UTMB: A experiência de Inês Marques no CCC
Atleta portuguesa foi décima colocada e conta a Record, na primeira pessoa, como viveu a prova

















Volvidos dois anos após a estreia nos trilhos do Mont Blanc, no OCC (Orsières, Champex-Lac, Chamonix) regressei agora para correr os 100km do CCC (Courmayeur, Champex-Lac, Chamonix).
Courmayeur (o primeiro "C"), em Itália, é o local de partida. Para lá chegar, vindos de Chamonix, temos de atravessar o Túnel do Mont Blanc, com uma extensão de 11.6km e com medidas de segurança estritas (em 1999 ocorreu um acidente, com 39 vítimas). O tráfego era grande àquela hora devido à prova e comecei a ficar cada vez mais nervosa! Nenhuma "power song" me tranquilizava. Não via a hora de ser a nossa vez de entrar e de, literalmente, ver a luz ao fundo do túnel!
Não chegámos muito cedo, pelo que praticamente não aqueci. Pode haver quem pergunte: "Mas é preciso aquecer para uma prova de 100km?!" Eu, pelo menos, já não o dispenso.
Devido à minha pontuação do ranking da ITRA consegui partir da linha da frente. Muitas caras conhecidas. O nervoso miudinho fazia-se sentir. O meu amigo Hélio Fumo partiu ao meu lado e trocámos olhares de "boa sorte". Na contagem decrescente, arrepiei-me!
A partida é alucinante! Faço o primeiro km a 4’18’’ e já nem vejo o grupo de mulheres da frente. Decido acalmar-me, pois tenho 100km pela frente. A primeira subida foi logo um teste de fogo – 9km com 1400m de desnível positivo! Seguia acompanhada por um português, o António Freitas. Mesmo que nunca tenhamos conversado antes, sente-se a cumplicidade de irmos com um dos nossos. Embora animada, comecei a sentir os efeitos da altitude: ritmo cardíaco acelerado, má-disposição. Quando atingi os 2500m de altitude só me apetecia desistir, mas ao chegar ao Refúgio Bertone dei de caras com a minha equipa de apoio (João, pai e mãe) e liguei o turbo da motivação!
Até Arnouvaz, aos 26km, foi um pulinho. Pude desfrutar de paisagens de cortar a respiração, que nenhum hotel de 5 estrelas seria capaz de proporcionar. Senti-me a Heidi, livre e feliz, mesmo carregando uns quantos quilos às costas.
Segue-se a subida do Grand Col Ferret. Duríssima, mas mágica! Já lá tinha estado a apoiar os meus pais no UTMB há três anos atrás (dizem que filha de peixe, sabe nadar). No topo situa-se a fronteira entre Itália e Suíça, sinalizada com um balão que nos faz sonhar!
A descida até La Fouly é muito corrível, mas às dores nos pés juntaram-se as dores de barriga e não fui tão rápida como gostaria. Não consegui guardar os bastões, pois o cinto descoseu-se. Vinha num grupo de quatro raparigas, mas só pensava em correr ao meu ritmo e não me preocupar com a classificação.
Volto a avistar os meus pais e o João, abasteço, recebo palavras calorosas dos voluntários (são espectaculares!) e sigo motivada pelos trilhos suíços, que são magníficos! As montanhas não têm nacionalidade, mas vão-se notando as diferenças. Há um troço de estrada entre as casas e tudo parece estar arranjado ao pormenor. Vou encontrando muitos caminhantes, famílias inteiras, que me aplaudem e chamam pelo nome (levamo-lo escrito no dorsal), com os mais variados sotaques.
A subida para Champex-Lac (o segundo "C") foi partilhada com a atleta alemã Simone, que se recordava de correr comigo, este ano, no Campeonato do Mundo em Miranda do Corvo e que me revelou que guarda muito boas memórias do nosso país!
Chego ao primeiro abastecimento com assistência externa, aos 55km. Tinha o João à minha espera, que me conhece melhor que ninguém e que foi incansável! Senti-me uma verdadeira profissional com a toalha da Prozis fresquinha à volta do pescoço enquanto comia pão com presunto e com o "banho" que me dava com a esponja (que guardei da Maratona de Sevilha) antes de sair para enfrentar o calor.
Ao contrário do que aconteceu quando corri o OCC, o céu estava limpo. São Pedro (qual será o santo da montanha?) não boicotou a prova! Consegui ver o imenso lago em Champex.
