Londres, 11 horas e 55 minutos, Inês Henriques com 4.05.56 bate o recorde mundial dos 50 Km Marcha e torna-se campeã Mundial na primeira vez que a distância integra o programa dos campeonatos mundiais.
A histórica vitória da atleta lusa é para todos aqueles que acompanham minimamente o desporto nacional algo extremamente previsível.
O feito incrível de Inês Henriques é uma vitória em todo o seu esplendor. Uma vitória da atleta, do seu treinador e da equipa de marcha da Federação Portuguesa de atletismo, do Desporto Português, de Portugal, do Atletismo (provou que as mulheres podem fazer com qualidade esta distância e que é imperativo estar em Tóquio 2020) e da igualdade de género. A integração dos 50 Km Marcha dá a justa paridade entre homens e mulheres do principal e mais mediático desporto olímpico. Sem dúvida algo muito importante a transmitir à sociedade. Que as mulheres tem os mesmos direitos que os homens, não o aceitar é por em causa todos os valores olímpicos que Pierre Cobertin criou em finais do século XIX.
Nada acontece por acaso, a vitória de Inês Henriques é a cereja no topo do bolo de um trabalho de mais de 30 anos.
A primeira grande vitória da marcha portuguesa foi quando em 1991, Susana Feitor se tornou campeã Mundial Júnior. Desde aí até agora a marcha transformou-se inequivocamente como o maior orgulho desportivo de Portugal.
A selecção feminina de Marcha tem no seu palmarés um título colectivo de campeã do Mundo, uma vez vice-campeã do Mundo, uma medalha de bronze, 3 quartos lugares nos últimos 10 anos. Portanto, resumindo, nos últimos 10 anos, não existe Taça do Mundo de Marcha sem Portugal no Top4!
O mérito vai todo para a equipa técnica de Marcha da Federação Portuguesa de Atletismo. Com um sistema que permitia captação de talentos e integração dos mesmos com atletas consagrados, Portugal conseguiu produzir uma competitiva interna que levou à criação de vários diamantes como Susana Feitor, Ana Cabecinha, Inês Henriques e Vera Santos. Um país pequeno com 10 milhões de habitantes tinha 4 atletas com mínimos A para o Mundial, lutava em taças do Mundo com a Rússia e com a China.
Porque é que tudo isto aconteceu? Porque se percebeu que a marcha era algo que Portugal tinha imenso potencial, só lhe faltava explorar.
Ora, vejamos. Na década de 80 várias foram as glórias do atletismo português, a nível individual ou colectivo nas provas de meio-fundo e fundo. Na mesma década Joaquim Agostinho brilhava pelas mais emblemáticas estradas do ciclismo Mundial. Historicamente por exemplo Portugal é a terceira maior potência europeia da Canoagem de Maratonas.
Tiago Ferreira é o actual vice-campeão Mundial de Maratona de ciclismo de Montanha e em 2016 foi campeão do Mundo.
Portugal tem um enorme potencial em todas as provas de resistência. Porque é algo que faz parte do nosso ADN! Um país de pessoas lutadoras, que enfrentam os desafios, que testam os seus limites e que tem uma capacidade de sofrimento ímpar para tentar alcançar feitos épicos. Foi assim quando quisemos descobrir o Mundo foi assim ontem que Inês Henriques marchou os 50 KM e deu o único recorde do Mundo dos Mundiais de Londres.
A capacidade ou o talento como quiserem é na minha opinião menos de 5% da razão do sucesso para algo, seja na vida seja no desporto. O mais importante são os outros 95%.
Nesses estão inevitavelmente incluídos: o investimento, a mentalidade vencedora e a capacidade de sofrimento.
