São Paulo -- Ou muito me engano ou Argel vai "pegar de estaca" nas Antas. Os sócios do FC Porto vão gostar dele. Por várias razões, mas já lá iremos. Da longa conversa que mantivemos com ele em sua casa, na cidade de Porto Alegre, constatámos que do trio brasileiro que irá reforçar o plantel do pentacampeão é o mais maduro, aquele que tem as ideias mais arrumadas e uma personalidade mais vincada. Uma maturidade que surpreende nos seus 24 anos de idade.
No final da entrevista estivemos a observar em vídeo excertos de inúmeros jogos do Santos que resumiam a actuação de Argel frente a grandes equipas como o Palmeiras, o Corinthians, o São Paulo, o Vasco da Gama, entre outras. Se é certo que uma observação parcial de imagens de um jogo requer alguma reserva para evitar juízos precipitados, há pormenores que não enganam. Argel é daquele tipo de defesas que infunde respeito e temor aos adversários. Em termos de postura em campo faz lembrar muito o Paulinho Santos. Entra em cada lance como se dele dependesse o destino do jogo, tem uma fibra e uma raça que condizem com a mística do balneário portista. É muito poderoso nos lances de choque e tem uma boa flexibilidade em termos de cintura, que o torna um obstáculo muito difícil de ultrapassar nos lances de 1x1, mesmo para os avançados mais rápidos e habilidosos. E comanda, notoriamente. Dá indicações, fala, incentiva e orienta os companheiros.
Num plano, digamos, mais técnico, confesso que me impressionou. O seu 1,80 m de altura vale bem mais do que isso nos lances aéreos, pelo seu invulgar poder de impulsão. A jogar de cabeça está como peixe na água, quer a defender quer a atacar. Aparece na área adversária, sobretudo nas bolas paradas, a fazer golos. Só esta época marcou dez, oito dos quais de cabeça.
Outro pormenor que nos surpreendeu: é exímio marcador de livres, sobretudo quando a falta é cometida à entrada da área adversária, na zona frontal. Com o pé direito bate bem a bola por cima da barreira e fá-la entrar no ângulo superior do mesmo lado da baliza adversária.
"FIZ PRESSÃO SOBRE O SANTOS"
Dos três reforços vindos de terras de Santa Cruz, Argel é aquele a quem o FC Porto cobiça há mais tempo. Ele próprio nos deu disso conta: "Já o ano passado alguns dirigentes do FC Porto vieram observar-me em alguns jogos do campeonato brasileiro e fizeram uma primeira abordagem à Direcção do Santos. Sei que gostaram muito do meu futebol, mas acharam um pouco caro o valor do passe. Até ficaram assustados quando o Santos exigiu 6 milhões de dólares porque não queriam deixar-me sair. Eu tinha feito um bom campeonato brasileiro e os responsáveis do clube queriam muito conquistar o campeonato paulista deste ano. Além disso, se vendessem o meu passe naquela altura, a torcida teria ficado brava e iria cobrá-los por isso."
Os dirigentes portistas [Adelino Caldeira, Angelino Ferreira e Norberto, segundo Argel] não chegaram a abordar o jogador, apenas o Santos. Mas se levaram uma nega, igual sorte teriam os emissários do Paris Saint-Germain, que pretendiam contratá-lo pouco depois de o campeonato brasileiro ter terminado.
Mas o FC Porto voltou à carga já em 1999: "O Adelino Caldeira, o Angelino Ferreira e o consultor técnico, creio que o Nuno, vieram ver-me jogar em partidas da Copa Rio/São Paulo, na qual o Santos foi vice-campeão perdendo a final para o Vasco, por 2-1, e outras do campeonato paulista" -- recorda o novo recruta portista.
Nessa altura já não havia dúvidas: Argel era o jogador que o FC Porto procurava. E avançou-se para uma proposta ao Santos na ordem dos três milhões de dólares. Argel só tomou conhecimento mais tarde, em Abril, e aí deu, também, o seu empurrão: "Fiz alguma pressão sobre o presidente, fazendo-lhe ver que essa era a minha vontade e que não podia desperdiçar esta oportunidade. Pedi-lhe que baixasse o valor do meu passe para permitir a minha saída. Estive dois anos a jogar no Japão e não tive problemas de adaptação. Muito menos terei em Portugal, onde a língua e os costumes são os mesmos do Brasil."
