RECORD – O seu triunfo em Inglaterra, José Mourinho, é também a afirmação de que em Portugal os ingleses não encontram apenas boas praias e bom sol?
JOSÉ MOURINHO – Não. É apenas o triunfo de quem acredita no seu trabalho e o leva absolutamente a sério em todas as suas vertentes. Eu creio que os ingleses sabem que em Portugal há muita coisa boa, muita gente capaz. O que se passa é que o futebol inglês está ainda a adaptar-se à presença de estrangeiros, de tantos estrangeiros, e isso demora o seu tempo. Os jogadores estrangeiros só começaram a chegar após a lei Bosman e quanto a treinadores estrangeiros, o cenário ainda era pior.
RECORD – Sendo assim, um treinador chegado de Portugal, mesmo com tudo o que já vencera no FC Porto, era apenas "mais um" da nova vaga?
JOSÉ MOURINHO – Não era, e eles sabiam-no. Toda a gente dizia que o futebol inglês, por ser tão especial, era impeditivo que alguém chegasse e ganhasse logo no primeiro ano – de tal forma que nunca ninguém tinha ganho o campeonato no primeiro ano – mas nós chegámos, ganhámos e viemos inverter um pouco tudo isso. Isso terá causado mais impressão do que o facto de sermos portugueses. Fui suficientemente forte para manter as minhas ideias, para não perder a minha identidade e, claro, com as vitórias as coisas foram ficando menos complicadas e hoje já não há qualquer olhar de soslaio em relação "ao português". Hoje sou o treinador campeão da Premiership e as pessoas respeitam-me por isso, mas de uma forma sincera, honesta, sem favores.
RECORD – Podem comparar-se os campeonatos de Portugal e de Inglaterra?
JOSÉ MOURINHO – De forma alguma! O campeonato português não tem qualquer comparação com o inglês. Neste campeonato, cada minuto de cada jogo é exigente, é uma boa guerra, é desgastante. Em Portugal quando se tem quatro ou cinco pontos de vantagem já sabemos que somos campeões. Aqui estamos com sete ou com oito, ou com dez e começamos a fazer contas, com medo de perder três pontos aqui ou dois ali e de ser apanhados num instante. É impossível comparar… O acumular de jogos é impressionante… Neste momento, já levamos uns 66 ou 67 jogos oficiais e a época ainda não acabou!
RECORD – Era, então, impossível ter ficado em Portugal?
JOSÉ MOURINHO – Sim, era impossível ter permanecido em Portugal se quisesse, como queria e quero, continuar a evoluir. Era a hora certa para sair, tentar novas coisas a outra dimensão. As exigências são totalmente diferentes. Era o desafio que eu precisava para mim próprio. Precisava de ganhar fora, de ser campeão noutro país.
RECORD – Esta época, por aquilo que você fez no Chelsea, marca a história do futebol português?
JOSÉ MOURINHO – Não tenho dúvidas em dizê-lo, marca! Acho que tudo começa com o Artur Jorge, que foi campeão europeu com o FC Porto e no ano seguinte saiu para um clube de ponta, na altura, o Matra, com potencial financeiro, com estatuto internacional. E o Artur Jorge venceu logo! Naquele momento ele foi um homem marcante na história do futebol português. Agora, depois do que fiz no FC Porto, ter vindo para a Inglaterra e ganhar o que ganhei no primeiro ano, acho que é importante. Por isso aceito que diga, na sua pergunta, que o que fiz entra para a história do futebol português.
RECORD – Ao prolongar o contrato até 2010 está a adiar, por exemplo, uma ida para Itália?
JOSÉ MOURINHO – Eu gosto imenso de estar aqui. Este novo contrato foi assinado com tremenda vontade de o cumprir porque, repito, gosto muito de estar aqui. Quando cheguei, o contrato era de três anos, com o objectivo de se ganhar algo até ao fim desses três anos. Ganhámos logo no primeiro ano e por isso tivemos de redefinir objectivos. Daí o novo contrato, porque eu, o dono do clube, os dirigentes, todos sabemos o que queremos fazer e como o queremos fazer.
RECORD – A fasquia está muito alta para o seu futuro no Chelsea?
JOSÉ MOURINHO – Claro, mas isso é bom. Veja até onde somos exigentes connosco próprios: ganhámos a Premiership e a Carling Cup, fomos às meias-finais da Liga dos Campeões e mesmo assim há muita gente, no nosso grupo, que não ficou contente. Estamos aqui cheios de azia, como dizemos lá em casa, porque não fomos à final da Liga dos Campeões. Qualquer outro, no nosso lugar, estaria a saltar de alegria porque quebrou a rotina do futebol inglês e de um clube que não era campeão há 50 anos. Por isso não tenho medo da fasquia ficar alta ou baixa. Somos nós que a colocamos lá. No dia em que não houver fasquia para ultrapassar será o dia em que regresso a Setúbal e me dedico à pesca no Sado.
