"INAPTO, inapto, inapto e ...inapto !" Há pouco mais de um ano o guarda-redes Cândido correu quilómetros à procura de um emprego e, quando batia à porta dos clubes, a recusa era sempre fundamentada com a mesma palavra. "Diziam-me que nunca mais jogava futebol, porque a lesão no braço não era recuperável", recordou a Record, aquele que chegou a ser apontado como sucessor de Vítor Baía na baliza do FC Porto.
Contrariando todas as versões clínicas, Cândido está reabilitado, e, depois de um ano fantástico no D. Aves, foi premiado com uma transferência para o V. Guimarães. A poucas semanas de começar a temporada 2000/2001, aceitou falar da agonia que se seguiu à gravíssima fractura no braço direito, contraída a 22 de Abril de 1997, quando defrontava o E. Amadora, ao serviço do V. Setúbal. Cândido aceitou a entrevista com dos reparos: "É a última vez que falo sobre isto, porque em minha casa há muito tempo que o assunto não é tema de conversa. Além disto, não cito nomes. Fazê-lo é dar importância a alguma gente sem qualidade."
– O seu passado recente suscita algumas interrogações. Depois de 22 meses a ser dado como inapto, realizou, na época passada, uma brilhante campanha no D. Aves, com 34 jogos realizados e 24 golos sofridos, tendo faltado apenas a um treino, devido a uma gripe. Como corolário, transferiu-se para o V. Guimarães. A questão é esta: como é que um inapto disputa futebol em alta competição?
– A pergunta tem muitos destinatários, mas menos eu. É triste que assim seja, mas grosso modo as pessoas no futebol pensam sempre dessa forma: o "gajo" lesionou-se já não vale nada. Sei como me olharam durante uma fase negra da minha vida e deveriam ajudar-me e não marginalizarem-me da forma como o fizeram. A dada altura, tive de recuperar sozinho e só eu sei o quanto doloroso foi.
– Mas, afinal, você não está inapto.
– As pessoas nunca foram bem informadas a respeito da minha lesão e os que me consideraram inapto não sabiam do que estavam a falar, porque desconheciam realmente o problema que me vitimou. Os que menos sabiam foram sempre os primeiros a dar palpites e a enterrarem-me cada vez mais. Viam-me como quase arrumado e tentaram arrumar-me para sempre, mas ainda bem que eles estão todos vivos para me verem a sorrir e a jogar futebol.
– A lesão que sofreu no braço motivou várias intervenções cirúrgicas. Alguma vez houve negligência médica?
– Vou dizer-lhe porque razão é melhor estar calado. Em tempos sem eu falar tentaram logo processar-me. A dada altura houve uma reunião das equipas médicas que me trataram e quiseram meter-me ao barulho sem eu nada ter feito. Quando um jogador erra, o cenário é este: a Imprensa critica, o presidente berra, o treinador responsabiliza e os sócios reclamam. O curioso é isto. Quando se fazem as operações corre sempre tudo bem e o azar é sempre do jogador ou da forma como está a recuperar. Nós somos enganados em relação àquilo que acontece durante as cirurgias e é pena que assim seja, porque os médicos também são homens e podem errar. O mais humilde é assumir os erros e nunca vi um médico assumir publicamente e diante de toda a gente a sua irresponsabilidade.
– Alguma vez responsabilizou o culpado pelo que lhe aconteceu?
– Não. Quem mexeu em mim que diga se foi apenas azar.
– Você lesionou-se em Setúbal e depois representou outros clubes, casos do Boavista e Maia. Podem ser todos acusados de irresponsabilidade?
– Não vou individualizar, para dizer quem me tratou bem, porque se o fizer então é fácil chegar a uma conclusão óbvia por exclusão de partes. Os que me abandonaram devem ser humanos e ter gosto pelo futebol. Recuperei porque tenho gosto na minha profissão. Aqueles que sempre me apoiaram foram os primeiros a felicitarem-me pela transferência para o V. Guimarães. Nem todos se podem gabar de ter amigos no futebol, mas eu ainda tenho alguns. O professor Neca, por exemplo, foi fantástico e está no meu coração. Consultou tanta gente e ninguém aconselhou a minha contratação.
– Porque razão o desprezaram ?
– As pessoas que me abandonaram não fazem falta ao futebol e deveriam olhar para o meu caso, e de outros, de uma forma mais humana. Consideraram-me inapto, afastaram-se por completo e nada quiseram saber do Cândido, jogador e homem. Simplesmente colocaram-me de lado.
– Com que justificação?