Curiosa é a avaliação que faz da sua integração na equipa dirigida por Fernando Santos: "Fui contratado pelo clube certo, na hora certa. O meu espírito guerreiro encaixa no FC Porto, que tem um elenco de qualidade e de muita raça, como eu gosto. Ora, se vou entrar para uma equipa com essa filosofia, a minha adaptação será muito mais fácil porque são precisamente essas as minhas características. Vou fazer da camisola do FC Porto a minha segunda pele..."
ARGEL RIMA COM JARDEL
O que conhece da equipa resume-se a alguns jogos do campeonato português e da Liga dos Campeões, que observou através da RTPi. "Joguei contra o Vítor Baía num torneio em Espanha, onde o Santos participou. Conheço bem o Jardel, fomos campeões mundiais de juniores, em 1993, na Austrália, grande amigo e companheiro de quarto. Depois de ter sido juvenil e júnior do Vasco acabou por vir para o Grémio de Porto Alegre, rival do Internacional onde eu jogava. Marquei-o várias vezes e já nessa altura colocava problemas a qualquer defesa por causa da sua estatura, impulsão e cheiro pelo golo. É um artilheiro nato que pode decidir um jogo. Mas vocês, lá em Portugal, já sabem isso até melhor do que eu..."
Argel rima com Jardel na questão da escassa utilização deste na selecção brasileira: "O Wanderley Luxemburgo não tem nenhum jogador como ele, tão forte nas bolas altas. Os avançados do Brasil são baixos, rápidos e habilidosos, mas quando 'pegam' uma marcação mais forte de uma selecção europeia, tudo se complica. Pelo porte atlético e capacidade finalizadora, o Jardel deveria ter mais oportunidades, mas há coisas que não entendo no futebol brasileiro. Com o Zagallo e o Parreira era convocado. Cada treinador tem os seus interesses. Eu, por exemplo, fui cinco vezes convocado pelo Zagallo para a selecção e o Wanderley nunca me chamou."
A propósito, defende que há uma crise de defesas-centrais no futebol brasileiro e sustenta a sua tese: "Os de qualidade estão todos a sair para o estrangeiro. O Corinthians vendeu agora o Gamarra, com quem fiz dupla no Internacional, um grande amigo. Cá os treinadores só se preocupam em atacar. Há uma carência de valores, os zagueiros mais em destaque têm 37, 38 anos, não se vêem novos valores, de 23, 24 anos, com qualidade."
"SEMPRE FUI TITULAR..."
Voltando à equipa do FC Porto, fala-nos de Esquerdinha, contra quem jogou algumas vezes no campeonato brasileiro de 1998, nos duelos entre o Santos e o Vitória da Baía, e de Aloísio, com quem diz ter coisas em comum. "Tal como eu, começou nas categorias de base do Internacional de Porto Alegre, morou na mesma concentração que eu, e cedo se destacou na equipa principal com 17, 18 anos. Pouco tempo depois, o seu passe foi vendido ao Barcelona, tal como o meu o foi para o Japão. Aliás, o Internacional tem fama de revelar grandes jogadores, principalmente zagueiros."
Já teve oportunidade de conversar algumas vezes com Aloísio quando este, de férias no Brasil, ia ao Internacional para fazer trabalho de manutenção e musculação para não perder a condição física. O facto de Jorge Costa e Aloísio jogarem juntos há muitos anos, estarem entrosados e serem os titulares, não o desanima: "Passei por grandes equipas, onde a concorrência era forte, e sempre respeitei os meus concorrentes, como irei respeitar o Jorge Costa, o Aloísio e o Ricardo... Carvalho, não é?!... Vou trabalhar de forma séria e profissional, como sempre fiz, e depois será o treinador a decidir. Quando fui contratado pelo Santos havia oito zagueiros na equipa e tornei-me num ídolo da torcida. Vou procurar mostrar o meu futebol no FC Porto e conquistar o meu espaço dentro da equipa. Sempre fui titular onde joguei..." Por momentos, de entrevistado passou a entrevistador. "É verdade que o Jorge Costa tem um estilo e uma maneira de jogar parecida com a minha? Já me disseram isso..."
