Convidados
Ricardo Silveirinha Clube Romântico de Futebol

Sandes de ovos mexidos

Arrabaldes da Praia da Manta Rota, 11h35. João Nicolau tenta estacionar o carro, envergando orgulhoso a camisola da Selecção. A mulher Maria ao lado e o filho Afonso no banco de trás. Céu com poucas nuvens. 

 

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- Como é que é, como é que é, Afonso? 

- Siiiiiiiiiiiiiiiim! 

- (João olha pelo retrovisor e sorri) Siiiiiiiiiiiiiiiim! 

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- Podes estar mais atento? 

- (João faz a continência) Sim senhora, minha senhora! 

- Estava ali! 

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- Onde? 

- À direita, João! Olha, agora já o apanharam… 

- Calma, vou dar mais uma volta. Vi um quando entrámos. 

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- Isso é muito longe. 

- Não é nada, são só dois quilómetros. 

- Eu ali não fico. Depois nunca mais chegamos à praia. 

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- E o que é que queres que eu faça? 

- Olha ali! Vai! Rápido! Pronto, esquece… 

- Este gajo meteu-se à papo-seco! 

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- Deixa-nos aqui. Eu levo já o miúdo. 

- E eu que me desunhe, não é? 

- … 

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- Vá, sai lá, Maria. Eu já lá vou ter. 

- Não, deixa. Encontra mas é um lugar. 

- Pá, estava aqui mesmo há bocado! 

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- Tens de ser mais rápido. Fazes sinal antes e metes-te logo. 

- É tudo tão fácil desse lado, não é? 

- … 

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- Trouxeste as sandes de presunto? 

- Anda lá, já vejo isso… 

- Não trouxeste, claro. Já sabes que eu não gosto de ovos mexidos dentro do pão. Não sei aonde é que foste buscar essa mania. Isso deve ser taras lá da tua família… 

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- Não comeces… 

- Demora muito, papá? Quero fazer xixi! 

- Já vai, filho. Só mais um bocadinho…. 

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- Mas eu não aguento mais! 

 

(Céu com mais nuvens. João aumenta o volume do rádio) 

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- Olha esta tão gira: "Eu gosto é do Verão, de passearmos de prancha na mão, saltarmos e rirmos na…" 

- Podes baixar a música, João? 

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- Eu ando à procura de lugar, porra! Tenho de fazer tudo? 

- Olha as asneiras em frente ao miúdo. 

- O melhor é ficarem já aqui a guardar um lugar para o caso de alguém sair. 

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- Mas quem é que vai sair agora, João? É quase meio-dia! 

- E o jogo é às três! Eu avisei… não devíamos ter vindo... 

- Anda lá com isso. Temos a geleira ao quente. 

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- Estás com medo que os ovos se estraguem? Não ponhas ovos no pão. Que raio de merda de ideia essa… 

- Outra vez os ovos? Tu não estás bom da cabeça. 

- Papá, para o carro! Quero fazer xixi! 

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- Faz aí no pneu desse manco do monovolume que ocupa três lugares. 

- João… 

- Queres vir tu para aqui? Se achas que é fácil, conduzes tu, pode ser? Ah não, tiraste a carta mas não conduzes… É fina, a menina… 

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- Pára o carro. Afonso, sai. Vamos para a praia. 

- Não sais nada, Afonso. Entrámos neste estacionamento juntos e saímos todos juntos. 

- Aquilo é um lugar? 

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- Parece. Porra, não, está lá um papa-reformas. 

- O melhor é irmos para outra praia. Está um calor desgraçado. 

- E achas que as outras não estão todas iguais? 

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- O que eu sei é que andamos aqui há meia-hora às voltas. Para isso ficava em casa. 

- Mas não eras tu que querias praia? Ai, o iodo para o menino, ai a maresia, a brisa… Eu disse-te para ficarmos na piscina. 

- A partilhar as urinas de vinte criancinhas? 

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- Ao menos estava dentro de água. 

- Tenho fome! 

 

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(Céu cheio de nuvens. Nenhum sol) 

 

- Olha, come os ovos dentro do pão que a tua mãezinha te fez. Deve ser uma promessa qualquer dos beirões. Não chega um pão com presunto. Não! Temos de fazer sandes de ovos mexidos! 

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- Outra vez, João? Ao menos o Martim não leva com as sopas de vinho que os teus pais te davam. Deve ser por isso que és um bêbado de primeira. Demasiado álcool de pequenino. 

- Por falar nisso, trouxeste as cervejas? 

- Achas? A geleira que compraste quase não dá para o sumo do menino. 

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- Mas para as estúpidas sandes de ovos mexidos há sempre lugar. 

- Olha, um lugar! 

- Não, esquece… 

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- O quê? É um lugar! Aqui mesmo. O que é que estás à espera? 

- É demasiado apertado. Depois ainda me arranham a porta. 

- E ali, papá? Ali dá! 

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- Onde? 

- Ali, ao pé da reciclagem! 

- Boa, puto! Finalmente. 

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- Não ponhas aí. Há sempre alguém que mete as garrafas em cima do carro. Não vamos arriscar. Tu adoras este carro. 

- Tens razão. 

- Tenho? 

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(Uma aberta. Raios de sol perfuram as nuvens e iluminam o carro) 

 

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- Tens. Tens quase sempre razão. 

- Também não é assim. 

- Estás tão bonita com esse vestidinho. 

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- Pára… 

- A sério. Ainda não tinha olhado bem para ti. Lembras-me a primeira vez que viemos a esta praia. Lembras-te? 

- Claro. 

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- Também vinhas com um vestido assim. Por cima do biquíni… 

- Já foi há tanto tempo… 

- Continuas igual. 

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- E tu. 

 

(João Nicolau e Maria entreolham-se, cúmplices. Poucas nuvens) 

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- Puto, passa-me aí uma dessas sandochas... 

- Mas tu não gostas disto… 

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- Vá, anda lá, que o papá tem de estar forte para ver a Ronaldo dar três aos espanhóis… 

 

(João Nicolau dá uma trinca na sandes e passa-a a Maria, que faz o mesmo) 

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- Até que nem é má de todo... 

- Não, não, espera que não ouvi bem. O João sandes-de-presunto está a dizer o quê? 

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- (sério) Ah agora tenho uma nova alcunha? 

- O João Nicolau, boquinha-de-queijo-de-Serpa, está mesmo a dizer que pão com ovos mexidos afinal é… bom? É isso? 

- Não é migas de espargos. Não é pezinhos de coentrada, não é… 

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- É pão com ovos mexidos, já sei. E, pelos vistos, já não é porque já a mamaste toda. Queres mais? 

- Não dizia que não… 

- Afonso, tira mais uma para o papá, a ver se ele aguenta o póquer do Ronaldo directamente patrocinado pelos… beirões. 

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- (sorri) Come-se… mas não ficavam mal aqui uns torresmos. 

- (Maria faz a continência) Sim, Major Torresmos! 

- Olha um lugar! 

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- Deixa, puto. Vamos para casa? Siiiiiiiiiim? 

- Siiiiiiiiiiim! 

- Vamos para casa, bicha? 

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- Vamos para casa, bicho. 

  

(João Nicolau sai do estacionamento da Praia da Manta Rota, 12h04. No rádio, volume alto, ouve-se A Fúria do Açúcar. Sol radioso.) 

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Por Ricardo Silveirinha
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