Decorreu recentemente em Cracóvia o European Sports Fórum, uma iniciativa liderada pelo comissário europeu Glenn Micallef (Intergenerational Fairness, Youth, Culture and Sport) que juntou representantes de organizações de políticas públicas, privadas, de educação e outros especialistas para discutir o futuro do desporto na União Europeia (UE), avaliando o progresso alcançado na implementação da atual agenda e possíveis formas de consolidar e melhorar o Modelo Europeu do Desporto (MED).
Foi uma iniciativa essencial para encarar os desafios que o desporto enfrenta, não obstante o reconhecimento da sua especificidade expresso no artigo 165.º do TFUE, que sustente o melhor alinhamento possível, a nível europeu e nacional, com as questões de economia, escala, inovação e inteligência artificial, mais premente ainda, tendo em conta o cenário de uma nova opção governativa em maio de 2025 em Portugal.
O MED, que representa a pedra angular da cultura desportiva enraizada na solidariedade, inclusão, competições abertas e uma forte base comunitária, enfrenta desafios internos e externos de elevada magnitude.
Desafios internos:
1. A interferência progressiva das instituições políticas, governos e partidos, na governança das organizações desportivas (OD), com influência nas próprias eleições, com genuínas preocupações sobre a erosão da autonomia responsável, afetando a independência, integridade e competências das mesmas;
2. A crescente e progressiva mercantilização do desporto, colocando em risco os seus valores, com o aumento de eventos movidos unicamente pelo lucro, o que marginaliza os desportos menos vendáveis/rentáveis, distorcendo a competição baseada no mérito e destruindo os mecanismos de solidariedade;
3. Ameaças à independência dos sistemas antidoping, com as tentativas de governos afirmarem o controlo sobre a WADA e agências nacionais antidopagem o que afeta a sua credibilidade e neutralidade;
4. Declínio do voluntariado no desporto, colocando em risco a sustentabilidade do desporto organizado, particularmente ao nível da formação, pela ausência de reconhecimento formal da determinante contribuição que os voluntários trazem à sociedade europeia, por via do desporto.
O desporto enfrenta ainda desafios externos, tendo em conta as próximas discussões sobre o Quadro Financeiro Plurianual (QFP) para o período pós 2027.
Especificamente, com a potencial realocação de fundos, impulsionada por tensões geopolíticas e pela crescente narrativa de ênfase no investimento em defesa, poderá desviar recursos com repercussões em determinados países como Portugal.
Proteger o MED não é apenas uma questão desportiva, é também o fortalecimento de um sector que contribui para a coesão social, visão reforçada pelo Conselho da Europa na resolução adotada em novembro de 2021.
Proteger o MED é:
1. Proteger a saúde. A inatividade física custa aos sistemas de saúde europeus cerca de €80 bilhões de euros anualmente devido a doenças cardiovasculares, diabetes e obesidade. A atividade física regular, além de diminuir o risco de doenças não transmissíveis, desempenha um papel crucial na saúde mental, reduzindo a depressão e a ansiedade em 20-30%, tendo sido especialmente importante na recuperação pós-pandémica da Covid-19.
2. Proteger o crescimento económico e emprego. A indústria do desporto representa 2.12% do PIB da UE e emprega 5.67 milhões de pessoas, com um papel crucial na resiliência económica e na criação de empregos. Cada 1€ investido no desporto gera um retorno de 5€ em benefícios económicos e sociais.
3. Proteger a inclusão social, integração e valores da UE. O desporto supera barreiras sociais e fortalece identidades, fomentando a inclusão de refugiados e de pessoas com deficiência, promovendo a diversidade, integração e coesão social, reduzindo a radicalização.
4. Proteger a estabilidade social. O MED é uma força global que promove valores da UE como o fair play, a democracia e a igualdade para além das fronteiras, reforçando a sua influência estratégica através da diplomacia desportiva e da cooperação internacional.
Tendo em conta estes desafios internos e externos, justifica-se o realinhamento estratégico do MED pelos decisores políticos (a nível nacional e europeu), vitais para seu fortalecimento, especificamente:
1. Reconhecer o desporto como um setor estratégico na política económica da UE, através:
a. Do aumento do financiamento no âmbito do orçamento nacional, orçamento de 2025/2026 e QFP, (2028-2034), reconhecendo o seu impacto na saúde, inclusão e coesão sociais, economia e segurança;
b. Da garantia que as infraestruturas desportivas, a inovação digital e a sustentabilidade ambientais continuem a ser prioridades.
c. Da garantia de uma distribuição justa de receitas dentro do ecossistema desportivo para proteger a sustentabilidade e a diversidade do MED.
d. Da garantia da integração e valorização do voluntariado desportivo na nova agenda das competências da Europa, reconhecendo-as como valiosas para reforçar o capital humano, a empregabilidade e a competitividade.
2. Preservar e expandir o programa Erasmus+/desporto, garantindo que os projetos para jovens e de formação continuem a beneficiar do financiamento da mobilidade e da inovação, garantindo a sua acessibilidade. Apesar do potencial e oportunidades de financiamento existentes muitas organizações carecem, por desconhecimento, deles. Urge capacitar estas organizações com instrumentos
financeiros simplificados e específicos para o desporto para responderem às crescentes exigências sociais.
3. Reforçar o papel do desporto e da atividade física na EU4Health, integrando-o nas áreas da saúde preventiva e desafios de saúde mental, e noutras áreas estratégicas da política da UE (educação, igualdade, competências, sustentabilidade).
4. Proteger a integridade do desporto. Os Estados membros e as OD devem tomar medidas concretas para manter os princípios éticos que visam fortalecer tanto a governança das OD quanto a integridade geral do desporto, concretamente:
a. Orientar os Estados-Membros a respeitar práticas de governança democrática, sem interferências políticas;
b. O reforço da Agência Internacional de Testes (ITA), criada para executar programas de antidoping livres de qualquer conflito de interesse real ou percebido, utilizada já por mais de 60 organizações desportivas internacionais.
c. Implementar ferramentas de boa governança, com certificação prévia e aplicação de instrumentos de monitoramento desenvolvidos por várias organizações (associação das Federações Internacionais Olímpicas de Verão, ASOIF), projeto SIGGS 3.0, apoiado pela UE e coordenado pela EOC; SIRV do SIGA).
d. Implementar os princípios orientadores da ONU sobre direitos humanos e a proteção da diversidade, equidade e inclusão e o alinhamento com a agenda da sustentabilidade ambiental (SDG e UE green deal).
e. Integridade financeira e anticorrupção. Reforçar as parcerias internacionais contra a corrupção no desporto (IPACS) e aumentar a conformidade e os mecanismos de controlo interno nas OD através, no caso de Portugal, de um reforço da Agência (autoridade para o combate à violência no desporto), impulsionando ações coordenadas para a prevenir.
f. Garantir o bem-estar e direitos dos atletas, através: da avaliação regular da sua saúde física e mental e das necessidades de desenvolvimento de carreira; do acesso a serviços de apoio específicos, incluindo médicos, psicólogos e treino de competência sociais para a vida; do desenvolvimento de estratégias nacionais para reconhecer e apoiar os atletas na prestação de serviços públicos; do fortalecimento das comissões de atletas, garantindo que sejam representados nos processos de tomada de decisão, com a respetiva capacitação e treino de liderança.
Esta é a única forma de fortalecer o desporto, não pelo desporto, mas pelo seu contributo social.
Por António José Silva