«O ciclo começou agora»
Não deixa de continuar a espantar muita gente o facto de Mourinho ter feito como César: chegar, ver e vencer. Se quisermos, as analogias entre um e outro não se ficam pela célebre frase de César. Como Caio Júlio, José parecia ter-lhe destinada uma carreira subalterna. César era sacerdote de uma ordem menor, sem direito a carreira política ou militar; Mourinho começou como (ainda hoje dizem as más línguas) tradutor de Bobby Robson. Mas, como César, também Mourinho cedo impôs a sua vontade e poder de liderança. Na campanha da Gália, César atravessou os Alpes em duas semanas, quando o normal era cinco, e Mourinho foi campeão inglês no seu primeiro ano, feito nunca antes conseguido por outro tr einador em Inglaterra. E como César, Mourinho gosta de frase altissonantes, apelativas, polémicas, por vezes conflituosas. Um e outro são mestres na gestão de conflitos e, acima de tudo, dos recursos humanos à sua disposição. Líderes cujo poder também advém do facto de conhecerem, melhor que ninguém, os homens que lhes servem de suporte. César, apesar de patrício que era, cresceu e aprendeu todos os segredos nos bairros populares de Roma e foi ali que aprendeu a ser general. Mourinho tem o dom de construir relações especiais de intimidade e confiança com os jogadores das suas equipas.
RECORD – O que sente um treinador que chega a um campeonato tão competitivo como o inglês e vence logo no primeiro ano?
JOSÉ MOURINHO – Sente uma grande realização pessoal. Sente que valeu a pena ter-se mantido fiel aos seus pensamentos, às suas ideias. Sente que tinha razão quando teve de dar a cara pelo grupo, entrar em alguns conflitos, parecer por vezes o mau da fita. Já disse e repito; muitas vezes as pessoas dizem que sou arrogante, que perco a cabeça, que me exalto. A diferença é que, quase sempre, isso só acontece quando eu quero, quando eu penso que é necessário.
RECORD – Houve algum momento especial, ao longo deste ano, em que tenha sentido "já está, somos campeões"? Ou isso foi só mesmo há uma semana em Bolton?
JOSÉ MOURINHO – Não posso falar num momento especial… Em Bolton, mesmo antes do jogo, já sabíamos que seríamos campeões, por isso foi mais uma confirmação matemática, se quiser. Creio que o momento de viragem foi ainda na primeira volta quando vencemos o West Brom e tomámos a dianteira. Foi muito cedo, mais cedo que eu podia imaginar. Mas nunca mais a largámos. Foi um processo longo e difícil. O Manchester United teve um período brilhante e o Arsenal começou e está a acabar muito bem. A nossa vantagem foi que cometemos menos erros que os outros. Fomos ganhando confiança e… o resto já é história.
RECORD – Ao vencer logo no ano de estreia está a antecipar o que parecia ser o plano inicial do Chelsea. Não irá, este título, obrigá-lo a lutar, agora, sempre pela renovação do mesmo?
JOSÉ MOURINHO – A verdade é que quando tudo isto começou o propósito era chegar ao título dentro do período de três anos do contrato inicial. Mas aconteceu assim e como ao longo deste ano eu e todas as pessoas responsáveis do Chelsea percebemos que as nossas ideias estavam em sintonia, decidimos avançar para o novo contrato. Vencer o título não foi o fim. Não ficamos satisfeitos e vamos agora gozar os louros. Isto foi o começo de um ciclo, agora projectado por mais cinco anos. Não nos vamos iludir com este triunfo. Quanto a lutar pelo título, é claro que vamos continuar a lutar, mas nada garante que o vamos renovar. É assim e ninguém pode dizer que somos os favoritos no próximo ano porque vencemos agora. O Manchester United e o Arsenal têm historial, grandes equipas e treinadores que estão nos seus postos há muito tempo. E isso é uma vantagem para eles. A nós compete-nos continuar com o nosso trabalho.
RECORD – Ao dizer que este é o começo de um ciclo, vem aí um período de domínio do Chelsea?
JOSÉ MOURINHO – Nada disso. Quando falo de começo de um ciclo falo de tempo para consolidar um plantel, um clube, formar uma equipa que se conheça de olhos fechados, uma identidade. Há três anos o Chelsea comprou uns dez jogadores, no ano passado compramos cinco ou seis, para a próxima época espero comprar só três. Se calhar daqui a um tempo bastará comprar um. Isso é o trabalho a longo prazo. Isso é o tal ciclo de que falo. Se pelo meio formos ganhando, óptimo, porque, no fundo, esse é o último e principal objectivo de qualquer equipa. Que ninguém tenha dúvidas: ganhar é sempre o que nos move. Se disser o contrário estarei a mentir.
