Dois reis em despique no Parque dos Príncipes
Quando passou a ser parte da solução, Eusébio não mais parou de consolidar-se como grande jogador. O mito nasceu, cresceu e dimensionou-se com o tempo. De junho a dezembro de 1961 acumulou estreias, ao mesmo tempo que avançava no reconhecimento, nacional e internacional, como talento sublime e cada vez mais raro. Nos primeiros sete jogos que fez com a camisola do Benfica, pelas reservas e na equipa principal, ao lado das estrelas que acabavam de ganhar a Taça dos Campeões ao Barcelona, marcou 12 golos. Três dos quais com o especial significado de terem sido apontados em confronto direto com Pelé, na altura rei indiscutível do futebol mundial. Começou em Paris, a 15 de junho de 1961, uma relação de amizade entre os jogadores que discutiram entre si o trono de melhor do Mundo nos anos 60.
Benfica e Santos jogaram a final do torneio de Paris e logo a imprensa francesa personificou o confronto no consagrado Pelé e no jovem Eusébio que, porém, iniciou o jogo no banco de suplentes. Ao intervalo os brasileiros venciam por 4-0. O Pantera Negra entrou ao intervalo. O Santos ainda elevou para 5-0 mas, no lapso temporal de 15 minutos, o moçambicano marcaria 3 golos, com uma grande penalidade sofrida a seguir ao primeiro tiro certeiro, ocasião que José Augusto desperdiçaria. No fim, talvez para delimitar terreno e mostrar de quem era o trono, Pelé fez o 6-3 final .
A prenda maior do ídolo Di Stefano
Mesmo quando assumiu estatuto de estrela, Eusébio nunca renegou os seus ídolos. Foi assim com Matateu (ao lado de quem nunca jogou, apesar de terem treinado juntos na Seleção Nacional), Coluna (protetor e amigo que, só muitos anos depois, conseguiu tratar por tu), José Águas (nunca deixou de ser “o capitão”), Germano (tinha por ele verdadeira paixão) e, fatalmente, Alfredo Di Stefano, o mais extraordinário jogador do seu tempo que, em 1962, quando se cruzaram na final da Taça dos Campeões, em Amesterdão, já estava com 36 anos.
Eusébio faz distinção entre Di Stefano e Pelé, porque um foi o herói de sempre e o outro, com apenas dois anos de diferença, tornou-se uma espécie de irmão brasileiro. Quando entrou em campo nesse jogo decisivo, que o Benfica venceria por 5-3, o Pantera Negra meteu cunha a Coluna, que era mais velho e tinha menos vergonha, para pedir a camisola ao ídolo. O final do jogo redundou em tremenda confusão, com os adeptos a invadirem o campo e Eusébio a ser levado em ombros. D. Alfredo cumpriu a palavra. Mesmo tendo em conta que o menino da Mafalala pisava pela primeira vez o terreno sagrado do topo da Europa, o ídolo deu-lhe a prenda maior, que meteu por debaixo dos calções, protegendo-a até a multidão o deixar à porta de acesso aos balneários.
Marcas significativas de três finais perdidas
Eusébio chegaria mais três vezes à final da mais importante competição de clubes no Velho Continente. Em 1963, sob o comando do chileno Fernando Riera, o Benfica perdeu a mais fácil de todas, aquela para a qual partiu com estatuto de favorito indiscutível. O AC Milan era uma equipa de jovens em fase de afirmação enquanto a equipa portuguesa, ainda que remodelada na sua estrutura, preparava a terceira vitória consecutiva. O jogo começou com um golo de Eusébio mas prosseguiu com dois tiros fatais de Altafini e a indigna caça ao homem feita a Mário Coluna, que culminou com a sua inutilização pura e simples. O capitão encarnado terminou o jogo encostado a uma linha lateral, fazendo figura de corpo presente. E, como não havia substituições na altura, outro remédio não teve a águia senão jogar com menos uma unidade durante larga fatia do encontro.
Em 1965, o Benfica voltava ao grande palco, desta vez em S. Siro, para medir forças com o Inter Milão que, assim, jogava em casa. O jogo efetuou-se sob condições climatéricas tremendas, com chuva torrencial e ventos ciclónicos que deixaram a relva em condições impraticáveis. O jogo não correu bem aos encarnados, que perderam com um célebre golo do brasileiro Jair: Costa Pereira fez-se à bola rasteira e em vez de agarrá-la deixou-a passar por entre as pernas.
Mais tarde, em 1968, despediu-se na final da Taça dos Campeões, de novo em situação delicada, isto é, jogando em casa do adversário – defrontou o Manchester United em Wembley. O jogo teve maior pendor ofensivo dos ingleses mas o Benfica chegou aos últimos instantes empatado. No último minuto, ficou frente-a-frente com o guarda-redes Stepney. Podia ter desviado para um golo simples; fechou os olhos e decidiu rematar em força, à figura – disse pela vida fora que esse lance o perseguiu para sempre. O jogo foi para prolongamento e, aí, os ingleses impuseram-se de modo claro, vencendo por 4-1.
