Bodas de Ouro de «Record»

As histórias à volta da história dos 50 anos do jornal contadas na primeira pessoa por cinco dos seus seis directores. Os factos e as pessoas que nos colocaram na primeira linha do jornalismo desportivo

Bodas de Ouro de «Record»
Bodas de Ouro de «Record»

- Vamos começar este debate por um dos fundadores do jornal, ainda vivo. Fernando Ferreira: que visão tem hoje do jornal, cinquenta anos depois?

FERNANDO FERREIRA - Tenho aqui um fac-símile do primeiro número [mostra aos presentes]. É um enorme volume de oito páginas. Valeu a pena, evidentemente. Mas tudo isso foi feito com muito esforço e muitas ideias. Os três fundadores e co-proprietários, eu, o Monteiro Poças e o Manuel Dias é que entrámos com o capital. Eu, por exemplo, para arranjar a minha parte, 6 contos e quinhentos na altura, tive de pedir emprestado ao Joaquim Ferreira Bogalho, presidente do Benfica. De então para cá o jornal foi-se implantando, aumentando as páginas e as tiragens, até que nas últimas direcções, a do Rui Cartaxana e, agora, a do João Marcelino, o Record é o jornal desportivo de maior tiragem. Regozijo-me bastante com esse facto. Record continua na senda dos maníacos que um dia resolveram ir para a frente com uma ideia. Ricardo Ornelas denominou na altura a nossa ideia como "uma brincadeira de rapazes".

- A ideia era lançar a concorrência ao jornal " A Bola"?

FERNANDO FERREIRA - A nossa ideia não era a concorrência. Nasceu por causa de um homem que teve poucas letras, nem sei se tinha a instrução primária: Manuel Dias. Ele foi um vendedor de jornais desde muito novo, no tempo em que os vendedores andavam descalços, e sempre sonhou em fazer um jornal. Um dia jogou na lotaria e saiu-lhe a sorte grande: 200 contos. Para se fazer um jornal no tempo do Antigo Regime era preciso depositar umas centenas de contos para no caso de falência se pagar aos funcionários que ficassem desempregados. Manuel Dias falou com Monteiro Poças e Afonso Lacerda, que estava destinado a ser chefe de Redacção. Fui o último a ser contactado.

- Porque foi escolhido para Director?

FERNANDO FERREIRA - Era o mais conhecido. Tinha sido atleta do Benfica, Recordista nacional, era preparador físico do futebol do Benfica, da selecção nacional e treinador de atletismo.

- João Marcelino: Hoje, como se posiciona o Record face à concorrência com "A Bola" e os restantes adversários no mercado desportivo?

JOÃO MARCELINO - Nós não temos nenhum ponto de referência fixo. Ou seja, se na altura o Record não nasceu para combater a "A Bola", hoje também não existe para combater quem quer que seja. É um jornal que quer, claramente, liderar o mercado dos jornais desportivos em Portugal. Mas tem tanto respeito pela "A Bola" como tem pelo "O Jogo" ou por outro jornal que apareça. Não estamos focados em nenhum outro projecto. Estamos focados em nós próprios, naquilo que formos capazes de fazer. Queremos fazer várias coisas melhores do que fizemos até agora. Penso que nos últimos cinquenta anos fomos praticamente sempre em crescendo, talvez com um ou outro período menos positivo, mas há aqui gente que poderá falar disso melhor do que eu.

RUI CARTAXANA - Discordo um pouco do que diz o professor Fernando Ferreira. Eles quando fundaram o jornal também já tinham no subconsciente a ideia da concorrência e da luta para dominar o mercado. Não é por acaso, na minha opinião, que a ideia sai de um senhor Manuel Dias, que era o chefe de vendas do jornal "A Bola"...

FERNANDO FERREIRA - ... Eu próprio era redactor de atletismo de "A Bola" e o Monteiro Poças fazia crónicas de futebol.

RUI CARTAXANA - ... Penso, aliás, que foi decisivo em todas as etapas do jornal esse anseio que a Redacção, mais do que qualquer outro sector do jornal e da empresa, teve em relação ao grande concorrente vizinho que durante anos e anos nos olhou com um certo paternalismo e uma certa condescendência. Não se esqueçam que o senhor Cândido Oliveira "autorizou" a saída do jornal Record ao sábado. Autorizou! Se recuarmos no tempo a mentalidade era essa...

FERNANDO FERREIRA - ... Eu conto: convidámos o Cândido Oliveira, que era o homem forte de "A Bola", apesar de o Ribeiro dos Reis ser o Director, para um jantar. Foi ali na Baixa, na Rua dos Correeiros, no João do Grão. "Oh senhor Cândido Oliveira temos a ideia de sair com um jornal ao sábado. Tem alguma objecção a colocar?". "Não, não. Podem sair. A ‘A Bola’ sai à segunda e quinta"...

RUI CARTAXANA - Concretizando: a irreverência da juventude que a partir de certa altura começou a encher a Redacção do jornal, e o conceito de que estava ao nosso alcance sermos melhores foi, na minha opinião, a grande força motora que fez o jornal andar para a frente.

Aliás eu considero que há dois momentos - e depois mais adiante gostava de falar sobre isto - decisivos na vida do jornal.

Um é a privatização. É um pontapé para a frente que só as pessoas como eu e o Marcelino, mais eu do que ele, que estávamos em lugares de responsabilidade, é que podemos avaliar.

O outro momento de grande importância para o jornal é quando, com o apoio de algumas pessoas de lá dentro - considero a iniciativa mais importante que tomei - se renovou o quadro redactorial através de uma política que é um «segredo de polichinelo», o de ir às Universidades buscar estudantes universitários. Recordo-me que ao princípio esta iniciativa até teve a oposição de uma parte importante da Redacção. O chefe de Redacção da altura [Fernando Guerra], por exemplo, opôs-se.

JOÃO MARCELINO - Eu só queria dizer uma coisa. A pergunta de há bocado foi-me direccionada do presente para o futuro. Não foi em relação ao passado. Ou seja: admito que num determinado momento no passado tínhamos algum jornal à nossa frente, e isso era um ponto de referência, hoje o panorama é outro: estamos na frente, não temos ninguém a quem alcançar. Por isso é que eu digo que "A Bola", "O Jogo", ou qualquer outro jornal desportivo que apareça, têm para nós o mesmo valor e merece-nos o mesmo respeito. No passado, porventura as coisas não terão sido assim. Porventura até eu terei tido posições diferentes das que tenho hoje.

ARTUR AGOSTINHO - Gostava de dizer o seguinte: uma certa dose de lirismo presidiu à fundação do jornal, mas no fundo os três fundadores já tinham a ideia de marcar uma posição relativamente aos jornais da concorrência. De que maneira? Como não dispunham dos meios de "A Bola", tiveram a ideia que podiam ocupar um espaço diferente. Por isso, se "A Bola" saía à segunda e quintas-feiras, Record escolheu - e bem, quanto a mim - o sábado. Foi tal o efeito dessa vitória ao sábado que a "A Bola", a despeito de ter entendido a chegada do Record com um certo ar paternalista, passou também a sair ao sábado para fazer uma concorrência directa.

- Artur Agostinho: quando é que começou a trabalhar no Record?

ARTUR AGOSTINHO - Em 1952, creio eu, tinha 32 anos, nos Jogos Olímpicos de Helsínquia. Fui aos Jogos pela Emissora Nacional. O Fernando Ferreira, a bordo do Serpa Pinto [o barco que transportou toda a comitiva nacional] convidou-me para fazer uns trabalhos...

FERNANDO FERREIRA - ... tinha uma secção que era intitulada "Memórias de um microfone".

- Era o tempo em que os jornalistas vinham quase todos da rádio...

ARTUR AGOSTINHO - Não havia televisão. A rádio era uma das forças importantes da comunicação. O caso do Record, que se pautou na parte financeira sempre, quanto a mim, por um excesso de orientação economicista, aproveitava as viagens dos homens da Emissora Nacional ou do Rádio Clube Português para lhes pedir umas crónicas a troco de meia dúzia de tostões, que era o que pagava nessa altura.

JOÃO MARCELINO - Há dezoito, vinte anos ainda era um pouco assim.

ARTUR AGOSTINHO - Passado esse período de idealismo e lirismo, que, atenção, eu acho que foi fundamental para o jornal, começou a verificar-se que o Record estava em desvantagem com o sábado. Foi então que surgiu a edição de terça-feira. No fundo, eu acho que o Record, nessa altura, andou sempre a fugir à concorrência de "A Bola". Se a "A Bola" saía à segunda, era impensável sair à segunda, até porque também se publicava o "Mundo Desportivo". A terça-feira resultou porque o Record começou a explorar os aspectos desportivos de uma maneira diferente da segunda-feira.

- Mais uma edição. Era preciso mais gente...

ARTUR AGOSTINHO - Pois é. Aí surgiu outro problema. E foi nessa altura que eu considero que o Record travou um pouco o passo. A exploração da terça-feira necessitava evidentemente de um grupo de colaboradores e redactores com carácter profissional e permanente. O que não havia.

- É então que chega a Director...

ARTUR AGOSTINHO - O jornal estava a passar por uma fase má. "A Bola" estava a ganhar faixas importantes de audiência ao Record e nessa altura a administração do "Diário Popular", que entretanto tinha adquirido uma posição maioritária no jornal, pôs a questão ao Fernando Ferreira e ao Poças: "Ou vocês se entendem ou então vamos buscar outro Director. Como eles não se entenderam eu caí ali praticamente de pára-quedas. O Fernando Ferreira e o Monteiro Poças não tinham um entendimento perfeito...

FERNANDO FERREIRA - ... Estávamos de relações cortadas. Mas só queria complementar uma coisa: os três sócios nunca ganharam nada até se fazer a sociedade com o "Diário Popular" (DP). Só havia duas pessoas que eram remuneradas: a Maria Alice Má Cara, funcionária da administração, e o Paula Bastos, revisor [copy desk] e chefe de Redacção. Brás Medeiros, então presidente do Sporting [Presidente do Conselho de Administração do "DP"], soube que estávamos numa situação periclitante. Tinha havido a guerra do Vietname, o preço do papel aumentara muito, e propôs-nos comprar 51 por cento da sociedade. O Manuel Dias, que vivia da banca de jornais, e o Monteiro Poças, que vivia em Lisboa em quartos alugados com a mesada que lhe mandava a família de Leiria, falaram entre si e concordaram. Eu, que era o único que tinha uma situação profissional cá fora estável, como professor de educação física, concordei também e cedemos 51 por cento ao "Diário Popular". E, a partir dessa altura, passámos a receber um vencimento como Administrador, Director e Chefe de Vendas.