No investimento, a Federação Portuguesa de Atletismo, que investiu e criou estruturas para que jovens em Portugal pudessem fazer marcha. Onde pontifica o enorme técnico Jorge Miguel, pai de todos os sucessos de todos os principais ícones da marcha nacional. Na mentalidade vencedora, a determinação em fazer algo que orgulhe e represente Portugal da melhor maneira. Não assobiar para o lado e dizer que somos apenas um país de futebol e que os outros é que têm cultura desportiva. Mas sim, FAZER ALGO POR PORTUGAL! Preparar mentalmente os atletas para vencerem e para olharem olhos nos olhos da Rússia e da China e mostrar que Portugal tem um valor incrível para mostrar a todo o mundo. Na capacidade de sofrimento o investimento diário que os atletas, treinadores e outras pessoas envolvidas tem que fazer para obter as tais glórias que os mais distraídos pensam ser apenas utópicas. As horas de privação com a família, o sofrimento diário no treino, abdicar de muita coisa na vida em prol dum objectivo. Treinar quando não queremos, sofrer e ultrapassar lesões, sofrer e ultrapassar os maus resultados sempre com um objectivo em comum. Trabalhar, dedicar e lutar para um dia conseguir chegar ao topo da montanha, em prol dum sonho, em prol duma causa, em prol deles mesmos, em prol de PORTUGAL!
Ontem foi a prova, por demais evidente de que PORTUGAL É GRANDE e tem valor. Quando existe vontade, quando existe trabalho, quando existe capacidade de todos juntos pormos as nossas diferenças de lado e lutar-nos por nós.
Somos, infelizmente, de longe o país da Europa (dentro daqueles com mais de 30 anos) e com mais de 2 milhões de habitantes com menos medalhas olímpicas. Com 24 medalhas olímpicas ocupamos o último lugar destacado. Se tirarmos a Irlanda, o antepenúltimo país é a Áustria com 87 medalhas! Somos assim tão fracos para sermos os piores e o antepenúltimo ter quase 4 vezes mais medalhas que nós.
Se somos assim tão fracos, como conseguimos ser campeões europeus de futebol (principal desporto do Mundo), ser a única selecção europeia a apurar-se para os quartos de final dos últimos 6 europeus, ter campeões olímpicos e medalhas colectivas no Atletismo (principal desporto olímpico) em algumas das suas principais provas (Maratona).
Como é que conseguimos o mais difícil? Vencer no futebol. E nas Maratonas que são das provas mais vistas dos Jogos Olímpicos.
Porque simplesmente o atletismo e o futebol tem algo em comum. Existiu investimento e vontade de valorizar o país.
O diagnóstico está feito e é simples. Sem investimento não existem resultados. A Espanha antes de 1992 tinha 8 medalhas olímpicas, nos últimos 24 anos conquistou 140!
Nós portugueses não somos pequeninos, nem inferiores, para ficar contentes com uma, duas ou 3 medalhas em Jogos Olímpicos. Temos valor e potencial para em 2040 ganhar mais de 5 medalhas. Evidentemente que os resultados não aparecem da noite para o dia, é necessário investimento.
Já progredimos bastante. Modalidades como a Canoagem, Ténis de Mesa, Surf, Rugby 7, Trampolins conseguiram resultados de top que no século passado era impossível. Pois no século XX apenas em Futebol e Meio-Fundo e Fundo tivemos prestações de qualidade em provas de equipas.
E é essa evolução que precisamos de continuar a fazer no desporto e na sociedade.
A marchar para valorizar as modalidades e o que temos para nos tornarmos um país com melhores resultados desportivos em mais modalidades.
A marchar para valorizar sermos o terceiro país mais seguro do Mundo e o país com a melhor segurança e higiene alimentar do Mundo.
Sem valorização e orgulho não existe vontade de investimento e sem investimento não existem resultados.
No desporto e na sociedade temos muita coisa para evoluir e não é com o típico saudosismo lusitano que melhoramos as coisas.
A Inês Henriques não arranjou desculpas, nem fatalismos, agarrou-se às suas potencialidades e valorizou-se. Marchando nas estradas marchando na vida pelo seu exemplo de dedicação.
Todos nós podemos marchar gloriosamente e construir algo melhor. Basta querermos. Mas na verdade quem é que está disposto a marchar no desporto e na vida como a Inês Henriques?