Segundo melhor atrás de Masopust
Foi rápida a ascensão de Eusébio no futebol mundial. No fim de 1962 perdeu a Bola de Ouro, do “France Football”, para Masopust, principal figura da seleção da Checoslováquia que perdera a final do Campeonato do Mundo, no Chile, para o Brasil de Garrincha. Era um primeiro aviso à grande navegação do futebol: um fenómeno preparava-se para discutir lugar no pódio dos grandes expoentes do jogo. Por talento genuíno e também porque representava aquela que havia de ser, feitas as contas finais, a melhor equipa europeia da década de 60.
No ano seguinte, a 23 de outubro de 1963, representou pela primeira vez a seleção da FIFA, cumprindo o sonho de jogar ao lado de Alfredo Di Stefano; a 20 de maio de 1964 vestiria a camisola da UEFA, nas Bodas de Ouro da federação dinamarquesa. Entre uma coisa e outra cumpriu o serviço militar no Regimento de Artilharia Anti-Aérea (RAAF), em Queluz.
Património do Estado feito de ouro e golos
De resto, entre 1964 e 1965, muitos acontecimentos marcaram a sua vida e carreira, a começar por aquele que escolheu como o seu melhor golo de sempre – a 9 de dezembro de 1964, na vitória sobre os suíços do Chaux-de-Fonds (5-0). Logo a seguir, a 24 de janeiro de 1965, marcou 3 golos no batismo dos Magriços – 5-1 à Turquia, no Jamor – ficando para o mês seguinte (24 de fevereiro) uma das suas melhores exibições, no 5-1 ao Real Madrid, na Luz. Pelo meio, conquistaria a Bola de Ouro do “France Football” no final de 1965, batendo a armada do Inter que, em S. Siro, lhe ganhara a Taça dos Campeões. Ainda em 1965, a Juventus superou o canto da sereia lançado por Real Madrid e Inter Milão. À Luz chegou proposta concreta, com números suficientemente fortes para fazer a direção encarnada pensar duas vezes. Dúvidas não teve Salazar que, perante a hipótese de ver a estrela sair para o estrangeiro, não quis conversas. Era património do Estado, logo não podia sair do país.
“Bola de Ouro” voou por um voto apenas
Em 1966, quando ele e Bobby Charlton já tinham tudo acordado com o Inter Milão, foi a federação italiana a negar-lhe a possibilidade de um contrato milionário. Face à péssima prestação no Mundial’66 da squadra azzurra, a entidade máxima do futebol transalpino fechou as portas do calcio a jogadores estrangeiros. Eusébio já tinha visitado o Lago de Como, próximo de Milão, onde tinha escolhido casa com Flora, com quem se casara a 8 de outubro de 1965 e de quem teve duas filhas: Carla e Sandra. No fim desse ano, sofreria a desilusão da derrota na Bola de Ouro, que seria a segunda consecutiva. Os correspondentes europeus da “France Football” deram 81 votos a Bobby Charlton e 80 a Eusébio que, aceitando os argumentos, nunca entendeu a razão pela qual o jornalista português não o citou – podia dar-lhe 5 votos mas bastava um para dar-lhe o troféu, porque o empate seria suficiente para a vitória. Disse-lhe o jornalista de que não o tinha referido porque a indicação, saída do interior da revista, apontava no sentido de uma vitória fácil. Não foi assim e Bobby Charlton teve a consagração mais surpreendente da carreira. No fim de um ano em que tinha sido a figura dos Magriços e do Mundial inglês, todos acreditavam em nova vitória do King no mais importante dos prémios individuais que havia na Europa. Por incrível que pareça, a segunda vitória fugiu-lhe por entre os dedos. Uma grande injustiça tendo em conta o que fez em Inglaterra, no verão de 1966.
A corda esticou para lá dos limites
No final da década, Eusébio viveu fase delicada do seu relacionamento com o Benfica. Quando a época de 1969/70 terminou exigiu condições substancialmente melhoradas para renovar o contrato. A discrepância entre o que o presidente Borges Coutinho lhe ofereceu e o que ele pediu era inconciliável. A corda esticou muito para lá dos limites aceitáveis e o divórcio esteve mais perto do que nunca. Nem a máxima consideração que o rei tinha por um dos mais consensuais dirigentes encarnados de sempre aliviou a firmeza com que fez prevalecer os seus interesses, defendidos pelo doutor Silva Resende. Apesar da alta tensão que rodeou o caso, a história acabou em bem, prova de que o casamento celebrado em 1960 entre Eusébio e o Benfica tinha a eternidade como destino.