ARTUR AGOSTINHO - Uma das questões prévias que coloquei para aceitar o cargo de Director - nessa altura também tinha a minha profissão de funcionário da Emissora Nacional - e para pelo menos desenvolver e dar uma certa personalidade, uma certa identidade, ao jornal, era semiprofissionalizar os quadros redactoriais. Porque aquilo funcionava assim: para a edição de terça-feira, durante o dia, havia uma pessoa na Redacção que era o Nuno Mota. O Paula Bastos, revisor e chefe de Redacção, vinha às seis da tarde do seu emprego. E depois havia o Carlos Arsénio, que vinha da Companhia dos Telefones ao fim do dia, o Eduardo Castro que também vinha do seu trabalho. O Rodrigo Pinto era um colaborador...

RODRIGO PINTO - 60 escudos por mês...

ARTUR AGOSTINHO - Daí eu ter colocado uma questão prévia: ter pelo menos uma base mínima de pessoal fixo no jornal.

- Que base mínima foi essa?

ARTUR AGOSTINHO - Arranjar um chefe de Redacção permanente, e depois ter três redactores que eu fiz contratar: o Carlos Arsénio, o Luís Rodrigues, o Nuno Mota e o Amadeu José de Freitas. Ficámos com uma base para pelo menos à segunda-feira, depois dos jogos, procurar este ou aquele treinador ou jogador. A administração do "Diário Popular" aceitou esta situação. Começou assim a criar-se a semiprofissionalização, começou a aumentar-se o jornal para 16 páginas. Mas o projecto ambicioso era sair à quinta, porque as competições europeias da véspera tinham uma cobertura exaustiva, e boa, de "A Bola", e o Record só podia aparecer ao sábado a fazer aquilo que fazia à terça em relação ao campeonato.

- Nunca se pensou numa edição de domingo?

ARTUR AGOSTINHO - O Manuel Dias tinha essa ideia, mas nessa altura punha-se um óbice em relação ao domingo: não havia facilidade de transportes dos jornais para o resto do país. Arriscávamo-nos a fazer uma edição de domingo de manhã que quando chegasse a Guimarães, Braga, etc., já os jogos se estavam a realizar.

RUI CARTAXANA - Os ardinas também se recusavam.

ARTUR AGOSTINHO - Havia muitos problemas. O despique com a "A Bola" era difícil para nós porque eles estavam implantados, e é sempre difícil tirar alguém do lugar que ocupa. Havia um período de um/dois anos em que o jornal tinha de investir na quinta-feira não com a ambição imediata do lucro. Aí entrou a discordância do Monteiro Poças em fazer um jornal que jogava muito nas ambições futuras. Opôs-se sempre. Ficou zangado comigo, nem sei porquê, deixou-me de falar. Aliás, zangava-se facilmente com as pessoas.

JOÃO MARCELINO - Mas também fazia as pazes muito depressa.

ARTUR AGOSTINHO - Era um coração muito generoso, ajudava as pessoas, mas tinha esse feitio um bocado para o "trombudo".

- O Artur Agostinho falava da edição de quinta-feira...

ARTUR AGOSTINHO - Sim. Quando se falou no jornal de quinta-feira coloquei logo a questão da necessidade de uma reestruturação de quadros. Fizeram-se muitas coisas. As primeiras viagens ao estrangeiro, desde logo. Consegui repescar o Afonso Lacerda, que por ser secretário- geral da Federação Portuguesa de Futebol tinha uma grande rede de conhecimentos no estrangeiro. Era um bocado complicado para pagar às pessoas, mas começou a haver umas verbas para isso. O Poças não concordava muito.

No fundo, confesso, o meu plano era este: com as coisas que tinha para fazer na RTP e na Emissora Nacional não podia ter o tempo todo disponível. Propus ao "Diário Popular" arranjar um subdirector a prazo que passaria a ser, depois de implantado o processo, o Director. Eu sairia e ficaria apenas como colunista. O Mário Zambujal foi chamado, aceitou, formámos uma equipa com o Hernâni Santos, o Afonso Praça, o Francisco Assis Pacheco. Arranjou-se uma equipa de grandes colaboradores. E depois vieram os acontecimentos do 25 de Abril... O meu projecto falhou, ficou a meio, mas resta-me a consolação de ter lançado os alicerces que foram importantes para a continuidade

JOÃO MARCELINO - O Rui Cartaxana disse há pouco que houve dois momentos que considerava importantes na vida do jornal: um deles, a reprivatização, estou de acordo. O outro, faço a ponte com aquilo que disse o Artur Agostinho. O Record ainda nessa altura funcionava com as bases que o Artur Agostinho lançara: ou seja, era um jornal de semiprofissionais. Era um edifício onde pessoas que gostavam de desporto, nomeadamente de futebol, se encontravam ao final da tarde para trabalhar.

RUI CARTAXANA - Concordo.

JOÃO MARCELINO - Mas isso vai um bocado para além do que você disse. Foi preciso criar uma equipa de profissionais. Eu próprio, o João Cartaxana e o Rui Dias, que agora está em "A Bola", para além do Director do jornal, fomos os primeiros. E isso é que marca definitivamente a afirmação do Record, porque sem essa gente a trabalhar todos os dias não era possível fazer um bom jornal.

ARTUR AGOSTINHO - Essa parte de semiprofissionalização estava prevista como uma primeira fase para depois se passar à profissionalização a tempo inteiro. Foi essa que depois veio a realizar-se.

JOÃO MARCELINO - Porque o Record já podia aliciar quem acabava de sair das Universidades. Record estava para os candidatos a jornalistas como hoje os clubes, por exemplo, estão para os profissionais. É que ninguém quer trabalhar nos clubes. Não dão garantias. Na altura, nós também não dávamos essas garantias. Mas a reprivatização é que abre o caminho a tudo isso. E, já agora, reprivatização que tem uma história curiosa porque eu e o Rui Cartaxana formávamos o núcleo central de uma Cooperativa que podia ter tido algo a dizer na vida do Record. Infelizmente para nós não teve.

RUI CARTAXANA - Fomos os primeiros adjudicatários.

JOÃO MARCELINO - Ganhámos o concurso público.

RUI CARTAXANA - O Estado, quando privatizou o Record, fez um concurso público com base de licitação de 175 mil contos. Nós, jornalistas do Record, fizemos uma Cooperativa, constituída por doze jornalistas (Rui Cartaxana, João Marcelino, José Mateus, João Cartaxana, Moura Dinis, Santos Costa, Alves de Carvalho, Carlos Arsénio, Ricardo Tavares, Rui Dias, António Capela e Santos Costa) e concorremos, fazendo uma aliança prévia com o Grupo Semanário, do José Miguel Júdice, e o Grupo do Gonçalves Pereira. Cada um deu 2 mil e 500 contos e depositámos os 5 mil contos. O concurso foi aberto e oferecemos 205 mil contos. O Estado reuniu, analisou as propostas e adjudicou-nos a nós. O segundo concorrente era SESD (Sociedade Editora do Semanário Desportivo), o terceiro, PEI do Santana Lopes.

O Record tinha uma dívida de 97 mil contos ao "Diário Popular" e em todas as privatizações o Estado assumiu a dívida. Menos no caso do Record. Os outros jornais iam à praça a zero e nós tínhamos que pagar os cerca de 90 mil contos. Era muito dinheiro naquela altura.

JOÃO MARCELINO - Era metade do valor do Record, mais ou menos

RUI CARTAXANA - Os nossos sócios largaram tudo.

JOÃO MARCELINO - Lembro-me de uma expressão do Júdice: "Isto paga-se com o pêlo do cão." Ele tinha a certeza que o Record era viável. Só que isto também acontece num período em que o José Miguel Júdice acaba por se afastar do "Semanário". A empresa "Semanário" decide afastar-se do apoio à nossa Cooperativa e o Gonçalves Pereira não teve, como se costuma dizer [sorrisos], coragem, para seguir sozinho. Hoje, creio eu, apesar de ser um homem com quem simpatizamos muito - ficou nosso amigo desde esse tempo -, ele não deixará de concordar que esse terá sido um dos maiores falhanços da sua vida empresarial: o não ter assumido sozinho o financiamento, através da Cooperativa, da compra do jornal.

RUI CARTAXANA - Como não comparecemos à assinatura da escritura o Estado deu ao terceiro concorrente...

JOÃO MARCELINO - O terceiro não era só a PEI, era uma sociedade dividida em quatro partes iguais: a PEI, a Invesmédia, a Vasp (que dentro dela tinha 50 por cento de Carlos Barbosa do "Correio da Manhã" e 50 por cento de Pinto Balsemão) e também 25 por cento do empresário Stefano Saviotti.

RUI CARTAXANA - O dr. Pedro Santana Lopes é que assumiu a cabeça do projecto, e quando ouvi ler as condições da escritura que foi assinada caí das nuvens: a escritura, lida pelo director de serviços Tavares Rodrigues, dizia que a PEI tinha comprado o Record livre de encargos...

- A edição de segunda-feira foi um passo para avançar para a passagem a diário?

JOÃO MARCELINO - Houve uma fase em que o Record andou a descobrir o sábado, a terça, o domingo, mas a grande afirmação do Record faz-se quando passamos a achar que temos condições concretas para começar a disputar os dias que já estavam descobertos, e foi quando passámos para a segunda-feira. Ou seja: a "A Bola", ano e meio ou dois anos antes, tinha ocupado o domingo, que era um dia nosso, e nós volvido um ano e meio, dois anos - e demorou muito tempo não por vontade da Redacção mas porque não tínhamos a cobertura da administração, que era uma administração ligada às coisas do Estado, com outros interesses que não apenas os da Empresa -, viabilizámos a segunda-feira.

A partir daí passámos a ser candidatos ao jornal diário. Jornal diário que era, não sei se sabem - tive a felicidade de conhecer os três fundadores, apesar de ter quarenta anos, menos dez do que o Record -, um sonho do Manuel Dias. Almocei e jantei várias vezes com o Manuel Dias, no restaurante A Mó, do pai do Marinho, o que jogou no Sporting, e que gostava de reunir algumas pessoas do Record. E ele, Manuel Dias, várias vezes me «chateava» e «picava»: "Quando é que o Record passava a diário?" Isto há cinco, seis anos atrás. Ele já achava que havia caudal informativo e mercado para um jornal diário desportivo português

- O que faltava então para avançar para a edição diária?

JOÃO MARCELINO - A nível do mercado não faltava nada. Estava tudo o que lá está hoje. A nível da empresa faltava solidificar um quadro profissional, faltava a ambição por parte da administração. Hoje, o Record é uma empresa cotada em bolsa. A partir do momento em que saiu a taluda ao Manuel Dias, o Record já fez com que saíssem várias taludas a várias pessoas. É uma empresa à volta da qual se fazem transacções excelentes.

ARTUR AGOSTINHO - O não haver um diário desportivo nos anos cinquenta e sessenta não era falta de coragem das pessoas que gostavam de jornais, como o próprio Manuel Dias, que sempre sonhava com isso. Era a falta de condições de mercado para isso. Não havia mercado. Era um suicídio, nessa altura, sair com um jornal desportivo diário. Até porque a condição económica do comprador não lhe permitia adquirir o jornal todos os dias. A capa do jornal começou por ser um escudo e quando foi para um escudo e cinquenta já era muito.