– Eu até sei, mas nunca o direi. Se algumas fossem humanas, deveriam assumir publicamente as suas culpas. Se lerem esta entrevista podem ter a certeza que nunca os acusarei na praça pública e jamais voltarei a falar disto, porque chego à conclusão que lhes dou importância indevida e eu, que afinal sou o mais magoado em tudo isto, fico transtornado, choro, lamento-me e revolto-me. É um sofrimento terrível.
AGARRADO À ESPERANÇA
– Como resistiu ao sofrimento?
– Interroguei-me várias vezes sobre isso e posso garantir que, depois de 22 meses agarrado à esperança, ganhei uma luta muito grande. Recordo-me de uma reunião realizada num hospital ao mais alto nível com vários ortopedistas e sobre o meu caso todos disseram que não tinha condições para continuar a jogar. Eu estava parado há 18 meses e disseram-me que pelo menos tinha de parar mais um ano. Desconheço os seus fundamentos e nem quero saber, porque quatro meses depois estava a jogar no D. Aves.
– Até contra os médicos lutou?
– Não tenha dúvidas. Há pelo menos um, cujo nome guardo, embora ele saiba que estou a falar dele, que me ajudou imenso.
– Tem consciência dos prejuízos que a sua carreira sofreu?
– Infelizmente há quem esteja pior. Quando me lesionei estava a atravessar um grande momento da minha carreira e fui inclusivamente considerado o melhor guarda-redes da época de 96/97. Fui ainda pré-convocado para a selecção. Passei uma fase tão linda. Lesionei-me e pensei imediatamente que tinha perdido tudo. Afinal estava enganado e ainda tenho muito para ganhar. Queria voltar a sentir a alegria de jogar e nunca pensei em dinheiro. Na época passada joguei no D. Aves e abdiquei no Boavista do meu melhor ano e contrato.
– A sua grande vitória foi nunca aceitar ter de desistir?
– Não escondo que muitas vezes pensei em acabar o futebol. Dizem que é doloroso estar um dia num hospital, veja os meses que eu lá passei sozinho e completamente desprezado. Tinha uma multidão a dizer-me que estava inapto, mas acreditava que podia quebrar todos os meus limites.
– O que pensarão aqueles que lhe tinham traçado um diagnóstico tão negro?
– Que sigam o meu exemplo para não cometerem o mesmo erro.
«PENSO NA CHAMADA À SELECÇÃO NACIONAL»
– A sua experiência, largamente superior à dos jovens Nuno Claro e Vítor Nuno, é um trunfo para conquistar a titularidade?
– De maneira alguma. Há jovens a brilhar nos lugares daqueles que por vezes são logo apontados como grandes candidatos à titularidade. Além de ainda ser bastante cedo para se aferir sobre essa questão, os meus colegas se estão cá é porque têm muito valor para ocuparem o lugar.
– Vai tentar agarrar o lugar para calar os seus detractores?
– Não vim para o Vitória para provar nada a ninguém. Concederam-me esta oportunidade e só tenho de pensar neste clube para o ajudar a conquistar o maior número possível de êxitos. A minha responsabilidade é dar diariamente o meu melhor e nada mais. O resto, a partir de hoje, é passado e não volta a ser lembrado.
– Acredita que ainda pode ser chamado à selecção nacional?
– Um guarda-redes que joga no V. Guimarães tem de ter essa ambição sempre presente. É um direito próprio. Jesus, Neno, Nuno e Pedro Espinha, ex-jogadores do clube, sempre foram chamados à selecção. Aliás, não é só no Vitória. Todos os guarda-redes da I Liga devem pensar numa chamada à selecção. Faz parte da ambição dos profissionais.
«O V. GUIMARÃES SEMPRE ME CATIVOU»
– Como interpretou o desafio do V. Guimarães ao pretender encurtar a distância que existe em relação aqueles clubes que lutam cronicamente pelo título?
– Transmitiram-me no início do trabalho de pré-temporada uma ideia que penso ser fundamental para o nosso sucesso: temos de ser a mesma equipa em casa e fora desta. Isto demonstra claramente a nossa ambição e estamos muito esperançados que tudo vai correr conforme as nossas previsões. O Vitória é um dos históricos do futebol português, tem o seu peso e tradição e é um clube respeitado em todos os campos e temido em alguns.
– Você estava a precisar de um desafio desta envergadura?
– Naturalmente que é deveras aliciante trabalhar num clube com a ambição do Vitória, mas recordo que já fiz parte dos quadros do FC Porto, V. Setúbal e Boavista, clubes com tradição no panorama nacional e internacional e que gozam de um prestígio muito grande. Desafio sério tive no D. Aves, onde me reabilitei com a ajuda de pessoas maravilhosas. No Vitória não posso defraudar quem apostou na minha aquisição, embora assuma com toda a humildade que este clube sempre me cativou. Posso até recordar que num passado recente existiram contactos para a minha contratação.