A partir daqui conhecia praticamente o caminho, mas não foi por isso que foi mais fácil. Já não conseguia comer as barras, os géis entravam a custo e já só pensava nas sandes dos próximos abastecimentos. Tentei concentrar-me na respiração, na cadência da corrida/caminhada e no movimento dos bastões. Mas rapidamente ficava completamente absorta, contemplando a paisagem e sentindo a paz da montanha. Até que o silêncio era interrompido por barulhos ao fundo. Primeiro pensei que eram apoiantes no meio da montanha, contudo, à medida que me ia aproximando percebi que os "incentivos" vinham das vacas alpinas! Passei com alguma precaução … os chocalhos que estão à volta do seu pescoço são do tamanho da minha cabeça!
Chegada a Trient, com 70km nas pernas. Vejo a minha mãe ao fundo, irrequieta. Vibra mais com as minhas provas do que qualquer outra pessoa! Depois oiço o meu pai, o meu companheiro de aventuras! Entro no abastecimento e lá está o João a acenar-me. Demoro um pouco menos do que no anterior e saio revigorada. O João, além de exímio a prestar apoio, tem sempre as palavras certas para me incentivar a prosseguir caminho. Saio desta vila pacata, com a sua característica igreja cor-de-rosa, pensando que já "só" faltam duas subidas.
Durante a subida começou a trovejar e temi que tivesse de "sacar" do material obrigatório das costas, mas não foi mais do que uma chuva "molha-parvos" (aqueles que passam horas na montanha, enquanto podiam estar na praia!).
A descida para Vallorcine é brutal. Observo um rebanho numa encosta tremendamente íngreme e penso: "as ovelhas do Mont Blanc são mesmo rijas!". De repente, estou perante um pôr-do-sol magnífico e não consigo pensar em mais nada…
Comparado com os abastecimentos anteriores, Vallorcine foi um "pit-stop", pois estava a lutar pelo TOP10 feminino! Bebo recovery e água com gás. Um último adeus e um aperto no coração. Sigo com a sandes na mão. Dica para comer em andamento: vão misturando com água! Mas que belo jantar!
Consigo impor um bom ritmo na zona plana, recuperando duas posições e passando para 9ª classificada. Mesmo durante a noite, reconheço a Hillary Gerardi, que me dá um abraço apertado!
Mesmo antes de começar a subida para o Tête Aux Vents volto a ver os meus apoiantes, super entusiasmados com a minha recuperação. Mas ninguém me tinha preparado para o que aí vinha. Uma subida demolidora, com pedras, socalcos, degraus, sempre a pique! Sinto-me cansada, tento ajudar com os bastões, mas às vezes até atrapalham. Quase no final da parte mais íngreme, olho para trás e vejo um ziguezague de luzes, que bela imagem! Porém, ao olhar em frente, apercebo-me que ainda há luzes mais acima e que não são estrelas. A subida ainda não tinha terminado. A descida ainda é pior do que a subida, demasiado técnica para quem já leva 90km! Tento lembrar-me de levantar os pés do chão, mas não me livro de dar uns quantos pontapés nas pedras. Balanço, mas não caio, o que, para quem me conhece, é uma vitória! Entretanto, passa por mim a Holly Page, uma atleta do skyrunning, completamente louca a descer. Sabia que não ia conseguir acompanhá-la. Faço a última descida desde La Flégère com receio de ser ultrapassada por outra rapariga e perder o 10º lugar. Aperto um bocadinho e, finalmente, entro na estrada que vai dar a Chamonix (o terceiro e derradeiro "C").
Vejo a minha mãe e o Romeu Gouveia, que correm um pouco ao meu lado. Segundo eles, ia a correr a 4’30’’/km. Devia ser a adrenalina de chegar ao epicentro do trail!
A nós, junta-se o João e tento conter a emoção!!!
Últimos metros. A sensação de percorrê-los a tocar na palma da mão dos que assistem à minha chegada (já são 23 horas, 22 horas em Portugal) é indescritível! O meu pai à minha espera na meta. Encosto-me a ele, exausta.
100km! Três países! 14horas! 10º lugar feminino!
Mont Blanc conquistado!
Sonho cumprido…
(E como não bastaram os kms da prova, no dia seguinte, ainda fiz uma caminhada nocturna de 15km por Genebra, enquanto aguardava pelo avião de regresso a casa. Recuperação activa ou, então, uma grande dor de pernas! :D)
A finalizar, um agradecimento especial aos meus patrocinadores
- Berg Outdoor
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- Suunto Portugal