FERNANDO FERREIRA - Quando saímos custávamos um escudo e a "A Bola" vendia-se nessa altura a um escudo e cinquenta.

ARTUR AGOSTINHO - Um café custava oito tostões.

JOÃO MARCELINO - Eu, no meu tempo, ganhava à hora.

RODRIGO PINTO - Trabalhei no Record como colaborador, já com o Artur Agostinho como Director. Estava eu no "Século", ganhava aqueles ordenados óptimos que o Monteiro Poças pagava, 30 escudos, 40 escudos. Uma assembleia geral, que durava uma noite inteira, era paga a 50 escudos. Mas queria ressalvar e lembrar aqui a memória do Poças e do Paula Bastos, duas pessoas que me ajudaram particularmente e que também tiveram uma acção importante nesta reestruturação. Queria também lembrar o Luís Rodrigues e dizer que, de todos os directores que estão aqui, encontro-me numa posição um bocado ingrata. Primeiro, nunca fui Director de forma efectiva, só sub-Director e Director interino, e apanhei o chamado período do 25 de Abril e do PREC. Com muitas confusões, com muitas complicações, das quais eu não vou falar, porque envolve pessoas que ainda estão na profissão, ainda estão vivas.

Quando eu saí do Record, no jornal 2668, de 18 de Setembro de 1975, a minha mensagem de saída foi a de desejar ao Record e a todos os trabalhadores do jornal as melhores felicidades, e o desejo que as coisas avançassem. Hoje, o Record é um jornal de referência nacional e internacional.

Queria apenas dizer que disseram-se algumas coisas a meu respeito e do Artur Agostinho completamente erradas. Tive para com o Artur Agostinho a maior lealdade. Fui substituir o Mário Zambujal. Tentei demonstrar isso mesmo, uns anos depois, quando fui presidente do CNID, ao pedir a medalha de mérito desportivo para o Artur Agostinho que não tinha. Isso parecia-me uma lacuna dos governos anteriores.

- Apanhou uma fase má...

RODRIGO PINTO - Apanhei realmente uma fase péssima do Record, a do 25 de Abril. Não tem nada a ver com o 25 de Abril, mas sim com o que se passou a nível de redacções de jornais da altura. Eu penso que está por fazer a história do 25 de Abril no jornalismo português. Não passa só pelo Record, passa pelo "Mundo Desportivo", "Século", "Diário Lisboa", "Diário Popular"...

Uma noite, o Record recebeu ordens para fechar. A 28 de Setembro de 1975. Ao contrário do que as pessoas dizem, os jornalistas do "Diário Popular" fizeram muita força para que o Record fechasse.

RUI CARTAXANA - Estava, nessa altura, no "Diário Popular" e tenho aqui uma informação preciosa a dar...

- Que é...

RUI CARTAXANA - Quem salvou o Record, numa famosa RGT (Reunião Geral de Trabalhadores), foi um senhor chamado José Manuel Rodrigues dos Santos, de quem o Poças sempre falava. Saltou para cima de uma das mesas - refira-se que o PCP estava apostado no fecho do Record, alegando que o jornal dava prejuízo - e virou a Assembleia a votar o não encerramento do Record. Em nome dos companheiros, dos camaradas que iam perder os empregos. Um bocado demagógico, mas notável. É ele, José Manuel Rodrigues dos Santos, que era da UDP, quem salva o Record de ser fechado. Uma das pessoas que discursou a pedir o encerramento do Record foi até um destacado jornalista do "DP", e há muita gente que no Record nunca lhe perdoou isso, e bem. Afastaram-no quando ele foi proposto para Director.

JOÃO MARCELINO - Posso confirmar isso. Eu fazia parte do Conselho de Redacção. O primeiro nome que nos foi apresentado em Conselho da Redacção foi, precisamente, o desse jornalista. Não o conhecíamos, mas sabíamos do papel que tinha desempenhado na história do Record. E nós dissemos: "Toda a gente, quem quiserem, este senhor não". E foi assim que ele foi rejeitado pelo Conselho de Redacção do Record.

RODRIGO PINTO - Depois da informação do Conselho da Revolução e do plenário da Sociedade Industrial de Informação ["Diário Popular"] tivemos a possibilidade de dar a volta ao texto. Uma vez que o "Mundo Desportivo" estava a fechar, tentámos ver qual era a viabilidade de fundir os dois jornais num só. Isso não foi possível e então conseguimos uma coisa que foi, do meu ponto de vista, a salvação antes da reprivatização: juntar duas pessoas da administração do "Diário Popular" da altura, o dr. Lopes Rocha e o engenheiro Perestrelo, que mais tarde foi para a "Gazeta dos Desportos". Acoplámos essas duas pessoas a Monteiro Poças. E na parte da Redacção fiquei eu, o Luís Rodrigues, o Humberto Vasconcelos, e mais tarde António Jorge Almeida. Fizemos um Conselho de Gestão da Sociedade Editora Record, que passou a ter reuniões semanais, criámos um processo de a publicidade aumentar, criámos a "Rádio Record" na Madeira, com o Fernando Correia. Tentámos por tudo e mais alguma coisa dar a volta para que os números das dívidas baixassem.

Por outro lado , nesta altura, apesar de todas as dificuldades, entrámos já no regime que o Artur Agostinho queria impor, de uma certa profissionalização. Alguns profissionais que hoje são de gabarito no nosso jornalismo trabalharam no Record: Sena Santos, José Leite Pereira, Nélson Veiga, Humberto Vasconcelos.

- Pelo meio houve uma alteração do logótipo...

JOÃO MARCELINO - E até chegou a ser publicado.

RODRIGO PINTO - [mostrando a edição do jornal] Era para tentar pôr um anúncio aqui em cima, ao lado.

FERNANDO FERREIRA - Foi uma atitude revolucionária de muito mau gosto, desculpe que lhe diga.

RODRIGO PINTO - Tudo bem, mas não foi por minha iniciativa.

ARTUR AGOSTINHO - O Rodrigo Pinto citou aqui o nome de algumas pessoas. Era curioso que nessa altura havia muitas pessoas que tomavam posições opostas de um dia para outro. Ele citou o nome de um administrador, que foi um dos elementos que participou na "salvação" e que durante a minha permanência como Director do Record, já depois do 25 de Abril, até 28 de Setembro, me pressionou para acabar com o Record.

RODRIGO PINTO - Eu sei, eu sei.

ARTUR AGOSTINHO - O dr. Lopes Rocha. Pressionou-me por todos os meios. Jogava com um pau de dois bicos. Houve muita gente que se passou para herói e antes foi carrasco.

RODRIGO PINTO - São situações muito complicadas e a história ainda está muito fresca. Mas ao contrário do que as pessoas dizem, a Redacção do Record logo a seguir ao 25 de Abril, e antes do 28 de Setembro...

ARTUR AGOSTINHO - ... Deu-me duas moções de confiança e depois deu-me uma de desconfiança

RODRIGO PINTO - Mas essa você sabe como é que foi.

JOÃO MARCELINO - Não vivi o 25 de Abril aqui, apanhei-o como leitor, mas talvez o Record se tenha envolvido demasiado politicamente. De qualquer forma, isso foi um mal de todos os jornais da altura. No princípio da década de 80 e até na fase da reprivatização, o jornal ainda estava na fase da ressaca desse período. Era um jornal que também não tinha nada a ver com o de 1970 que, na minha opinião, até era bastante bom.

RODRIGO PINTO - O jornal do Artur Agostinho, anterior a mim, foi de longe o jornal que melhor nível de redactores teve.

JOÃO MARCELINO - Há pouco o Rodrigo Pinto lembrou algumas pessoas. Ao fazermos a história do Record deve-se recordar Rogério Paula Bastos, Monteiro Poças e um terceiro nome que foi muito importante na história do Record, que marcou muito o jornal pela sua forma de viver o dia a dia, o António Capela. Foi um repórter fotográfico, mas dentro da organização do jornal foi muito mais do que isso. Quando se fala da história do Record deve-se lembrar os fundadores, sim senhor, muita gente, mas não se deve esquecer o António Capela, porque foi de uma grande dedicação ao jornal, adorava o Record. Tinha uma maneira muito particular de ser e desperdiçou talento. Podia ter sido muito mais do que aquilo que fica dele para a história. Era um grande repórter. Não era um homem de grandes requintes técnicos mas tinha um sentido de reportagem como hoje em dia não há muitos.

RUI CARTAXANA - Era um verdadeiro repórter.

- É pela mão do Capela que João Marcelino entra no Record...

JOÃO MARCELINO - É. É uma "cunha" que alguém mete ao Capela. Não interessa quem foi, em 80, 81. Tenho muito orgulho em ter entrado pela mão dele. Já agora: das pessoas que estão aqui sou o mais jovem (eu ainda não era nascido no ano em que o Record foi fundado), mas tenho um tempo de permanência contínuo no jornal que é quase de certeza o maior de todas as pessoas que aqui estão nesta mesa. Tenho quase vinte anos de jornal e entrei com uma cunha [sorriso] . Felizmente agora já se entra por mérito e por selecção.

ARTUR AGOSTINHO - O Capela, é justo salientá-lo, era de uma grande dedicação ao jornal, mas não só ao jornal. Era de uma grande dedicação às pessoas com quem lá trabalhava. Eu quero lembrar que fiz um jornal desportivo no Brasil, enquanto lá estive, um jornal português chamado "Portugal Esportivo", e o Capela mandava-me todas as semanas envelopes de fotografias sem cobrar um tostão.

RUI CARTAXANA - O Capela tinha uma espécie de central fotográfica: ele não ia lá, mas a Redacção precisava de uma foto e ele arranjava. Ia buscar fotografias de acontecimentos em que não tinha estado.

ARTUR AGOSTINHO - E apesar da concorrência ele dava-se muito bem com o Nuno Ferrari.

JOÃO MARCELINO - O Nuno Ferrari de "A Bola" e do Benfica, e o António Capela do Record e do Sporting, não tinham nada para ser amigos, mas eram de uma amizade ímpar e trocavam material com frequência.

RODRIGO PINTO - Respeitavam-se muito profissionalmente.

JOÃO MARCELINO - Eu trabalhava no "Correio da Manhã" nessa altura e de domingo para segunda-feira precisava de fotografias. Ligava ao Capela e ele mandava entregar-me. Daí a uns tempos, era sempre muito tempo, porque os jornais eram pouco profissionais, quando aparecia lá para lhe pagar ele não queria receber, já não se lembrava...

RODRIGO PINTO - Eu quando estive como chefe de Redacção do "Notícias da Beira", em Moçambique, o Capela fazia exactamente a mesma coisa. O Capela é uma figura que pela sua maneira de ser não foi talvez tão notória como o Nuno Ferrari, mas para mim, como pessoa, era um homem excepcional.

