Contra a corrente

Ribeiro Soares
Ribeiro Soares

De Otto Glória a Jorge Jesus

Ao vencer a Taça Libertadores e, no dia seguinte, tornar-se campeão brasileiro, Jorge Jesus amortizou, em dois dias, uma boa parte da enorme dívida que Portugal tem para com o futebol brasileiro. Mas cremos que não vai ficar por aqui, como veremos adiante.

 
Otto Glória

Vários foram os treinadores brasileiros que orientaram clubes portugueses nos últimos 65 anos, mas terá sido o primeiro – Otto Glória – que deixou obra mais marcante.

Neto de portugueses, nasceu no Rio de Janeiro em 9 de Janeiro de 1917, onde viria a falecer em 4 de Setembro de 1986. Era treinador-adjunto do Vasco da Gama (o principal, Flávio Costa, também viria a trabalhar em Portugal, no FC Porto) quando foi contratado pelo Benfica, na tentativa de contrariar a esmagadora supremacia do Sporting, que vencera sete dos oito campeonatos disputados entre 1946/47 e 1953/54.   

Desembarcou em Lisboa no dia 24 de Junho de 1954 e, nas cinco épocas seguintes, revolucionou o futebol do Benfica e, por arrastamento todo o futebol português, alterando mentalidades, impondo organização e exigindo trabalho e disciplina. Na prática inaugurou o profissionalismo, criou o lar do jogador, passou a fazer concentrações e estágios, definiu regras rígidas para os jogadores e o próprio presidente estava proibido de entrar no balneário. No plano de jogo pôs de lado o WM e adoptou o 4-2-4, a "diagonal", que já se usava no Brasil.

Pode dizer-se que Otto Glória foi o braço direito do presidente Joaquim Ferreira Bogalho (15Mar52 a 30Mar57), o grande responsável pela transfiguração do Benfica, em que o Estádio da Luz (construído de raiz com o envolvimento de todos os sócios e inaugurado em 1 de Dezembro de 1954) foi o palco indispensável para o que conseguiu depois.

Nas primeiras 5 épocas – 1954/55 a 1958/59 – Otto Glória fez 2 "dobradinhas" (Campeonato e Taça, em 1954/55 e 1956/57) e mais a Taça de Portugal em 1958/59; saíu para o Belenenses e ganhou a Taça de 1959/60; treinou depois o Sporting (1960/61, a partir da 27.ª jornada; e 1961/62, saíu à 2.ª jornada, mas o Sporting fez a "dobradinha", com Juca); a seguir foi para o FC Porto (1964/65, 2.º lugar e derrotado pelo Benfica na final da Taça); e novamente o Sporting (1965/66, campeão).

Com o seleccionador Manuel da Luz Afonso, foi o treinador no Mundial de 1966 (3.º lugar, o maior feito da Selecção até então); voltou ao Benfica nas épocas de 1967/68 (3.º treinador, depois de Fernando Riera e Fernando Cabrita, acabou campeão e foi finalista da Taça dos Campeões, vencido no prolongamento, em Wembley, pelo Manchester United, 1-4), 1968/69 (nova "dobradinha", Campeonato e Taça) e 1969/70 (até à 8.ª jornada, 08Fev70, sendo substituído por José Augusto, que foi vice-campeão e ganhou a Taça ).

Voltou como Seleccionador 12 anos depois, no início da fase de qualificação para o Europeu de 1984, tendo orientado 8 jogos, entre 05Mai82 e 08Jun83, sendo substituído por uma equipa chefiada por Fernando Cabrita, que conseguiu um 3.º lugar a saber a pouco.

Em reconhecimento pelos serviços prestados, foi condecorado pelo Presidente da República com a Medalha de Prata da Ordem do Infante D. Henrique.                                          

 
Jorge Jesus

Precisamente um mês depois de Otto Glória ter chegado a Lisboa, nascia na Amadora, a poucos quilómetros do Estádio da Luz, em 24 de Julho de 1954, Jorge Fernando Pinheiro Jesus, filho de Virgolino António de Jesus, ex-jogador do Sporting,

Jogador mediano, começou também no Sporting e, como senior, disputou 12 jogos e marcou cinco golos entre 1973 e 1976. Representou mais 12 clubes, tendo jogado nove épocas na 1.ª Divisão. Estreou-se como treinador em 1990 e chegou à 1.ª Liga em 1995, tornando-se notado quando levou o Belenenses à final da Taça de Portugal em 2006/07 (Sporting, 0-1). Passou depois pelo Sp. Braga (2008/09, vencedor da Taça Intertoto), Benfica (6 épocas, 2009/15, 3 vezes campeão, 1 Taça de Portugal, 5 Taças da Liga, 1 Supertaça, 2 vezes finalista vencido da Liga Europa, com Chelsea, 1-2 e Sevilha, 2-4 gp), Sporting (3 épocas, 2016/18, 1 Supertaça) e Al Hilal, uma época (incompleta), antes de chegar ao Flamengo, em Junho passado.