Tanto Alessandro como Rubens Júnior destacaram em Argel a sua capacidade de liderança no campo. Ele sorri e faz um gesto com a cabeça, de concordância com essa leitura: "É verdade que falo muito no campo. Pela sua posição em campo, o zagueiro vê melhor o jogo e pode orientar os companheiros. Fui capitão no Internacional e no Santos, e se falo muito com eles, faço-o respeitando-os, sem ultrapassar os limites, para não criar desavenças. Uma equipa que fala, que grita, que faz observações, que mostra que está ali para vencer, preocupa o adversário, perturba-o até."
De uma coisa não se livra: da sua fama de durão. Quisemos saber se era só fama ou também proveito: "Jogo muito firme, mas sou leal. O meu ponto forte são as bolas aéreas porque tenho uma boa impulsão e um bom tempo de entrada. Sou rápido. No futebol actual, os defesas têm de ser tão rápidos como os atacantes, o que não acontece com os que têm 1,90 m e 90 quilos de peso. Tenho 1,80 m e 74 quilos, o que é uma vantagem, como o Gamarra ou o Frank De Boer."
Só esta temporada marcou dez golos, oito de cabeça e dois na cobrança de livres. "Tenho feito alguns golos importantes, sobretudo nos 'clássicos'. Dos dez, cinco foram marcados ao Palmeiras, o maior rival do Santos..."
"ATÉ GOSTO DA CHUVA E DO FRIO..."
A chuva e o frio que caracterizam o Inverno português não causam qualquer mossa em Argel, pelo contrário: "Até gosto... A bola corre mais e proporciona mais contacto físico, mais choques. Estou como peixe na água... E ao frio estou habituado, sou de Porto Alegre."
Curioso é que logo a seguir mostra-se preocupado em saber como é que apitam os árbitros em Portugal: "No futebol brasileiro marcam falta por qualquer coisa" -- observa contrariado. Quando lhe perguntámos se era jogador de apanhar muitos cartões amarelos, sorriu com ar comprometido: "De vez em quando..."
No final da entrevista, a sua curiosidade desvia-se, a certa altura, para a revista do Record que lhe levámos. As páginas do FC Porto prendem-lhe logo a atenção. Lê os comentários que são feitos a Jorge Costa e Aloísio, dois dos que conquistaram os cinco títulos consecutivos pelo FC Porto. Mais adiante reconhece Vinícius, do Sporting, e Demétrios, do Campomaiorense, que chegaram a jogar com ele no Internacional. Tal como o avançado do Sp. Braga, Silva, seu adversário no campeonato japonês.
EMERSON LEÃO, TREINADOR DO SANTOS, TRAÇA PERFIL DE ARGEL E ALESSANDRO
Atarefado com os preparativos da viagem para o Porto, Argel, de férias em Porto Alegre, deu um pulo a Santos para tratar de algumas questões pendentes no clube e despedir-se dos seus companheiros. Uma despedida calorosa e sentida, no final do treino, que sugere um forte espírito de união e de grupo na equipa do Santos.
Aproveitámos a ocasião para perguntar ao treinador do Santos, Emerson Leão, antigo guarda-redes internacional do Brasil, se o FC Porto acertou ou não em cheio com as contratações de Argel e Alessandro:
-- Eram duas peças importantes na equipa do Santos. O Argel, com o seu vigor físico e eficiência no jogo por alto, transmite um carácter positivo a uma defesa e assume-se como um líder dentro do campo. O Alessandro é um velocista, driblador, que ajuda qualquer centro-avante a fazer golos. Por isso, acho que o FC Porto pagou pouco para muita coisa...
Em relação às características de um e outro, fez-nos o retrato exacto:
-- É simples: o Argel é um bom rebatedor, perfeito nas bolas altas, de uma raça, disponibilidade e liderança incontestáveis; o Alessandro é um jogador veloz, de bom drible, que alimenta o centro-avante. São duas peças fundamentais na defesa e no ataque.
Mas Emerson Leão deixa um aviso:
-- Mas atenção: é preciso saber fazê-los jogar...