ARTUR AGOSTINHO - Ele sabia mais do que se passava no Sporting que os próprios dirigentes.

JOÃO MARCELINO - Há uma história gira que se passou com um treinador, e não é um treinador qualquer, o Di Stefano, um dos melhores jogadores mundiais de todos os tempos. Como é costume, Di Stefano esteve aqui uma semana ou duas a treinar o Sporting e foi-se logo embora. Ele dizia que tinha sido despedido por um fotógrafo maluco que mandava mais que o presidente.

- Rui Cartaxana: há pouco falou que a reprivatização foi um dos momentos mais importantes na história do Record...

RUI CARTAXANA - O Record devia 90 e tal mil contos ao "Diário Popular", que era o sócio maioritário, com 87,3 por cento. O restante era do sr. Poças. Por exemplo, o que acontecia era que o "Diário Popular" sobrefacturava sobre o Record. O papel custava no mercado 7 contos e eles debitavam 9 contos e quinhentos ao Record. "A Bola" era nessa altura impressa no "Diário Popular" e quando fui ver e comparar os preços caí das nuvens. O "Diário Popular", dono do Record, debitava à "A Bola" qualquer coisa como três contos e tal por cada página e ao Record sete contos.

Numa reunião do Conselho de Administração levantei este problema. Era presidente o prof. Eduardo Trigo. Indignado, disse-lhes que o Record estava a ser estrangulado e assim não havia crescimento possível. Como é que eles debitavam ao jornal "A Bola", que era um concorrente nosso, por cerca de metade do que debitavam a nós?

RODRIGO PINTO - Ainda havia mais uma coisa. "A Bola" era feita na mesma tipografia que o Record, mas o Record ficava sempre para o fim.

RUI CARTAXANA - E sempre na máquina pior.

ARTUR AGOSTINHO - Uma das grandes lutas do Brás Medeiros era favorável ao Record. Várias vezes foi à tipografia "arraiar a giga" aos chefes da secção.

RUI CARTAXANA - Que eram todos empregados de "A Bola"

JOÃO MARCELINO - Acho que vale a pena dizer isto porque a maioria das pessoas que lêem os jornais se calhar não sabe. O Record e a "A Bola" são dois jornais que têm as respectivas sedes a 150 metros e isso originou uma grande proximidade entre os dois jornais, que tinha efeitos na casa de máquinas, com este efeito perverso que o Rui Cartaxana já contou. Era mesmo assim. O Record tinha o património delapidado exactamente pela Administração que mais devia zelar por ele.

A rivalidade que se estabeleceu entre os dois jornais é muito acentuada pela proximidade geográfica das duas sedes. As pessoas encontram-se, ao almoço, ao jantar, nos serviços. Tudo isso acentuou a rivalidade entre os dois jornais.

Outra coisa que o Rui Cartaxana não se lembrou: os dois jornais eram ainda feitos no chumbo e aquando da passagem para o off-set inventou-se uma máquina para o Record andar durante uma série de tempo a testar para que quando ela estivesse rodada passasse para o jornal "A Bola". É tudo isto que marca a rivalidade entre os dois jornais num determinado período. E é por isso que se calhar deu muito mais gozo a uma certa geração de jornalistas do Record emancipar-se dessa situação. Nós, hoje, quando somos líderes do mercado, e olhamos para trás, temos um certo gozo, o Rui Cartaxana, eu, e todas as pessoas que estiveram connosco estes anos todos. Porque não vencemos apenas a concorrência de um jornal, vencemos muitos boicotes, muitas injustiças, coisas muito graves. Inclusivamente, tivemos de vencer obstáculos internos.

RODRIGO PINTO - Em relação ao facto de o Record ter andado a testar o off-set, foi de tal maneira que no dia 10 de Dezembro de 1974 houve uma edição que ficou na máquina.

ARTUR AGOSTINHO - É um fait-divers mas é importante: sabíamos que um dos chefes de oficina no "Diário Popular", o Dâmaso, tinha uma gratificação de a "A Bola".

JOÃO MARCELINO - Mais isso.

ARTUR AGOSTINHO - Embora o Dâmaso fosse colaborando, aparentemente. Quando tínhamos uma "caixa", combinávamos com o Paula Bastos, fazíamos, por exemplo, um título a três colunas, ia para cima para compor, e nos guardávamos o título verdadeiro que à última da hora trocávamos. Tinha de ser mesmo assim, porque era uma espionagem permanente, dos próprios chefes de oficina.

RUI CARTAXANA - As oficinas do "Diário Popular" eram dominadas pelos trabalhadores de "A Bola". A justificação que a Administração me deu já depois da reunião atrás citada foi: "Você está-se a referir ao nosso maior cliente", ao que eu respondi: "Pois é, mas o senhor está a promover a "A Bola" à custa do Record." Em termos económicos, e isto pode parecer estranho a muita gente, parte do crescimento de "A Bola" foi feito à custa do Record.

JOÃO MARCELINO - Por exemplo, o chefe do sector de fotocomposição do "Diário Popular", o centro nevrálgico daquilo tudo, pois era onde os textos passavam antes de serem publicados, era, já na altura, colaborador e jornalista de "A Bola". Ou seja, durante toda a tarde tinha acesso a tudo o que nós publicávamos. Mesmo no meu tempo, chegámos a fazer algumas vezes aquilo que o Artur Agostinho contou, o de esconder os títulos.

RUI CARTAXANA - A reprivatização é que vai dar a volta a isto tudo. Com a nova Administração, a defender interesses privados, não entrando em grupos destes, o jornal começou a crescer e rebentar por todos os lados, como uma árvore cheia de vida.

Mas conto só mais esta: dois ou três anos depois de ter vindo a nova Administração, o Record conseguiu comprar papel mais barato do que aquele que era utilizado no "Diário Popular".

- João Marcelino: quando chegou ao Record, no início da década de oitenta, que visão tinha do jornal?

JOÃO MARCELINO - Era um privilégio ter a oportunidade de fazer uma coisa que eu sempre sonhei vir a fazer, ser jornalista ligado à área do desporto. Agora isso não fazia com que eu não reconhecesse que naquela altura, na década de 80, o Record era o mais fraco dos três jornais desportivos. Eu lembro-me que nessa altura gostava mais de ler o "Mundo Desportivo" que o próprio Record. Penso que uma fusão dos dois jornais teria sido fatal. O "Mundo Desportivo" teria acabado à mesma e teria sido fatal para o Record.

ARTUR AGOSTINHO - Acabava também.

JOÃO MARCELINO - Esse foi também um dos momentos-chave que vencemos. Conseguimos convencer o senhor Poças, que tinha alguns defeitos (do ponto de vista económico-financeiro de retribuição das pessoas tinha todos os defeitos que a gente se puder lembrar e mais alguns [sorriso]) mas do ponto de vista humano era uma pessoa excelente. Se soubesse que alguém estava em dificuldades ele emprestava do bolso dele. Era capaz de tirar a camisa para dar. E ouvia muito as pessoas. Conseguimos, muitos de nós acabados de chegar, com pouca experiência, fazer com que ele entendesse que essa fusão dos dois jornais não evitaria o fecho do "Mundo Desportivo" e, com certeza, iria acabar com o Record. Ele tomou nota disso e, felizmente, conseguimos ir por aí adiante.

RODRIGO PINTO - O "Mundo Desportivo" enfermava dos mesmos problemas do Record. Era o segundo jornal de uma empresa, o "Diário de Notícias".

JOÃO MARCELINO - Resumindo: entrei no Record com muita vontade, mas não deixava de reconhecer os defeitos da organização. Felizmente, porque também foi entrando muita gente que lá está hoje, foi possível construirmos um núcleo que foi fazendo com que a empresa pudesse crescer.

RUI CARTAXANA - Quando cheguei à Redacção do Record...

JOÃO MARCELINO - ... era tudo amador!

RUI CARTAXANA - Era tudo gente que chegava lá depois de sair do emprego, como o Artur Agostinho já disse. Incluindo o Carlos Arsénio, que passava por profissional, mas que só chegava lá depois de sair dos CTT.

JOÃO MARCELINO - E mesmo aqueles que só viviam da profissão também chegavam ao Record depois de terem trabalho noutro jornal. Aliás [dirigindo-se a Rui Cartaxana] isto começou por você próprio. Ainda trabalhou no "Diário Popular" e no Record.

ARTUR AGOSTINHO - Era o caso do Luís Rodrigues, que saía do "Diário Lisboa" e ia para o Record.

RUI CARTAXANA - Eu já era director adjunto do Record e continuava a trabalhar no "Diário Popular", onde era na altura subchefe de Redacção.

- No tempo do Fernando Ferreira, como era?

FERNANDO FERREIRA - Eu e os dois fundadores não ganhávamos um tusto. Fazíamos despesas, almoços e jantares no Bairro Alto, deslocações nos nossos carros...

RUI CARTAXANA - Posso fazer-lhe uma pergunta? Por quanto é que você vendeu a sua quota ao Brás Medeiros?

FERNANDO FERREIRA - Todos os colaboradores ganhavam uns parcos escudos, apareciam na Redacção depois dos seus empregos, mas mesmo assim conseguimos ter ideias inovadoras. A primeira foi aos sábados, quando o Alves dos Santos começou fazer as previsões dos jogos, havendo também as equipas prováveis. As pessoas iam para os estádios, os jogos eram sempre aos domingos às 15 horas ou 16, conforme fosse de Inverno ou de Verão, já com muita informação sobre o que iam ver. As direcções dos clubes colaboravam connosco, adiantando as equipas que iam alinhar. Às vezes era eu que telefonava, para o Boavista, para o Salgueiros, para o FC Porto, e as direcções davam-nos essas equipas...

JOÃO MARCELINO - Já viu agora nós ligarmos ao sr. Pinto da Costa para saber a equipa provável...

FERNANDO FERREIRA - Pois é, mas naquela altura foi um grande tiro. O "Mundo Desportivo", que saía à sexta, não tinha nada disso. Chamámos a essas secções "Os jogos de amanhã vistos de véspera" e "As equipas para amanhã". Depois, e aproveitando os contactos internacionais que eu tinha das minhas viagens no atletismo, tivemos alguns colaboradores internacionais. Chamava-se do "Estrangeiro escrevem-nos", e logo no nº 1 tivemos Alex James, que foi um grande jogador, internacional, inglês. Fizemos também "a selecção da opinião pública", para a qual contribuíram 4792 leitores, entre os quais fizemos um concurso, que permitiu a três deles assistir, em Madrid, a um Espanha-Portugal. Em 52, tivemos o primeiro concurso, em que atribuímos três viagens aos Jogos Olímpicos.

RUI CARTAXANA - Está bem, mas diga lá por quanto é que vendeu?...