Treinadores e jogadores brasileiros

Além de Otto Glória, outros treinadores brasileiros trabalharam em Portugal, com destaque para Luiz Felipe Scolari (seleccionador, finalista do Europeu 2004, semi-finalista do Mundial 2006, 74 jogos, 42 vitórias, 18 empates); também Dorival Knipel (Yustrich, 1955/56, "dobradinha", no FC Porto), Marinho Peres (1 Taça de Portugal pelo Belenenses), Otto Bumbel (1 Taça pelo FC Porto), Carlos Alberto Silva (bicampeão pelo FC Porto), Flávio Costa, Abel Braga, Gentil Cardoso (Sporting, 1963) e Paulo Autuori (Benfica, 1996/97) terão sido os mais representativos, até porque, alguns deles, deixaram a sua marca em vários clubes.

Além dos treinadores, muitos jogadores de categoria deram brilho aos nossos campeonatos, alguns dos quais chegaram Selecção Nacional (Pepe, Deco, Liedson, Lúcio Soares, Celso Matos); pelo contrário, apenas recordamos dois portugueses que jogaram algum tempo no Brasil, Bravo, ido do Estoril na década de 50 do Séc. XX e Fernando Peres, internacional do Sporting e Belenenses.

Há que referir que os treinadores brasileiros são de excelente categoria, mas como os campeonatos (quer o nacional, quer os estaduais) são muito competitivos e os dirigentes exigem resultados em pouco tempo, há grande mobilidade e muitas trocas durante as competições. Acresce que própria selecção ficou marcada pelo desastre que foi o Mundial 2014, não apenas pelo insucesso mas, principalmente, pela pesada derrota com a Alemanha (1-7).

Tudo isso fez vir ao de cima a situação de atonia a que chegou o futebol brasileiro, havendo dirigentes que encararam a hipótese de lançarem sangue novo através da contratação de treinadores estrangeiros, principalmente europeus.

Paulo Bento terá sido uma primeira tentativa, com efémera passagem pelo Cruzeiro (apenas 17 jogos, entre Maio e Julho de 2016), já que os resultados demoraram a aparecer e faltou paciência para esperar. Jorge Sampaoli (argentino com passagem pela Europa) veio a seguir e Jorge Jesus apareceu no momento exacto e no clube certo para resistir a um tímido começo e à guerra que lhe foi movida pelos seus pares brasileiros.

 

Jorge Jesus e Otto Glória

Acontece que Jorge Jesus tem algumas características que exornavam Otto Glória e também, de certo modo, Scolari: empenhamento total na profissão, experiência cimentada em anos de competição ao mais alto nível, bons psicólogos, disciplinadores mas também sabendo ser bem humorados e paternalistas, com momentos de descontracção; e até uma especial predilecção pelo basquetebol, onde foram buscar algumas ideias que aplicam no futebol.

Mas, principalmente, a percepção correcta da necessidade de organização, disciplina, trabalho, profissionalismo e, também, de permanente estudo e actualização com novos conceitos; e sucede também que Jorge Jesus pôde contar com alguns jogadores regressados da Europa (Raphinha, Filipe Luís, Diego), com hábitos de trabalho diferentes, que em ambiente de balneário puderam incentiver os menos habituados a tais exigências, levando-os a aceitá-las com naturalidade.

E, tal como Otto Glória, que no Benfica só teve jogadores portugueses, a equipa do Flamengo que disputou a final apenas tinha dois estrangeiros, mas a falarem espanhol, que Jesus entende…

 

Tal como o sucesso imediato de Otto Glória – Campeonato e Taça logo na primeira época –, ajudou a fazerem escola os procedimentos que preconizou e desenvolveu, não apenas no Benfica mas nos outros três grandes que treinou a seguir, sem esquecer que a última despedida (em 1983), aconteceu quase trinta anos depois de chegar ao Benfica; também a meteórica passagem à prática das ideias de Jorge Jesus, com os resultados que estão a fazer furor no clube com maior implantação, a nível popular, em todo o mundo, irá ter como resultado, estamos certos, uma autêntica revolução no futebol brasileiro, abrindo a porta a muitas outras contratações de treinadores eurpeus, nomeadamente portugueses, que têm espalhado o seu saber por todo o mundo.

Em termos meramente subjectivos, ficará então completamente liquidada a enorme dívida do futebol português para com o futebol brasileiro.

Como já ouvimos alguém dizer, o Brasil irá redescobrir o seu futebol, adaptando-o às ideias que há muito são aplicadas em todo o mundo. Mesmo que Jorge Jesus opte por procurar novos rumos que lhe permitam atingir os ambiciosos objectivos que traçou – e está a atingir –, a semente está lançada e o futebol brasileiro vai mudar e voltar rapidamente ao esplendor de outrora. E  Jorge Jesus será sempre recordado como o grande responsável pela mudança, tal como Otto Glória foi em Portugal.

 

*Antigo colaborador de Record (1991/97) e último Director da Gazeta dos Desportos (1995); escreve segundo a antiga ortografia
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