De uma coisa não tem dúvidas: não vão ter problemas de adaptação ao futebol europeu:
-- Jogador que seja bom não tem problemas em lugar nenhum. A bola é igual em todo o lado. Eles vão ter uma excelente alimentação, como têm aqui; vão ter bons campos de treino, como têm aqui; vão ter um bom treinador, como têm aqui. Por isso não vai haver problema nenhum de adaptação.
Modesto este Emerson Leão, a quem pusemos uma última questão:
-- Como é que o Santos vai colmatar a saída de dois jogadores tão importantes?
-- O Santos não vai conseguir repor aquilo que perdeu porque hoje, no mercado brasileiro, está difícil de arranjar jogadores com a qualidade e as características de ambos.
UMA COINCIDÊNCIA CURIOSÍSSIMA: ARGEL TEM UMA TATUAGEM DE DRAGÃO
Se os sócios do FC Porto vão gostar do carácter guerreiro de Argel, irão, também, apreciar uma tatuagem que ele ostenta nas costas com orgulho e simbolismo: um dragão! Nem mais!...
A tatuagem foi feita aos 17 anos, quando jogava no Internacional de Porto Alegre. Demorou mais de um hora a desenhar e confessa que lhe causou muitas dores. Mas porquê o dragão?! Curiosa é a explicação de Argel:
-- Porque o acho belo e ao mesmo tempo temível. Inspira medo nas pessoas. Acho que o dragão tem muito a ver com a minha personalidade.
De resto, Argel é conhecido pela torcida do Santos como o "dragão da Vila", como um símbolo da raça santista. Vila por causa do nome do estádio, Vila Belmiro. Cada vez que faz um golo -- e pudemos testemunhá-lo nos jogos que observámos no vídeo -- corre em direcção aos adeptos, vira-se de costas para eles, levanta a camisola e aponta com o dedo polegar para a tatuagem do dragão! O estádio quase vai abaixo...
Os adeptos do FC Porto já ficam a saber: quando Argel marcar nas Antas vai repetir este gesto. Ele promete, com um sorriso nos lábios:
-- Agora, vou ser o dragão das Antas!...
A PROPÓSITO DA AQUISIÇÃO DE ALESSANDRO
Argel conhece bem os outros dois reforços brasileiros do FC Porto, Alessandro, por ser seu colega de equipa no Santos, e Rubens Júnior, por tê-lo defrontado várias vezes:
ALESSANDRO -- É um jogador de qualidade que conjuga força com rapidez. Dribla bem e tem uma facilidade impressionante em ir à linha de fundo cruzar para o centro-avante. O Jardel é que vai gostar muito de o ter na equipa...
RUBENS JÚNIOR -- É um lateral tão ofensivo que mais parece um ponta-esquerda. É rápido, por isso recupera também com facilidade. Também sabe marcar, mas o seu ponto forte é mesmo a atacar. Esta temporada não era titular no Palmeiras porque tinha um lateral de grande qualidade, o Júnior, mas jogou com uma certa regularidade e sempre correspondeu.
CURRÍCULO APRECIÁVEL COM APENAS 24 ANOS
Argel chama-se Argélico Fucqs [apelido do avô paterno, que era austríaco] e tem um currículo já muito apreciável num jovem de 24 anos.
Senão veja-se: campeão da Copa Brasil (1993) e duas vezes campeão gaúcho (1993 e 1995) ao serviço do Internacional de Porto Alegre; campeão da Copa Tenohai e da Copa Nabisco (1996), pelo Verdy Kawasaky; campeão da Taça Comebol (1998) e vice-campeão da Taça Rio-São Paulo (1999), pelo Santos.
Na selecção brasileira foi campeão sul-americano de juvenis, em 1992, no Paraguai; campeão sul-americano de juniores, em 1993, pela Colômbia; e campeão do Mundo de juniores, em 1993, na Austrália. À selecção principal, onde não entra, propriamente, qualquer "pé-de-chumbo", foi chamado cinco vezes por Mário Zagallo, frente ao Uruguai, às Honduras, à Eslováquia, ao Chile e frente à equipa do Valência de Espanha.
JOÃO CARTAXANA