FERNANDO FERREIRA - Tínhamos também um desenhador, o Natalino, que nos fazia uma caricatura semanal, uma inovação, a que chamámos "A graça da semana". Posteriormente lançámos a "Figura da semana" e as cartas ao director, que se chamava "O público escreve-nos". E tínhamos a "légua nacional", corridas por todo o país, cujos finalistas distritais vinham a Lisboa disputar a final. Isso serviu para lançar o jornal em todo o território. Tínhamos também uma coluna de arbitragem que já naquele tempo vivia muitos problemas, feita pelo Oliveira Machado, árbitro retirado. Era o "Consultório do futebol", podendo o leitor fazer consultas. O público simpatizou, assim, com o jornal. E só assim se explica que "A Bola", que também saíra aos sábados para nos deitar abaixo, não o tenha conseguido fazer, e que o "Mundo Desportivo", que estava ligado ao poderoso "Diário de Notícias", tenha acabado.

JOÃO MARCELINO - Bem, isso fez com que o jornal evoluísse, crescesse e você vendeu a sua quota por quanto?

- Sim, está na hora de revelar números. Pode ou não dizer quanto lhe valeu a venda?

FERNANDO FERREIRA - Eu tinha casado e estava aflito de massas. Foi por alturas do 25 de Abril, em 74. Por isso quis vender a minha quota e propus o negócio a várias pessoas, desde o presidente do Benfica, dr. Fezas Vital, ao Brás Medeiros, do "Diário Popular", que já detinha 51% do Record. Ele resolveu comprar. Ofereceu-me 300 contos e eu não insisti mais.

RUI CARTAXANA - Ouvi dizer que foi mais... E então o Poças e o Manuel Dias ficaram ricos...

JOÃO MARCELINO - Mas o Manuel Dias e o Poças não venderam nessa altura. Ficaram mais vinte e tal anos e quando venderam já foi por muito mais dinheiro...

RUI CARTAXANA - ... 25 mil contos.

FERNANDO FERREIRA - Vejam lá o dinheiro que eu perdi.

JOÃO MARCELINO - Durante a reprivatização cada uma das outras quotas valeu 25 mil contos.

ARTUR AGOSTINHO - [Para Fernando Ferreira] Mais uma vez o Poças te bateu nas contas...

FERNANDO FERREIRA - Vamos lá ver se me dão uma compensação agora...

RUI CARTAXANA - Eu ouvi falar em 800 contos. Mas, mesmo os 300 que ele fala, agora seriam para aí uns 30 mil...

JOÃO MARCELINO - Mais, muito mais...

FERNANDO FERREIRA - Foram 300. 150 investi nuns fundos que estiveram congelados 15 anos. Mas depois valeram o dobro. Com o outro dinheiro fui passear com a minha mulher e o meu filho.

- Foi difícil conquistar o público, que estava habituado a outros jornais?

ARTUR AGOSTINHO - O Fernando Ferreira disse e bem que o Record caiu no goto dos leitores. E caiu porquê? Conquistou uma massa desportiva que gostava das modalidades. Embora não fossem muitos, mas cada modalidade tinha um grupo de pessoas adeptas e o Record, ao contrário de "A Bola", que era só "pontapé na bola", dava espaço a essas modalidades. "A Bola" procurava mesmo desvalorizava esta atitude, mas acabou por ir atrás de nós.

FERNANDO FERREIRA - O primeiro Director-Geral dos Desportos, o dr. Armando Rocha, elogiou também o facto de nós também darmos o "Desporto Escolar/Desporto Universitário", com os resultados do desporto universitário e dos campeonatos das escolas secundárias, algo em que "A Bola" nem tocava.

- Outros dos problemas com que os jornais se debatiam na altura, e que já foi aqui abordado por alto, eram, para além dos meios humanos, os técnicos...

ARTUR AGOSTINHO - Nos tempos heróicos do Record, e de outros jornais, íamos ao estrangeiro e tínhamos de andar à procura de uma cabina telefónica, ainda antes de haver máquinas de gravação, e ditávamos os textos. Era uma complicação. Depois apareceu o telex, e, mesmo assim, em algumas das cidades mais desenvolvidas da Europa, era preciso andarmos de madrugada à procura de uma estação com telex, porque os hotéis não os tinham. Uma vez na Hungria, tive que dar o artigo a uma menina, que não percebia nada de português, para bater o texto. O Poças ia morrendo quando viu a conta. Aquilo custou um balúrdio.

JOÃO MARCELINO - Quando cheguei ao jornal, em 80/81, ainda só funcionávamos com o telefone e com o telex. Na década de 70 e grande parte da 80, não houve grande evolução no jornal...

ARTUR AGOSTINHO - ... enviar as fotos, então, era terrível. Chegava-se aos aeroportos e perguntava-se: "Quem é que vai para Lisboa?" E eles traziam o envelope. Depois telefonava-se e dizia-se é o sr. James Smith, que vai no voo número tal e leva um envelope para o jornal.

JOÃO MARCELINO - ... E por vezes não o encontravam no aeroporto e era um problema, não havia fotografias. Isso foi ainda uma realidade durante quase toda a década de 80. Começa-se a juntar pessoas, a melhorar o produto, a contratar gente com mais cultura, mas a falta de meios continua.

ARTUR AGOSTINHO - Sabem como é que eram contratadas as fotografias para publicar? A gente chegava ao hotel e falávamos uns com os outros para decidir como era. Uma vez eu, o Alfredo Farinha e o Ricardo Ornelas fizemos isso em Itália. Chamámos um fotógrafo e dissemos-lhe o que queríamos: quatro, cinco, nove fotos. Se possível com os golos todos. Depois dividíamos os golos, cada um ficava com um. O Ornelas, dessa vez, pôs-se à porta do hotel e apanhou o fotógrafo aí, enquanto nós o esperávamos no hall, conforme estava combinado. E "sacou-lhe" as fotografias com os golos. E depois só nos dizia "no goals, no goals!"

JOÃO MARCELINO - E às vezes não se conseguia comprar fotografias, comprava-se rolos. Uma vez comprei um rolo em branco, não tinha nada lá dentro. Hoje o Record mete na Internet a fotografia de um golo, enviada de trás da baliza, em poucos minutos.

RODRIGO PINTO - Então veja-se este exemplo do que era a paginação [mostra um original de um texto antigo]. Este era um artigo do Artur Agostinho, que ele mandou já com o desenho da página, e que depois o Conselho de Redacção não deixou que saísse.

ARTUR AGOSTINHO - Em 74, quando vim do Campeonato do Mundo de futebol, entrei de férias e mandava os originais para publicar. Este artigo chamava-se "Alves dos Santos - recusa digna à despromoção". Isto não foi publicado e eu, no dia seguinte, comprei o jornal lá em Colares vi e telefonei ao Rodrigo Pinto. "Eh pá, o Conselho de Redacção não deixou publicar", disse-me ele. Era a liberdade de Imprensa...

- Rui Cartaxana, após a sua entrada esses meios técnicos evoluíram bastante. Passou-se aos computadores, à paginação electrónica, etc., etc. Como é que se processa essa evolução?

RUI CARTAXANA - A nova administração, privada, passou por várias fases. Durante três ou quatro anos mudou de mãos várias vezes e só estabilizou quando o sr. Berardo se apoderou dos 100% do capital e a própria Administração ganhou estabilidade.

JOÃO MARCELINO - A década de 80 divide-se em dois períodos. Antes e depois da reprivatização.

RUI CARTAXANA - É de justiça dizer que o sr. Berardo, em todas as fases da vida jornal e apesar de ter feito excelentes negócios - como ele próprio reconheceu agora -, em operações de engenharia financeira em que ganhou milhões e milhões de contos, nunca interferiu no jornal, nunca tentou influenciar ou criar influências. E é com ele, é a partir daí, que é possível, com o apoio da Redacção e em particular do João Marcelino, nessa altura já na Chefia de Redacção - onde também houve muitas oscilações e que só a partir da entrada do Marcelino ganhou a necessária estabilidade -, e porque estivemos quase sempre de acordo na reivindicação dos avanços técnicos, que pudemos dar vários saltos qualitativos. Cito a cor, que foi um grande passo e esse demo-lo à frente de "A Bola".

JOÃO MARCELINO - Não fomos o primeiro jornal desportivo a fazê-lo, mas fizemo-lo à frente de "A Bola". O primeiro foi a "Gazeta dos Desportos".

RUI CARTAXANA - Posso contar um episódio curioso. O nosso presidente do Conselho de Administração, que ainda é o mesmo, chamou-me porque a nossa passagem à impressão a cor criou um certo "pânico" em "A Bola", e houve muitas pressões para deixarmos de o fazer. Isso prova que a nossa passagem à cor foi importante e criou reacções estranhas na concorrência.

JOÃO MARCELINO - Houve quem tentasse que o Record trocasse a cor por...

RUI CARTAXANA - ... Outras vantagens.

JOÃO MARCELINO - Uma das ameaças, julgo eu, era que se nós insistíssemos na cor, eles avançariam para diário. "Venha essa guerra", dissemos nós.

RUI CARTAXANA - Depois há, é verdade, essa luta surda pela passagem a diário.

- Um pequeno atraso de Record em relação a "A Bola" nessa corrida...

RUI CARTAXANA - Um atraso ligeiro, porque a Administração teve inicialmente receio da passagem a diário. Se não tivéssemos envolvido nisto o patrão, teríamos demorado ainda mais algum tempo. Tínhamos a sensação que havia um receio mútuo. "A Bola" tinha medo que nós avançássemos e nós que "A Bola" passasse à nossa frente

JOÃO MARCELINO - Há um elemento que é preciso frisar. Já tinha havido um jornal diário, "O Jogo" (numa primeira fase, que não esta), que não tinha triunfado. Mas não tinha triunfado, segundo a nossa perspectiva, não digo que não tivesse qualidade, mas porque não era um projecto que pudesse ter tantos meios como nós. Então evocava-se esse falhanço como uma prova definitiva em como não havia mercado para jornais diários. Nós contestávamos isso.

RUI CARTAXANA - Numa festa de aniversário de Record, eu, mais ou menos combinado com o João Marcelino, e aproveitando a presença do sr. Berardo, ali à frente dos empregados todos, fiz uma espécie de repto ao sr. Berardo e à administração que era o de passarmos a diário. O sr. Berardo, logo ali, respondeu que sim e virando-se para a Administração disse: "Se vocês estão convencidos que isso irá ser um sucesso, avancem". A Administração precisava dessa voz, sem a qual não tinha coragem ou não queria correr o risco de avançar, e a partir daí começámos a preparar a passagem a diário.

JOÃO MARCELINO - Isto passa-se em finais de Novembro, e a passagem a diário a 1 de Março. "A Bola" antecipou-se quinze dias. Nós também o podíamos ter feito, mas não o quisemos porque no nosso calendário ainda havia coisas a fazer, e mais quinze menos quinze dias não era isso que nos ia dar ou tirar vantagem.

- Após uma semana de diário, que conclusões tiraram?

