Gaspar Ferreira
Gaspar Ferreira Ordem dos Psicólogos Portugueses

Atrasar o relógio

A contratação de Rúben Amorim pelo Manchester United dominou os noticiários na última semana. Para alguns adeptos, a demissão do treinador sportinguista e a possibilidade de perder parte da estrutura técnica e até de jogadores valiosos, foi lida como uma traição ou como um ato de egoísmo. O voto de confiança que lhe foi dado ainda enquanto treinador jovem para assumir uma equipa com os pergaminhos do Sporting e o apoio da direção nos momentos mais difíceis, bem como a expetativa de prosseguir a afirmação vitoriosa do clube, gerou sentimentos de raiva e de tristeza.

Não analisarei aqui esta situação concreta da carreira de Rúben Amorim, cuja atuação como pessoa e como treinador, me merece o maior respeito. Reflito a seguir, no entanto, sobre alguns aspetos teóricos sobre comportamentos nas organizações.

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A ambição profissional é algo natural e é um impulso positivo. E só deixa de o ser se um líder não comunicar as suas intenções de carreira, ou se agir de forma dissimulada, negociando e estabelecendo alianças em segredo, o que poderia ser interpretado como uma traição à confiança da direção e dos jogadores. Às vezes, a mera sugestão de saída pode desestabilizar uma equipa, especialmente se o treinador não preparar de forma adequada a transição. Nestes casos, a traição percebida pode gerar ressentimento entre os jogadores e a direção, que podem sentir que seus esforços não foram valorizados, e impactar muito negativamente na relação com os adeptos.

Em abstrato, uma traição envolve a violação da confiança e lealdade que são essenciais para a coesão e o funcionamento saudável de um grupo (Miller e Lefcourt, 2020). Quando, numa organização, um líder coloca como prioridade os seus interesses pessoais e profissionais, às vezes criticando abertamente colegas, colaboradores ou elementos da direção, essa postura pode ser vista como uma forma de traição em relação à confiança que os membros da equipa depositam nele. Este tipo de comportamento pode criar um ambiente de desconfiança, levando a uma cultura organizacional tóxica. A crítica pública, a falta de lealdade, pode gerar insegurança e desmotivação, resultando em conflitos internos e num ambiente de menor colaboração.

A procura desenfreada por promoção pessoal à custa de um emblema ou de uma equipa não só prejudica os relacionamentos, como também compromete os objetivos organizacionais. A confiança é fundamental para o sucesso de qualquer organização. Quando um líder trai essa confiança, a resposta pode ser a desconfiança generalizada e a redução da coesão do grupo (Kelley e Thibaut, 2022).

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A perceção de sacrifício é crucial para a construção de relacionamentos de confiança. A lealdade e a confiança podem ser reforçadas, se um líder ou treinador demonstrar que está disposto a permanecer e investir na equipa, mesmo quando tem oportunidades de carreira mais vantajosas (G. S. Leary , 2021). O impacto da saída de um líder e de toda uma estrutura com provas dadas sem um processo de transição planeado, tem necessariamente custos para qualquer clube.

É possível que os sportinguistas se tenham de preparar para um período em que a sucessão de conquistas e de vitórias volte a ser o que era antes da chegada de Rúben Amorim. A valorização da competência, o investimento na criação de equipas maduras, que mais de uma vez reconheci neste fórum ao Sporting, exigem tempo.  A competência tem um preço.

A hora mudou com a entrada do outono. O Sporting, e os adeptos do Sporting, vão ter de atrasar mais do que uma hora com estas mudanças.

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Por Gaspar Ferreira
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