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, que se ocupou de uma situação de dopagem em 2006 (Este parecer foi homologado por despacho do Secretário de Estado da Juventude e do Desporto de 27 de dezembro de 2006 e encontra-se publicado no Diário da República, II Série, nº 16, de 23 de janeiro de 2007, pp. 1862-1881).
Primeira afirmação: o conceito de responsabilidade objetiva surge, na terminologia jurídica, contraposto ao de responsabilidade com base na culpa. O princípio da culpa implica que determinado facto, tido como ilícito, “possa ser pessoalmente censurado ao agente, por aquele se revelar expressão de uma atitude interna pessoal juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exigências do dever-ser sócio-comunitário”. Tal princípio não prescinde, ao nível da imputação subjetiva da conduta ao infrator, da existência do dolo ou da negligência.
Segunda afirmação: a República Portuguesa baseia-se na dignidade da pessoa humana, constituindo um Estado de direito democrático (artigo 1.º e 2.º da Constituição da República Portuguesa). A pessoa é fundamento e fim da sociedade e do Estado, sendo inválido e inadmissível o sacrifício do valor e dignidade pessoal a benefício simplesmente da comunidade, do grupo ou da classe. “Neste sentido, a República é uma organização política que serve o homem, não é o homem que serve os aparelhos político-organizatórios”. Em direito penal, o princípio da culpa é uma exigência constitucional da dignidade da pessoa humana.
Terceira afirmação: tal exigência é transponível para o plano do direito disciplinar, sobretudo quando se está, como no caso de dopagem no desporto, perante sanções disciplinares suscetíveis de causarem ao agente, nos planos pessoal e patrimonial, consequências bem mais graves que as decorrentes de um leque muito extenso de outras infrações de natureza criminal. E a própria ideia ou conteúdo do Estado de direito democrático, apelando ao princípio da proporcionalidade, justifica a extensão não só ao ilícito de mera ordenação social, como também às sanções disciplinares, de alguns dos princípios fundamentais do direito criminal.
5 Perante este quadro, pasma-se como o Governo propõe uma tal lei, a Assembleia da República aprove – sem votos contra – e o Presidente da República a promulgue, tudo na maior.
6 E se tal não bastasse, em matéria de impugnação de sanções disciplinares (artigo 76.º), muito haverá a dizer dadas as manifestas fugas à jurisdição administrativa portuguesa.
Alguém se esqueceu – todos, no caso – que de acordo com o artigo 212.º (Tribunais administrativos e fiscais) da Constituição da República Portuguesa, compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (n.º 3).