RUI CARTAXANA - Lembro-me que, desde que se tornou público que íamos passar a diário, desde a minha própria família, a amigos, jornalistas, directores de outros jornais, que me encontravam diziam todos: "Vocês vão-se espalhar. Não vêem que não há mercado para três jornais desportivos diários? Como é que vão encher 40 páginas? Não há notícias, não há assuntos desportivos para encher um jornal diário, quanto mais três. Isso é uma loucura".

JOÃO MARCELINO - Hoje, 48 [páginas], já são poucas...

- Atendendo a esta grande evolução e às novas tecnologias, o que se pode esperar de Record no futuro, depois da edição «on line» na Internet?

JOÃO MARCELINO - Não vou falar de projectos que Record esteja a equacionar e queira fazer avançar. Digo só que há muita coisa onde nós podemos inovar. Mas isso tem de ser assumido dentro da empresa. Desde a última década que estamos habituados a que os outros jornais desportivos venham a reboque de nós. Há uma crítica que se aponta aos três jornais desportivos em Portugal e com a qual estou de acordo: é que os jornais são muito iguais. E estão muito iguais porque muitas coisas que nós fizemos na última década foram repetidas. Muitas rubricas. A própria grelha do jornal. A organização interna. Coisas em que Record inovou nos últimos dez anos e que hoje são o paradigma da organização dos outros diários. E é por isso que acho que Record tem muita coisa a fazer. Mas haverá outras alturas melhores para falar nisso.

ARTUR AGOSTINHO - Eu que estou de fora acho, pelo menos, que a globalização do mercado, principalmente do europeu, pode proporcionar outras iniciativas.

RODRIGO PINTO - Eu estou muito mais fora ainda. Mas há uma coisa que penso, não só em relação ao Record, mas em relação ao próprio Estado, ao governo e aos jornais de uma maneira em geral. Desde o tempo do ministro Roberto Carneiro que falo nisso. Fazer uma rubrica no género daquele "O que é feito de si?". Um suplemento de coisas, pessoas, factos que estão perdidos. A própria Federação Portuguesa de Futebol não tem uma história do desporto, do futebol nacional.

JOÃO MARCELINO - Não sei se sabe, mas estamos a fazer o livro dos 50 anos, que vai ser um dos pontos altos das comemorações.

RODRIGO PINTO - É óbvio que não sabia.

JOÃO MARCELINO - Nós já tínhamos publicitado isto. Mas antes eu falava em termos de futuro. Também gostava de falar de um passado recente. O que Record fez nos últimos anos e fez muita coisa.

- Os tais projectos que levaram a reboque todos os outros jornais...

JOÃO MARCELINO - Demos memória ao futebol português, que não tinha. As Revistas Record, com as separatas, a primeira das quais sai?...

- Em 90...

JOÃO MARCELINO - Sim, em 90. Nos últimos oito anos, essas revistas deram essa memória que o futebol português não tinha, com registo dos resultados, as biografias dos protagonistas. Esse é um trabalho que vai continuar no futuro.

RODRIGO PINTO - Mas o hóquei em patins, com toda projecção que teve nos campeonatos do Mundo, o próprio Joseph Venglos, há toda uma série de gente de quem as pessoas não tem memória.

JOÃO MARCELINO - Estamos a fazer alguma coisa e isso vai preencher esse vazio. Mudando de tema: hoje em dia todo o jornal tem um provedor e muitas vezes os jornais diários de informação geral quando falam disso esquecem propositadamente o primeiro jornal que em Portugal teve um Provedor dos Leitores, que foi o Record.

ARTUR AGOSTINHO - Há pouco eu falava da Europa, mas nada impede que amanhã, conforme a penetração do jornal - e eu não conheço os números - em países de língua e de expressão portuguesa, se justifique, semanalmente, um pequeno suplemento feito localmente.

JOÃO MARCELINO - Sim. Principalmente quando esses países ganharem estabilidade. E depois, tudo o que aí vem no âmbito da informação. O que é que vai ser a Internet daqui a uns anos?

- Poderá acabar a edição em papel dentro de dez/vinte anos?

JOÃO MARCELINO - Mesmo eu, que tenho 40 anos e que sou muito mais novo que as outras pessoas que aqui estão, tenho alguma dificuldade em aceitar que a informação possa dispensar de todo o contacto físico com o papel. Essa dependência ainda vai demorar muito tempo a desaparecer, se desaparecer. A leitura no papel é um momento de reflexão insubstituível.

ARTUR AGOSTINHO - Eu tenho mais, tenho quase o dobro. Pensou-se, quando a rádio apareceu, que a Imprensa estava liquidada. Quando a televisão surgiu pensou-se que era a rádio que estava arrumada. Quando veio o automóvel achava-se que o eléctrico deixava de existir. Quando veio o avião acabava tudo menos o avião. Mas nada acaba. As coisas ficam todas.

JOÃO MARCELINO - O que eu acho é que assim como a rádio e a televisão, a Internet vai ser um fórum da notícia em primeira mão. Mas o espaço de reflexão, de opinião e de grande reportagem vai ser sempre no papel. O explicar a notícia, agarrar os fios todos e explicá-la, enquadrá-la, vai ser sempre o grande papel da Imprensa escrita. E vai demorar algum tempo a mudar isto.

RUI CARTAXANA - Tenho uma ideia um pouco diferente. Não por razões de ordem concorrencial com os outros meios, porque a durabilidade e a consistência de um contacto físico é insubstituível, mas por motivos que estão relacionados com o esgotamento dos recursos de papel, que estão ameaçados. Estou convencido que dentro de uma década o uso do papel vai ser drasticamente reduzido e que os jornais, mantendo embora uma parte da sua publicação em papel, vão passar a ser telemáticos.

RODRIGO PINTO - Estou ligeiramente de acordo com o Rui Cartaxana. O contacto físico é importante, mas a redução drástica de papel vai obrigar, possivelmente, a que se reduza o número de jornais. Em vez de cinco generalistas e três desportivos, se calhar passará a haver um ou dois. Não deve ser por acaso que em Portugal cada vez são menos as empresas que comandam a Comunicação. Neste momento são três.

ARTUR AGOSTINHO - Oh Rodrigo Pinto, eu sou um bocado atirado para a frente nisso. As reservas, os recursos próprios para fazer papel, podem extinguir-se, mas acredito no espírito inventivo do homem que há-de arranjar alternativas. Então as reservas petrolíferas não podem também acabar? Já se começou a reciclar, e há-de haver outras alternativas. O homem não pára.

JOÃO MARCELINO - Claro que sim. Mas que também não fiquem dúvidas quanto a isto. A edição electrónica de Record tem alguns meses, avançou em Março deste ano, e com certeza que vai ser uma grande aposta desta empresa, como de qualquer outra. A informação no âmbito da Internet terá muitas vertentes: a escrita, a imagem. O direito à informação, os três minutos de televisão nos jogos de futebol, como é? Tudo isto está por legislar. Vem aí uma revolução. Mas voltando atrás: assim como eu acredito que a Internet não vai acabar com o livro, não acredito que vá acabar com os jornais. Também acredito que haverá uma outra substância qualquer que vai substituir o papel. De resto, não esqueçamos que estamos a falar de Portugal. Há jornais, nos Estados Unidos, que num dia gastam mais papel que todos os jornais portugueses juntos em vários dias! O papel é como a água, como o petróleo.

ARTUR AGOSTINHO - Uma certa economia de papel é possível. O "Expresso", por exemplo, tem papel que a maioria das pessoas não lê. Eu faço logo uma selecção. Não é preciso tanto papel, embora a exploração publicitária também conte. Mas vai demorar muitos anos até que acabe. Não estaremos cá quando acontecer.

JOÃO MARCELINO - Aqui é das poucas coisas na vida em que estou de acordo com o presidente do V. Guimarães. O que hoje é verdade amanhã pode ser mentira. Temos de estar todos os dias a reflectir e a ver o que aí vem.

RUI CARTAXANA - Claro, estar preparados para isso.

JOÃO MARCELINO - Neste momento, hoje, não acredito que o papel vá acabar nos jornais nos próximos dez anos. Mas façam-me a pergunta daqui a um mês. Se calhar já tenho outra posição.

- O Rodrigo Pinto mostrou há pouco o original de um texto do Artur Agostinho que foi impedido de ser publicado. No Record, os mais velhos aqui presentes tiveram problemas com a censura?

ARTUR AGOSTINHO - Devo dizer que no jornal, no jornal desportivo, nunca tive problemas com a censura. Noutros lados tive.

FERNANDO FERREIRA - Quando teve problemas foi radical, foi preso.

ARTUR AGOSTINHO - Não. Devo dizer que até havia o princípio de mandar os textos para a censura, mas os jornais desportivos não eram obrigados a mandar tudo. Eu era raro mandar. Mandava uma ou outra coisa para marcar posição, mas nunca tive censura. Nem os redactores que lá trabalhavam. Nos jornais diários é que havia esses problemas.

RODRIGO PINTO - No meu tempo, e não falo como redactor do "Diário de Notícias" porque aí tive gravíssimos problemas com a censura, quando passei por director do Record e também por "O Jogo", tive ameaças concretas. É que ser director, naquela altura em que eu fui, era muito complicado. Estava constantemente a ser pressionado pelo Conselho de Redacção, que me dizia se podia ou não ser publicado este ou aquele texto. Nem me lembrava que aquele texto do Artur Agostinho não tinha sido publicado, mas houve outros redactores que escreveram outras coisas que também não foram autorizadas a ser publicadas. Houve um determinado período, logo a seguir à revolução, quando a Direcção-Geral dos Desportos tinha determinada orientação política e determinada cor, em que o jornal apareceu muito virado para essa cor, em que houve muitos assuntos que não foram autorizados a ser publicados pelo Conselho de Redacção.

- E outro tipo de pressões e influências, sobretudo dos homens fortes do futebol, dos clubes? Esse todos sentiram?

FERNANDO FERREIRA - Nos 13,5 anos em que fui director não houve problemas nenhuns de censura. Passados dois ou três anos do início do Record, houve a sociedade com o "Diário Popular" em que o director era o dr. Brás Medeiros, sportinguista de gema, presidente da direcção do Sporting durante vários anos. Eles detinham 51% da Sociedade Editora Record, e ele nunca deu "dicas", nem nunca influiu em absolutamente nada. Houve duas pequenas histórias com o Sporting, mas sem influência. Não é como agora que os clubes cortam relações com os jornais. Nós, os fundadores, éramos os três do Benfica, e nunca houve problemas.

ARTUR AGOSTINHO - O dr. Brás Medeiros, quando entrei para director do jornal, chamou-me ao gabinete, e disse-me: "Sr. Artur Agostinho, o sr. vai para director do jornal Record, mas não é para favorecer o Sporting. É pelo menos para deixar que não o prejudiquem". Nunca exerceu a menor pressão sobre mim, nem sobre qualquer pessoa do jornal.

