Luís Alves Monteiro
Luís Alves Monteiro Atleta olímpico

Onde o desporto se reúne… para ficar na mesma

Na crónica anterior escrevi sobre a proliferação quase infinita de entidades, plataformas, fóruns e instituições criadas para “gerir e discutir o desporto”, estruturas sobre estruturas que prometem reflexão, consenso e orientação estratégica, mas que, no fim, deixam tudo rigorosamente na mesma. Hoje detenho-me numa dessas peças do sistema: o Conselho Nacional do Desporto.

O Conselho Nacional do Desporto (CND) existe desde 2007, reformulado em 2012 como órgão oficial de aconselhamento do Governo na definição da política desportiva nacional. A lei confere-lhe uma composição alargada, reunindo representantes do Governo, IPDJ, Regiões Autónomas, municípios, Comité Olímpico, Comité Paraolímpico, federações, associações empresariais, universidades e diversas entidades do movimento associativo. Na prática, o plenário ultrapassa com facilidade as quatro dezenas de membros, entre titulares, suplentes, convidados e acumulações de representação.

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O funcionamento do CND assenta em dois níveis: o plenário, vasto e pouco operacional, e a Comissão Permanente, uma estrutura mais reduzida que, em teoria, deveria assegurar maior agilidade. Caber-lhe-ia preparar trabalhos, estruturar propostas e acompanhar dossiers. Seria, no papel, o espaço certo para transformar debate em acção. Seria, mas na realidade nem a Comissão Permanente conseguiu afirmar-se como núcleo efectivo de decisão: prepara enquadramentos, produz notas e convoca reuniões… mas falta-lhe sempre o essencial: o poder para decidir e mudar.

As agendas continuam a ser definidas pela tutela governamental, apresentadas depois à Comissão Permanente e ao plenário para validação formal. O conteúdo das reuniões permanece centrado na apresentação de diplomas, planos e relatórios, deixando escassíssimo espaço para verdadeira definição estratégica. Mesmo no núcleo mais reduzido, a rigidez institucional e a cronometragem das intervenções reproduzem a lógica do plenário: fala-se, regista-se, grava-se… e nada muda. As conclusões não têm carácter vinculativo e não influenciam a política pública.

E assim surge a primeira pergunta inevitável:
Quem fala quando se sentam mais de quarenta pessoas à mesma mesa?
E, sobretudo, quem decide quando até nos grupos mais pequenos o poder está ausente?

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No papel, o CND é o grande fórum de auscultação do desporto português: plural, abrangente, representativo. Na prática, discute-se pouco do que verdadeiramente importa: prioridades estratégicas, modelos de financiamento, governação, avaliação de resultados…e no final decide-se rigorosamente nada.

O CND não executa políticas, não fiscaliza a sua aplicação, não acompanha resultados, não impõe orientações estratégicas. Recomenda quando lhe pedem, opina quando é convidado, aconselha quando convém. Fora disso, funciona como mecanismo de pacificação institucional: envolve muitos para responsabilizar poucos… ou ninguém.

A raiz do problema é estrutural: demasiadas pessoas, demasiados interesses cruzados e ausência total de poder efectivo. Cada entidade representa o seu sector. Quase ninguém representa o país. Quando todos falam por uma parte, ninguém lidera o todo. O resultado é previsível: consensos vazios, politicamente seguros… e absolutamente estéreis.

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Durante anos tentei que a Associação dos Atletas Olímpicos de Portugal (AAOP) fosse no CND uma voz crítica, construtiva e independente, não para cumprir calendário, mas para reformar, incomodar e obrigar à decisão. Defendi, há mais de quatro anos, contra o corporativismo de sempre, representado na figura omnipresente do então Presidente do COP, José Manuel Constantino — contra dirigentes e até alguns atletas, estes poucos e fundamentalmente dependentes do sistema, um Plano Estratégico Nacional do Desporto e a participação activa da sociedade civil na definição das políticas públicas desportivas nomeadamente na área da Saúde, Educação  e desporto (reuni-me com os ministros das pastas na altura). Nunca nos quiseram ouvir, mas também nunca pedimos favores. Apenas responsabilidade e visão. Afinal, parece agora que tinha razão.

O sistema, porém, não gosta de vozes livres. Nem governos anteriores nem o actual. O antigo Secretário de Estado chegou a desmarcar uma reunião onde estariam mais de vinte atletas olímpicos, incluindo mais de 50% dos medalhados,  para discutir a presença de uma associação de atletas no CND. Uma sala cheia de atletas unidos mete medo. O actual Secretário de Estado, num registo solene, seguiu a mesma linha: rodeou-se de atletas com passado nos órgãos dirigentes da AAOP e nem sequer teve a cortesia institucional de informar a própria Associação. Quanto à representatividade do movimento associativo? Ignorada. O padrão é sempre o mesmo: manter os de sempre para continuar exactamente tudo igual.

A tentativa de levar mudança ao CND esbarrou na sua irrelevância prática. Falou-se, alertou-se, e tudo ficou na mesma.

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A isto somam-se as distorções gritantes de representação: entidades com múltiplas presenças e peso político desproporcionado; ao lado, algumas figuras emblemáticas do desporto são convocadas apenas como ornamento, símbolos, fotografias, presenças decorativas. Não opinam, não influenciam, não decidem. Emprestam imagem, não liderança. Representam-se a si mesmas e seguramente não representam os atletas. No meio de tanto vazio, ninguém avalia o impacto, ninguém avalia o mérito, ninguém avalia a utilidade.

O CND tornou-se mais um órgão na longa lista de estruturas que perpetuam a ineficiência crónica do sistema desportivo português: um sistema que multiplica fóruns, conselhos e comissões, mas evita cuidadosamente qualquer centro efectivo de decisão.

Até documentos estruturantes, como o recentemente apresentado Plano de Desenvolvimento Desportivo (PDD), “passaram” pelo CND. Passaram, mas não foram acompanhados, monitorizados ou integrados em qualquer lógica de responsabilização. Discutir planos não é executá-los. Validar documentos não é liderar estratégia. Sem metas claras, indicadores públicos e avaliação rigorosa, os planos tornam-se apenas promessas bem encadernadas em PDF,  como escrevi na crónica “Temos plano, falta coragem”.

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O CND é, hoje, a síntese perfeita do bloqueio estrutural: um fórum, não um centro de decisão; uma representação, não uma liderança; uma conversa, sem consequência.

Para que esta crónica não seja só mais uma crítica sem saída, deixo três propostas concretas:

1.    Reduzir drasticamente a dimensão do plenário, substituindo a lógica da presença institucional por critérios de mérito, impacto e independência.

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2.    Transformar a actual Comissão Permanente num verdadeiro órgão operativo, responsável pelo acompanhamento e monitorização pública das políticas desportivas — a começar pela execução do PDD — com metas quantificáveis, relatórios públicos e avaliação vinculativa.

3.    Garantir representação verdadeiramente independente dos atletas e da sociedade civil, libertando essas vozes da tutela das grandes estruturas instaladas e devolvendo protagonismo a quem vive o desporto por dentro.

Sem estas mudanças, continuaremos exactamente onde estamos: onde o desporto se reúne… para ficar na mesma.

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Por Luís Alves Monteiro
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