Nunca devemos matar um sonho de criança. Ser ponta-de-lança da Seleção, ser treinador uma equipa na final da Champions (PlayStation não conta), ser presidente do nosso clube do coração, ou, para os 'wanna be' Jorge Mendes, ser o agente que trouxe para o campeonato português um médio-ofensivo da estirpe de Maradona ou Messi que faça esquecer, até quem sabe, João Mário.
Grandes pequenas razões que nos fazem sorrir só de recordar/imaginar e que o futuro, noventa e nove vezes em cem, encarrega-se de enterrar no abismo que separa o futebol sul-americano do futebol europeu. A presente, que aqui nos prende, não é exceção. Na abertura do último mercado de verão Alan Ruiz já não era um diamante perdido na América do Sul, nem sequer um 'Messi escocês'. Na prática, aos 23 anos de idade, foi uma escolha que não surpreendeu o mercado, que não seja pelo exotismo do valor da aposta. Jogador da geração de 93, era por demais conhecida uma evolução promissora pelas seleções jovens da azul celeste, que aliás, o haviam levado a uma tangente ao mais alto nível no campeonato... brasileiro.
Alan Ruiz é um jogador de armas, com um belíssimo pé esquerdo pleno de técnica e potência, em posse da bola no último terço, se lhe derem aquele tempo que ele entende ser só seu, pode provocar todos estragos que se lhe pedem. Passes de rutura mesmo por entre o buraco da agulha, como aquele que deu no segundo contra o Feirense, são a sua marca registada, numa demonstração de interpretação do jogo ofensivo muito acima da média. E que dizer dos remates de meia distância predominantemente enquadrados e cuja execução denuncia o evidente talento do jogador e a sua relação natural com a bola?
Este é o mundo de Alan Ruiz, uma circunferência de 30 metros algures entre a linha do meio campo e a grande área adversária. Um futebol só de uma baliza, de operários e artistas, todos com as suas funções bem definidas. Este é o espaço do 10 clássico, como aquele do tempo em que Manuel Fernandes capitaneava os verde e brancos em campo. Enfim, saudades desse jogador a quem não se lhe era pedido para defender, sem outras obrigações que o obrigassem à vida regrada de um profissional, a quem na volta do Natal todas as gramas a mais na balança lhe eram perdoadas.
Na verdade, o futebol está repleto de jogadores assim, aqueles a quem numa certa gíria alcunham de 'vacas', ora pela forma como pisam, ora por como lhe assentam os calções, ora porque pelo talento de que dispõem abusam da boa vontade dos treinadores mais teimosos que acreditam a toda a força no transformação da essência de qualquer jogador que lhes passe pelas mãos. É que para um jogador assim, ter uma carreira internacional na Europa, é preciso ter 'vaca'.
Sagrados sejam os adeptos que esperam por mais um pormenor de classe de um jogador que deixa a sua equipa a jogar com dez de cada vez que perde a bola.
Alan é ainda um jogador num mundo à parte, apenas no mundo da bola. A bola que trata bem quando a tem, sempre numa mesma cadência, quase num cortejo que promete logo a partir do primeiro toque. Mas haja alguém que lhe diga: "Agora está a jogar na Europa!" Assim que apanhou o avião em Buenos Aires o seu Mundo mudou.
Alan é jogador, é mesmo muito bom jogador, mas não o suficiente para o que custou, nem para o que até agora jogou. A qualidade está lá, mas parece dar sempre menos do que o que pode, se até parecer não poder mesmo mais a partir dos 70 minutos. É uma questão de tempo, mas também de espaço. No campo o espaço não é seu problema, tem os recursos técnicos mais do que suficientes para defender a sua mais-que-tudo em quaisquer circunstâncias, desde que esta role sobre a relva.
Pode ser que o Alan tenha sorte, de volta ao futebol do século XX, ele será com toda a certeza O Primeiro.
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