Havia, no entanto, clubes e dirigentes que procuravam pressionar. Os dirigentes então utilizavam certos métodos que acho condenáveis. Procuravam dar às escondidas informações dos seus próprios clubes para servir os seus interesses e políticas pessoais. Alguns redactores, ou colaboradores, com menos formação, ficavam um pouco nas mãos desses dirigentes que lhes forneciam informação. Informações que por vezes nem eram correctas. Sei que também há hoje dirigentes que procuram por diversos meios exercer algumas pressões ou fazer passar algumas ideias.

JOÃO MARCELINO - Isso faz parte do jogo da vida. Tentar influenciar faz parte da vida e acontece em todas as sociedades. Não pode ser visto na perspectiva dramática do lobo que quer comer o cordeirinho.

ARTUR AGOSTINHO - Está mas mãos dos jornalistas não se deixarem influenciar.

JOÃO MARCELINO - Está nas mãos dos jornalistas ter qualidade, ter cultura, ter independência financeira - is, so está , nas mãos das empresas -, e ser inteligente, saber viver com isso, com este ambiente de informação e contra-informação.

RUI CARTAXANA - Estou inteiramente de acordo, mas quero colocar aqui uma adversativa. De facto, os dirigentes dos clubes detêm, ou julgam deter, um poder muito grande e às vezes servem-se desse poder de maneira pouco ética e ameaçadora. A minha experiência como director do Record levou-me a alguns choques com dirigentes de clubes e outras entidades desportivas. E dentro de certos limites algumas vezes senti que me estavam a ameaçar. Por coisas que escrevia ou por posições que o jornal tomava. Lembro-me de um presidente de um clube com quem tentei fazer um apaziguamento. Fomos almoçar e o senhor disse-me que as coisas seriam normalizadas se os jogos e os acontecimentos do clube "dele" passassem a ser feitos por uma lista de três jornalistas de Record.

JOÃO MARCELINO - E o que isso significava? Algum desses três sabia alguma coisa disso?

RUI CARTAXANA - Não. Ele julgava que essas pessoas estavam em posição que favoreceria o clube ou que teria alguma influência sobre eles. Mas não foi só esse caso. Houve pessoas do futebol que me fizeram chegar recados ameaçadores.

RODRIGO PINTO - No tempo do Jorge Gonçalves houve coisas que escrevi que me trouxeram problemas, não com a censura, claro está, mas com os sócios do Sporting.

ARTUR AGOSTINHO - É a mesma pressão que eles exercem indirectamente sobre os árbitros. Sempre recomendei por onde passei que uma das maneiras de resistir a essas pressões era evitar o mais possível a promiscuidade e a aproximação aos agentes desportivos.

JOÃO MARCELINO - Isso é uma grande verdade.

ARTUR AGOSTINHO - Às vezes fico aflito quando verifico publicamente que certos jornalistas tratam por "tu" jogadores e dirigentes, Também há ministros e pessoas, que na minha intimidade, trato por "tu", mas publicamente não o faço. Até os jogadores de futebol dizem "o Vale e Azevedo". Dá logo a ideia de uma promiscuidade e uma aproximação. Ou os jornalistas, "olha lá, oh Vítor Pereira". Acho que isto dá ao público uma ideia de grande proximidade. Se o jornalista evitar - e hoje tem condições económicas para não aceitar sequer certos convites para andar nos copos com dirigentes -, atenua, em mais de 50%, essa possibilidade de pressão. Aprendi isso com uma história de há muitos anos, no Barreiro, em que o Barreirense jogava com o FC Porto. O jogo estava empatado, o Barreirense marcou um golo em fora-de-jogo. O árbitro anulou e eu disse que foi bem anulado. Antes, de manhã, tinha sido convidado a ir ao almoço da inauguração do Ginásio Desportivo, convite que me tinha sido feito por um dirigente do Barreirense que também era funcionário da Emissora Nacional. Receberam-nos, ofereceram-nos uma "baucalhauzada". No dia seguinte, depois de eu dizer que o golo tinha sido bem invalidado, esse mesmo dirigente, no hall da Emissora, veio dizer-me que era indecente o que eu tinha dito. "Vieste dizer no comentário que não tinhas gostado da atitude dos jogadores do Barreirense. Mas gostaste do bacalhau com batatas". Nunca mais. Meti 20 escudos num sobrescrito, que era o preço médio de um almoço nessa altura, e mandei-lho entregar...

JOÃO MARCELINO - Gostava de dizer que este ponto é chave. Tenho um ano de director, mas doze de chefe de Redacção. Tentativas de influenciar há muitas. Mas pressões concretas para isto ou aquilo, nunca tive. Nem ameaças. Na história dos últimos dez anos houve talvez uma guerra que o Record travou, guerra entre aspas, de opinião, que envolveu algumas pressões. Mas nem sequer tem a ver com clubes, mas com um conhecido empresário, e por isso nem sequer é relevante. O jornalista deve ter muitas fontes, deve falar com muitas pessoas, mas esses contactos devem ser o mais possível de carácter oficial. Quando falo com um qualquer dirigente, não tenho conversas que não possam passar num qualquer telejornal da maior estação televisiva portuguesa. Assim defendo-me a mim e defendo-o a ele . É evidente que há muitas maneiras de pressionar. Mas se o dirigente de uma federação qualquer quiser escolher um seleccionador e me quiser ouvir, com certeza que não ouve, porque eu não dou opinião. Se numa conversa informal, o presidente de um clube quiser saber a minha opinião sobre o jogador A, B ou C, eu não dou. Se soubermos ser um pouco inteligentes, deixamos de fazer parte dessa rede e as pressões não fazem sentido.

RUI CARTAXANA - Não estou inteiramente de acordo. Cheguei a ter 26 processos judiciais ao mesmo tempo e isto é uma forma de pressão. E não me esqueço jamais do famoso comício das Antas contra o nosso redactor Vítor Pinto. Considero que aquilo foi uma manobra intolerável de pressão.

JOÃO MARCELINO - Mas conseguiram alguma coisa?

RUI CARTAXANA - Não conseguiram nada, claro está. Mas fizeram-na em público e em directo numa cadeia de televisão. E os processos judiciais são terríveis. Andei metido oito meses num julgamento em que não era legalmente réu. Mas como na petição inicial o nosso advogado não acautelou uma determinada situação, o juiz, a quem lembrei no primeiro julgamento que, segundo a Lei de Imprensa, numa entrevista o director não podia ser responsabilizado, disse-me que isso só ficaria definido na sentença. E fui, a seis sessões, ao Porto, sentar-me ao lado do arguido, sr. Barata, ali como Pilatos no credo. O juiz só me desobrigou na sentença final. Estive oito meses a ser massacrado, mesmo com a lei a isentar-me de culpa.

JOÃO MARCELINO - Mas nós não temos sempre razão. Também há que falar do poder do jornalista que muitas vezes não sabe medir o poder da sua caneta. Quando se fala em censura, pensamos que estamos na posição em que tudo aquilo que escrevemos deve ser publicado, tudo o que escrevemos é verdade. Achamos que devemos escrever e que aquilo é uma verdade inexpugnável. E muitas vezes não é assim. Por isso é que, por vezes, dentro dos jornais, há, não é censura, mas o procurar de uma melhor qualidade de informação, o que leva a algumas fricções internas. E essa é boa ser exercida porque as direcções e as chefias de jornais não devem demitir-se das suas responsabilidades, e por uma questão de puro corporativismo, não podem estar sempre de acordo com aquilo que os jornalistas escrevem. E eu, como diria um conhecido treinador de futebol, sei bem daquilo que estou a falar, porque sou jornalista profissional há 20 anos e já vi muita coisa.

ARTUR AGOSTINHO - Eu felicito aqui o Marcelino por esta atitude anticorporativista, porque na verdade há um espírito de corpo que leva a considerar que os árbitros são todos bestiais. Não é verdade. Mas também não é verdade que os jornalistas sejam todos bestiais.

JOÃO MARCELINO - Muitas vezes não é só por errarem que são maus. Tem é que haver quem lhe diga "isto está errado", "isso não se publica", "isso não se faz", " não voltas a fazer isto".

ARTUR AGOSTINHO - Dantes o chefe de Redacção ou o Director chamavam-nos. "Oiça lá, veja lá, isto não me parece correcto e toda a gente pensa que não é assim. Pense". Isto não é censura.

- Na vossa passagem pelo Record há, certamente, coisas de que se orgulham e coisas que lamentam. Que balanço fazem enquanto directores do jornal?

FERNANDO FERREIRA - O Record foi como uma competição desportiva. Como pratiquei desporto desde os 16 anos (atletismo durante 14 e futebol nos juniores e na segunda categoria do Benfica, voleibol oito anos no Benfica, mais o andebol, dois anos), sei que esta competição desportiva nos dá um elan especial para qualquer luta na vida. E esta do Record foi uma luta terrível. E o orgulho que eu tenho, é que, se não fosse eu, posso dizê-lo com propriedade, não estaríamos agora aqui. O Record estava programado com quatro mosqueteiros, à última hora um dos mosqueteiros que vem aqui na capa [mostra o nº1], desistiu [Afonso Lacerda], e o Monteiro Poças foi jantar para o Nicola - o chefe de Redacção tinha desistido ele desistia também. Estávamos nós - eu, o Manuel Dias, que tinha a instrução primária, e o Paula Bastos, que era o nosso revisor e do "Diário de Notícias" e empregado de um Ministério qualquer - na Redacção do "Diário Popular", porque o Record era impresso e composto na tipografia do "Popular", e o Record não saía. Foi o Alves dos Santos, com quem falei, que convenceu o Poças.

ARTUR AGOSTINHO - Da minha parte, sinto um pouco de frustração por não ter podido concluir um projecto que se iniciou com a criação do semiprofissionalismo e depois a passagem à terceira edição. Eram tudo etapas e degraus que estavam programados para atingir um objectivo que felizmente, outros, mais tarde, conseguiram. Essa é a minha frustração. Era preciso um pouco de paciência, muito trabalho, saber esperar. Era preciso investir, era preciso começar por perder alguma coisa, para depois ganhar. Não o pude fazer. Mas tenho muito orgulho de ter arriscado a proposta da terceira edição, de ter defendido a ideia de profissionalismo. Tenho orgulho de alguns trabalhos profissionais, da formação de alguns colaboradores, vendo a melhoria que alguns atingiram com conselhos que lhes dei. Tenho, sobretudo, orgulho, de não ter deixado uma imagem má e negativa como director do jornal. Não pude fazer mais, não foi possível, não me deixaram. Tenho pena de não ter podido fazer melhor. Mas estou satisfeito, não tenho nada que me arrepender.

RODRIGO PINTO - A minha passagem pelo Record foi muito ocasional, jamais alguma vez tinha pensado ser director do Record e não gostei nada de o ser nas condições em que o fui. Por isso ficou uma marca a dois tempos. Por um lado alguma satisfação porque foi possível que o Record não tivesse acabado numa altura em que se fez tudo para que ele acabasse, a vários níveis. Tal como o Artur Agostinho, também me sinto altamente frustrado porque apesar de ter conseguido que o Record não acabasse, não se conseguiu, de maneira nenhuma, criar as condições para que fosse uma empresa rentável. É muito agradável para mim, que passei pelo Record mais que uma vez, verificar o progresso do jornal, que foi possível, com todo o esforço e sacrifício de uma série de gerações, para que agora, primeiro sob a batuta do Rui Cartaxana e depois do João Marcelino, tenha a categoria que todos lhe reconhecem.

