Quando os amigos chegam à nossa casa, todos empoderados pelo campeonato que ganharam ou simplesmente orgulhosos nas suas cores, aqui não há nem inveja nem raiva nem ressabiamento. Os amigos são recebidos com os Hinos dos seus clubes a bombar na coluna e todos os cantamos como se fôssemos todos do mesmo clube.
Eu e a minha mulher - sócios benfiquistas que nos conhecemos num autocarro a caminho de um Gil Vicente-Benfica - já cantámos a Maria José Valério a plenos pulmões, a Maria Amélia Canossa com sotaque Invicto, os charrocos Terno d'Ouros. Sporting Clube de Portugal, Futebol Clube do Porto, Vitória Futebol Clube e os mais que aqui venham são homenageados porque são os amigos que homenageamos. A sua amizade, o amor, a maluqueira que distingue cada ser humano um do outro.
O olhar espantado de espanto dos amigos que nos vêem a cantar os hinos dos seus clubes comove-nos porque há qualquer coisa que é universal e indizível em sair do nosso corpo e dos nossos gostos e voar para os braços do coração dos outros. O Hino do clube dos nossos amigos é também o nosso Hino porque amar, poderia dizer Abel Xavier, é "deixar a vida a saber a... mar". E o mar é salgado e é de nenhum clube, é de todos os clubes.
Quando eu era criança, Abrantes-1987, cantava o Hino de Portugal com a mão no coração antes de começar a aula. A professora Joaquina, nos seus setenta e tal anos, havia passado toda a sua carreira de pedagoga dentro do Estado Novo a ensinar a fundamental importância da portugalidade pelo mundo. Talvez fosse por isso que, treze anos depois do 25 de Abril, ali, naquela escolinha abrantina, ainda tivéssemos de aprender toda a rede ferroviária de Angola ou os rios e montanhas de Moçambique. Eram hinos anacrónicos que ainda não se tinham calado no coração da egrégia Joaquina.
Se repetirmos muito uma palavra, ela deixa de ter todos os significados emocionais que ela tem para nós e passa a ser um conjunto de letras que tem um som curioso e cómico. Um batuque rápido, um compasso. Também os Hinos só são Hinos intransponíveis se não lhes soubermos entregar a ternura que todos os Hinos merecem. E depois, entrando nessa entrega, tudo é dança e amor e amigos sob o sol a rir perante a incredulidade do mundo.
Há vários tipos de heróis. Os heróis de um momento, os heróis de sempre, os heróis improváveis, os heróis do dia-a-dia. Os heróis que chegam, os heróis que vão. Os hinos heróicos. Os heróis sem Hino. Cá em casa, os amigos são sempre os heróis do nosso mar. Mesmo que acabemos todos, às cinco da manhã, a cantar histéricos o Hino da aldeia de Paio Pires.
Por Ricardo Silveirinha