«Só quero três reforços»
RECORD – Muito se tem falado de entradas e saídas em relação à próxima época. O Kezman e o Gallas são dados como tendo bilhete de avião na mão, enquanto o número de potenciais reforços não pára de crescer. Em que ficamos?
JOSÉ MOURINHO – Como é normal, há sempre muita especulação. Ainda não falei com nenhum jogador sobre o seu futuro… O Gallas, por mim, não sai nem morto. É verdade que ele se sacrificou imenso a jogar como defesa-esquerdo, mas sempre lhe disse que um jogador tem de estar pronto para actuar onde eu precise dele. Por isso, se depender de mim, ele não sai. Quanto a entradas, bom, não faço segredo disso e já anunciei que procuro um defesa lateral- esquerdo, um médio e um avançado. Os nomes? Podem avançar com os que quiserem… Sendo certo que as pessoas também já sabem o perfil que traço para os meus jogadores.
RECORD – De um ano para o outro, o que muda, por exemplo, em relação ao trabalho de preparação da próxima temporada?
JOSÉ MOURINHO – Muda muita coisa. No ano passado tivemos de fazer tudo quase a correr em cerca de um mês. Agora temos quase tudo feito e ainda faltam dois meses para a próximo temporada começar. No dia 6 de Julho vamos regressar aqui, a Cobham, para uma semana de pré-temporada, antes da viagem aos Estados Unidos. Nessa altura terei todo o plantel pronto, com todos os jogadores fresquinhos e um mês inteiro de férias. E preparados para começar tudo do zero, no que à corrida pelo título diz respeito.
RECORD – Quando fala em deixar sair um ou dois jogadores e comprar apenas três, está a admitir que a qualidade do plantel é suficiente para manter o Chelsea ao nível do que alcançou este ano?
JOSÉ MOURINHO – Sim. Temos sempre que nos reforçar, que mudar um pouco, mexer com as rotinas, criar novos desafios internos. O pior que pode acontecer é um jogador pensar que é dono do lugar. Por isso até podemos ir buscar alguém para um lugar que, em teoria, está preenchido. Pode acontecer, não quer dizer que vá acontecer. As prioridades são aquelas que referi, de três postos específicos.
RECORD – A imprensa inglesa volta, com alguma frequência, ao tema do número de jogadores ingleses nas principais equipas. Quando tiver que reforçar o Chelsea vai ficar condicionado pelo passaporte dos jogadores a contratar?
JOSÉ MOURINHO – Não. Em primeiro lugar, o que me interessa é a qualidade dos jogadores. Não é o BI que joga, são os homens, seja qual for a nacionalidade. Na perspectiva dos ingleses, as coisas até não estão mal, porque os poucos que estão no Chelsea são muito bons e todos, ou quase todos, jogadores de selecção. Ir comprar jogadores ingleses de qualidade é que se torna muito complicado, devido à forma como os grandes clubes aqui funcionam. Enquanto em Itália não há o menor problema entre Milan, Roma, Lazio, Juventus, Inter, todos eles comprarem jogadores uns aos outros, aqui em Inglaterra não é possível, devido às rivalidades e ao medo que as pessoas têm de ver um jogador ter melhor rendimento no novo clube do que naquele onde estava.
Paulo, Ricardo e Tiago analisados à lupa
José Mourinho gosta de falar do colectivo, mas não se inibe de análises individuais em relação aos seus jogadores. Por isso pedimos-lhe que pontuasse o trabalho dos três principais atletas portugueses do Chelsea, com notas de 0 a 10.
PAULO FERREIRA (8). "O Paulo foi o que se afirmou logo à partida. Não é homem para 10 nem para 5. É sempre muito constante, com exibições muito regulares entre o 7 e 8, se quiser. Conquistou rapidamente o coração do clube, porque as pessoas perceberam aquilo que ele é enquanto jogador. Para mim ele leva um 8 desde o princípio até ao fim, mesmo que tenha sido um fim de época antecipado devido à lesão.
RICARDO CARVALHO (8). O Ricardo chegou tarde e por isso não iniciou a época logo a titular. Teve umas férias absolutamente ridículas. Depois de uma lesão acaba o ano, para mim, a um nível fantástico. Por isso, a época do Ricardo, na minha pontuação, começava com um 6, passou para o 7 e 8 e acabou com notas 9 e 10. Para mim os jogos que ele fez com o Liverpool, em Munique, todos os jogos do último período, foram brilhantes.
TIAGO (8). O Tiago também teve uma adaptação difícil. Chegou tarde e com pubalgia. Depois, foi um jogador utilíssimo para a equipa e com grandes responsabilidades pela grande época que o Lampard fez. O Tiago foi sempre um segundo guarda-costas do Lampard, juntamente com o Makelele. Foi um jogador que hipotecou um pouco da sua amostragem indivi- dual em prol da equipa. Podia dar-lhe um 7, mas como eu sou um homem de equipa, dou-lhe 8.