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ALUT - Algarviana Ultra Trail: A experiência de Rui Sequeira

Atleta português foi o segundo na edição deste ano, com um tempo que pulverizou o recorde do ano passado

O meu projeto ALUT teve início nos primeiros dias do ano de 2019, tinha o desejo de voltar a uma distância acima das 100 milhas, que é em trail a distância mais icónica para todos os apaixonados da corrida de montanha. Tinha conseguido concluir em 2018 o Tor de Geants no Alpes, mas com um resultado bem abaixo das minhas expectativas pessoais (talvez estivessem demasiado elevadas). E portanto tinha a ambição de provar a mim próprio que, tendo as mesmas condições de treino que os restantes atletas, poderia ser tão competitivo como os outros.

A escolha do ALUT foi portanto bastante natural, atravessava o país de Este a Oeste, passando por algumas das serras do interior algarvio. E não sendo uma típica prova de trail, dado o pouco desnível acumulado e os inúmeros segmentos em estradões rolantes, não deixava de ser um desafio enorme, tendo em conta os 300km do trajeto e a necessidade de gerir muito bem os diferentes aspetos da prova.

Este foi o espírito com que desenhei o calendário de provas de 2019. Um plano baseado em provas com perfis de alguma forma semelhantes ao ALUT, que me permitissem treinar e testar tudo antes do grande desafio do ano. Foi com este foco que as provas e os treinos foram passando (grande parte deles de madrugada) e que o grande dia acabou por chegar.

Apesar de a distância não ser propriamente novidade, não consegui deixar de sentir as normais  "borboletas" na barriga, enquanto me preparava para arrancar do cais de Alcoutim. Creio honestamente que todos os participantes partilhavam essa energia, mas também o receio do que iríamos encontrar nas horas seguintes. Uma coisa era certa, o desafio era enorme e muito provavelmente alguns de nós não iriam chegar ao fim, mas a organização estaria lá para nós.

Assim, a partida aconteceu pelas 16h30 naquela última quinta-feira de novembro. As previsões meteorológicas não podiam ser melhores, iam estar dias frescos e sem chuva. Ótimo portanto para correr.

O ritmo logo imposto pelos primeiros atletas era bastante rápido. Nos primeiros sectores acabei por seguir no grupo da frente, e uma vez que a primeira noite iria chegar rápido, achei que seria melhor e mais seguro seguir acompanhado na etapa noturna. Por diferentes razões, ao início da manhã de sexta-feira já só havia três atletas no grupo da frente (eu, o João Oliveira e o Bruno Bondoso), dos cinco que tinham chegado juntos à primeira base de vida em Furnazinhas. Mas também este trio não durou muito, com o Bruno a passar por dificuldades e a ter que abrandar o ritmo.

Por volta dos 150km de prova, aconteceu-me o primeiro percalço. Seguia com o João Oliveira (aquele que é uma das referências para mim neste tipo de provas), quando nos aparecem dois cães e ao tentar afastá-los, um deles morde-me a coxa. Não estava a acreditar, aquele momento poderia significar o abandono da prova. Felizmente o cão mordeu por cima dos calções, que acabaram por me proteger de males maiores. Apesar de ter um pequeno hematoma, os dentes não tinham rasgado a pele, pelo que conseguir estabilizar emocionalmente e voltar ao registo certinho e consistente.

No entanto, e já por volta dos 170km de prova, acontece o segundo percalço. Seguia com o João Oliveira, quando cometemos um "pequeno" erro de navegação que nos custou grande parte do avanço que levávamos para o Paul Giblin. No topo de uma subida, seguimos em frente a descer, talvez fosse já o nosso subconsciente a querer descer, quando na realidade o caminho certo era um estradão à direita. Quando nos apercebemos, já tínhamos percorrido quase 1km, pelo que tivemos que voltar atrás e para agravar, a subir. Foi um momento difícil, perdemos sensivelmente 30min. Voltando ao trilho certo, acabámos por descer para Silves em bom ritmo, mas a nossa vantagem tinha-se esfumado. Em Silves, parámos e abastecemos bem para atacar a subida à Picota.

E neste momento dá-se, porventura o momento de viragem da corrida, com a entrada do Paul na base de vida. Terá sido para ele um enorme boost de energia. O invés revelou-se para nós, um momento de grande preocupação pela proximidade do atleta escocês. Saímos da base de vida a tentar puxar pelo ritmo, quando o João fica um pouco para trás e eu acabo por ter que seguir sozinho. Na minha cabeça, e sabendo do valor do Paul (atleta profissional e 24º no UTMB em 2019), só pensava em "vender a vitória o mais cara possível". A verdade é que ainda demorou cerca de 1h até ele se aproximar de mim, íamos já em plena subida para a Picota. Ele passou por mim em bom ritmo e foi para mim claro, que seria "suicídio" tentar acompanhá-lo naquela altura. Tinha que ser muito pragmático, até porque faltavam muitos km’s pela frente e tudo podia acontecer. Assim, mantive a minha abordagem, tentando manter um ritmo consistente, muito em linha com a estratégia que tinha delineado para toda a prova.

Na Picota, já no início da segunda noite, apanhei a zona mais técnica de todo o percurso, com o trilho pouco visível numa zona com passagem por cima de rochas e onde perdi algum tempo. Mas que depois se ligava com uma descida pouco técnica até Monchique. Depois de restabelecido, seguiu-se a subida à Foia e aqui volto a encontrar-me com o Paul, mas ele rapidamente segue, mantendo eu a minha passada constante. As horas foram passando, e fiz nessa altura imensos km’s sozinhos, sem ver ninguém à frente ou atrás. Foi um longo período de "dialogo" comigo próprio. Até que a dada altura, no trajeto entre Marmelete e Barão de São João, tenho a sensação de ver um frontal a aproximar-se por trás. Terá sido real? Terá sido alucinação? Confesso que não sei. Mas por via das dúvidas aumentei o ritmo e segui vários km’s a um ritmo bem acima da zona de conforto, pelo que chego a Barão de São João, muito antes do que tinha previsto. Mas também com um desgaste bem acima do desejável, e ainda faltavam 37km para o cabo de S. Vicente (a meta).

Nesta base de vida, decidi sentar-me para comer bem, pois precisava de repor as calorias a mais que tinha perdido nesse mesmo sector. No entanto, a comida ainda não estava inteiramente pronta (tínhamos antecipado a chegada numas quantas horas), pelo que comi o possível e arranquei para o penúltimo sector. Desta vez acompanhado por um atleta da estafeta (o Romeu Afonso), e vindo ambos em défice calórico, acabámos por nos apoiar mutuamente nesta fase já muito adiantada da prova. Este trajeto, à noite, foi particularmente difícil do ponto de vista emocional, pois em boas condições poderia tentar a minha sorte, mas não tinha energia para tentar o que fosse. Assim, lá consegui chegar a Vila do Bispo (a última base de vida), restabelecer energias e seguir então para o último segmento, desta vez na companhia do colega de equipa do Romeu, o Pedro Santos. Neste último troço (aproximadamente 13km), e talvez com requintes de malvadez, acabámos por ter de percorrer uma longa reta de 2km para chegar à estrada de acesso ao cabo de S. Vicente. Foram incontáveis minutos a correr com a luz do farol, a teimar não se aproximar. Após 38h39, lá consegui chegar ao cabo de São Vicente e à tão desejada meta. Terminando assim aquele que era o grande objetivo de 2019. Ficou feito e bem feito, mas creio que é possível fazer melhor. Será em 2020? Seja como for, ainda hoje recordo as cores daquele amanhecer tão fantástico.

Autor: Rui Sequeira
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