RUI CARTAXANA - Orgulho-me de ter aproveitado da melhor maneira possível as vantagens da privatização do jornal. Orgulho-me da passagem a diário, que foi possível, a partir de certa altura, com o apoio da Chefia e da Redacção. Orgulho-me de ter conseguido crivar e pacificar a Redacção de uma forma que considero notável. Nos jornais naquela altura, e no Record, havia um ambiente de intriga e maledicência. Conseguimos, em pouco tempo, um ambiente despoluído, com todos os fogos, com todos os desentendimentos que são inevitáveis, mas um ambiente de trabalho tranquilo. Se vocês forem ver o que se passa em outros jornais... É de pôr os cabelos em pé. Penso que contribuí para isso. Orgulho-me de um conjunto de conquistas técnicas, jornalísticas e outras, para as quais contribuí com tudo o que me foi possível e que transformaram, nestes 14 anos, um jornal pouco mais que incipiente e sem muito crédito, num jornal de referência, num grande jornal, neste momento e sem discussão, no primeiro jornal desportivo do país.

JOÃO MARCELINO - Não tenho nenhum balanço a fazer. Não posso estar aqui a dizer que me orgulho disto ou daquilo quando ainda estou no activo. Orgulho-me fundamentalmente de ter colaborado em muita coisa ao longo destes 20 anos. Sobre mim e sobre o que estamos a fazer, não é altura própria para fazer um balanço. Mas identifico-me com muita coisa que foi aqui dita. Record tem hoje um grupo de trabalho notável, de gente jovem com muitas qualidades, e a única coisa de que me quero vir a orgulhar no futuro, quando um dia deixar de exercer estas funções, é de ter contribuído para um projecto editorial que dignifique todos os que trabalham desta casa e que seja reconhecido cá fora como um projecto profissional, credível e independente de todos os poderes. Se alguma coisa distingue o jornal no panorama da Imprensa desportiva, penso que é essa posição rigorosamente ao meio dos interesses dominantes, principalmente no futebol português. Record é um jornal que não sofre pressões, porque tem capacidades para resistir a elas e é um jornal que em todos os momentos procura estar, depois de uma reflexão aprofundada, do lado daquilo que julga que é a razão. Cometemos alguns erros, mas temos tido a nossa linha editorial referendada pelos leitores. Aquilo que eu quero, quando um dia deixar de ser director do jornal, é ver reconhecido lá fora a nossa isenção.

- Já falaram aqui, por diversas vezes, em problemas financeiros. Uma questão que levanta o problema das relações com a Administração. Como é que é que tem sido essa vivência no Record ao longo dos tempos?

JOÃO MARCELINO - Record tem, até nisso, um ambiente "sui generis". O nosso actual Conselho de Administração vem muito na linha daquilo que foi a gestão do sr. Monteiro Poças. Mas, penso eu, todos os Conselhos de Administração são assim e ainda bem que são assim. A Administração e a Direcção do jornal sempre formaram, nos últimos dez anos, uma verdadeira equipa. É evidente que eles vêem as coisas de um ponto de vista mais economicista, nós vemos as coisas do lado do projecto, das ideias. Mas acho que se tem conseguido um equilíbrio importante para a empresa. Nunca deixámos de fazer nada que achámos importante fazer. É verdade que, algumas vezes, como a passagem a diário, por exemplo, fizemo-lo atrasados em relação àquilo que queríamos, mas tem havido um notável consenso e nunca, em nenhuma decisão fundamental, a Administração de Record (posso dizer nos últimos dez anos porque tenho participado nas reuniões), deixou de ouvir a Direcção e a Redacção. Mesmo quando não fizemos prevalecer aquilo que nós entendíamos que era melhor para o jornal, foram-nos apresentadas razões. Essa é também uma das razões do sucesso do jornal e digo-a com toda a franqueza.

RODRIGO PINTO - Com o domínio que o "Diário Popular" ou Sociedade Industrial de Informação, tinha sobre o Record, no meu tempo, não se pode dizer que as relações com essa administração eram boas ou más, porque não havia relações. Já falei disso.

ARTUR AGOSTINHO - É claro que não posso falar dos últimos anos, porque não acompanhei, mas creio que uma das razões por que o Record perdeu, a certa altura, terreno foi (e isto não é nenhuma crítica ao amor ao jornal, à capacidade do Poças, tinha por ele a maior consideração, a maior estima, foi um homem que deu o mais que pôde pelo jornal), porque a Administração tinha uma concepção de economia, de mercado, uma visão empresarial que não se coadunava com a necessidade de fazer produzir e crescer o jornal, em competição com o jornal que estava a ser mais atirado para a frente e que era "A Bola". Esta discordância minha em relação a esse espírito economicista era partilhado pelo próprio Fernando Ferreira, que teve certos desencontros - não lhe quero chamar zangas -, com o Monteiro Poças. O próprio Manuel Dias, apesar das suas limitações, era uma pessoa que ia muito à Redacção e que desabafava nesse sentido, dizendo que não percebia porque é que não queriam arriscar, que ele estava disposto a arriscar. Isso era uma coisa notável. Presto aqui a minha homenagem, nesse aspecto, ao Manuel Dias, uma pessoa que pensou "para a frente". Esses condicionamentos económicos atrasaram o processo do Record. Talvez tenha tido as suas virtudes. É difícil saber se podia ter sido melhor ou pior. Mas, no meu conceito, atrasou bastante o salto qualitativo que Record acabou, felizmente, por dar. Quero dizer que me dá orgulho ter o meu nome ligado a um jornal, que é hoje o jornal desportivo de maior tiragem, de maior audiência, mais moderno de que qualquer outro.

JOÃO MARCELINO - Não infiram daquilo que eu disse há pouco que o Record anda à velocidade que a Direcção gostaria de andar. Não foi isso que eu disse. Disse é que conseguimos fazer sempre uma síntese que não põe nenhuma das partes mal dispostas e que não resulta nos mesmos problemas que nós vemos em outras organizações. É evidente que eu e o João Querido Manha, que faz parte também da Direcção neste momento, muitas vezes não ficamos totalmente satisfeitos. Mas cabe-nos a nós lutar para fazer perceber os nossos pontos de vista.

ARTUR AGOSTINHO - Não seria para mim agradável que neste trabalho fosse menosprezada a tarefa dos fundadores do jornal. Com os erros ou defeitos que possam ter tido. Parece-me importante que ressalte a homenagem - e espero ser porta-voz de todos - que deve ser dirigida aos fundadores do jornal.

RUI CARTAXANA - Estou de acordo com a visão do João Marcelino quanto a este relacionamento com a Administração. É sempre um relacionamento difícil, porque de um lado estão as exigências, as actividades e ideias das pessoas que querem ver o jornal andar para a frente e do outro lado estão, em defesa dos accionistas ou do patrão, os administradores. Esta dicotomia provoca, inevitavelmente, choques. Mas raramente a Administração nos disse que não. Atrasava, o que é uma coisa diferente. Nós queríamos fazer uma coisa depressa, queríamos comprar uma máquina qualquer, e a Administração levava seis meses, porque pedia preços, havia concursos. Protelava, ganhava tempo e dinheiro. Uma vez até aconteceu uma coisa curiosa: a Administração atrasou-se na compra de uma máquina e quando a foi comprar ela custava o dobro e já não havia o modelo que eles queriam comprar, mas outro mais caro. Saiu-lhes o tiro pela culatra. A actual Administração, essencialmente o seu presidente, que é um homem que, como ele próprio diz, administra ao tostão (e isto é o retrato de uma pessoa), era ferozmente rigoroso com os custos. Hoje faço este elogio sem lisonjas, acho que ele foi fundamental para o jornal numa fase em que a seguir à compra, à privatização, chegou e o jornal tinha menos de cem contos no banco...

JOÃO MARCELINO - Não havia dinheiro para pagar os ordenados...

RUI CARTAXANA - ... Os accionistas tinham dado o dinheiro para comprar e disseram-lhe "Governe-se!" E ele teve de fazer com o seu empenho pessoal um crédito bancário para pagar os ordenados. E nesses primeiros anos de uma gestão em que andou a apertar o cinto, teve um papel essencial na fase seguinte no jornal, que foi o salto em frente quando as receitas começaram a entrar e o jornal cresceu. Esse mérito não se lhe tira. É um "unhas de fome", mas foi essencial no salto qualitativo, económico e financeiro, que a empresa deu. Uma vez, quando discutíamos um aumento salarial que ele reduziu drasticamente, disse-me: "Prefiro que fique chateado comigo, mas no fim do mês ter dinheiro para pagar a toda a gente, do que fazer-lhe a vontade e não ter dinheiro para pagar ao pessoal".

JOÃO MARCELINO - Felizmente que a realidade hoje não é essa e se podem discutir os aumentos sem estar a pensar no futuro da empresa. Record é uma empresa florescente, cotada em bolsa, à volta da qual se fazem grandes transações. Independentemente das mudanças no tecido accionista que houve, e houve bastantes ao longo destes últimos sete ou oito anos, nunca isso se reflectiu no dia a dia da empresa. A Direcção do jornal exigia e chefiava o produto jornalístico, a Administração sempre administrou o melhor possível, sem estar preocupada com quem eram os accionistas. E isto é válido para o passado e com certeza que vai ser válido para o futuro.

RODRIGO PINTO - Se é possível sintetizar o êxito do Record de hoje, gostaria de dizer que desde o prof. Fernando Ferreira, como primeiro director e fundador, ao Artur Agostinho, à lembrança do Monteiro Poças, à minha passagem efémera, ao Rui Cartaxana e ao João Marcelino, o que eu tiro de lição desta conversa é que, em circunstâncias completamente diferentes, todos nós vivemos o Record e continuamos a vivê-lo da mesma maneira e com o mesmo empenho.

FERNANDO FERREIRA - Como estive muito ligado ao atletismo, acho que o Record é como uma corrida de fundo: teve princípio, mas não vai ter fim. Nós, no meu tempo, começámos a corrida mal equipados (sem massas) e mal preparados (na altura não havia cursos de jornalismo, mas diz-se que se aprende a jogar jogando e o jornalismo escrevendo), começámos a titubear, até nos implantarmos. Depois houve o período da consolidação. E agora, com o Cartaxana e o Marcelino, é o período de grande desenvolvimento. E a corrida continua. Quando principiámos vínhamos no pelotão da retaguarda, agora vamos no pelotão da frente. E tenho a certeza que é lá que vamos continuar. E não digo que vamos ganhar a corrida, porque isto é uma corrida sem fim.

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