A Liga está mais interessada em cobrar as taxas mensais aos clubes do que em apoiar o desenvolvimento de mascotes. O futebol está em risco de falência, mas nem isso demove a organizadora das competições profissionais. Bonecos animados, com base nos símbolos e cores dos clubes, e uma personalidade montada nas bancas do marketing desportivo, não ganharam ainda o relevo para serem considerados nos orçamentos anuais. Está, portanto, adiado um "negócio da China" que pode dar relevo comercial ao futebol.
Muitos dirigentes continuam a preferir contratar mais um craque brasileiro a desenvolver a mascote e a respectiva estratégia de comunicação. Rentável? Será, embora a maioria dos especialistas em marketing contactados por Record estabeleçam prazos nada animadores para os adeptos mais jovens. Em Portugal, é de esperar que as mascotes convivam nos relvados, e em pequenos bonecos nas mãos das crianças, lá para 2015.
"Há um caminho longo a percorrer em Portugal, e a Liga neste momento tem outras prioridades em termos económicos e de negócio. Além disso, não pode imiscuir-se na criação de mascotes dos clubes, nem no desenvolvimento das respectivas estratégias de comunicação", afirmou António Carlos Ramos, director de marketing da entidade organizadora da SuperLiga.
"A Liga tem como preocupação que os clubes não paguem as taxas mensais [calculadas com base no orçamento, peso económico dos clubes, direitos televisivos e publicidade], e ainda estamos a dar os primeiros passos em muitos aspectos relacionados com o marketing no futebol", acrescentou.
Em Madrid, um miúdo ultrapassou uma vedação para abraçar David Beckham e o acto valeu-lhe uma camisola com o número 23 do novo craque do Real Madrid, além da notoriedade planetária. Estratégia de marketing "merengue", ou acção espontânea, eis a questão. Aquele momento afectivo entre o adepto e o futebolista expõe o quanto pode valer a empatia no futebol. O “Kinas”, mascote do Euro-2004, é esse exemplo também, de acordo com o vice-presidente da Warner Brothers para o desenvolvimento de negócios, Bruno
Schwobthaler.
"Cada vez que o vejo animado, sinto-o como um filho (...) Estamos habituados a criar personagens e a saber o que é necessário para estas serem bem aceites, o exemplo máximo disso é o ‘Bugs Bunny’", afirmou ao Record no final de Junho.
Álvaro Carrilho: «Mascote é como um ser humano»
Record – Que elementos visuais e de conteúdo deve conter a mascote de um clube de futebol?
Álvaro Carrilho – Duas coisas: as características de diferenciação local e as conotações de ordem comportamental. Construir uma mascote é como desenvolver uma personagem de teatro ou cinema, ou desenhar o seu perfil físico e psicológico. A grande diferença é o objectivo da criação. Enquanto objecto artístico serve para a narrativa avançar com credibilidade, um clube deve pesquisar antecedentes culturais da sua região, fazer um levantamento dos tiques positivos das suas populações, e dos defeitos dos seus adversários. E num processo de síntese, chegar a um elemento personificável, ou seja, no final deve ser uma entidade humanizada. Porque todos os valores inerentes à comparação podem ser adoptados e projectados no seu público alvo. No limite, pretendemos que no "efeito mascote" se desenvolva a dinâmica dos contos e das fábulas.
R. – Na criação de mascotes o enfoque é social, para conseguir mais adeptos? Ou contabilístico, para aumentar receitas?
A. C. – Tecnicamente, a mascote é um testemunho. Ou seja, um porta--voz de valores positivos para a marca, clube, empresa ou corporação. O jogo consiste em passar esta ideia: "Não somos nós que dizemos [a corporação ou clube], são os outros que afirmam!" A componente social das mascotes, na comunicação desportiva, tem um papel de captação dos públicos infantil e feminino. E tem três vantagens: enquanto um treinador de futebol tem a responsabilidade de abordar as temáticas relevantes de forma racional, explicando decisões, as mascotes valorizam recursos emocionais como amor, fé e desejo. Em segundo lugar, a mascote deve conter valores culturais, éticos, políticos ou religiosos. Depois de compreendidos esses valores, a gestão de imagem tem de ser rigorosa. O clube tem de controlar tudo o que a mascote "diz", para que bairrismos, xenofobia e outros comportamentos negativos não comandem a comunicação.
R. – Esta vertente, também designada por "marketing social",
está atrasada em Portugal face à Europa e Estados Unidos? Até que ponto?
A. C. – Em termos restritos, não. Temos boas mascotes como o “Gil" da Expo, o "Luzinha" da EDP, e o rei das mascotes e grande caça-patacas “Pirilampo Mágico”. Em termos mais genéricos, sim. No desenvolvimento e "re-style" [remodelação] de marcas desportivas importantes em Portugal, as insígnias não trazem na linguagem gráfica o essencial do que pode ser a mascote do clube. No futebol americano, hóquei no gelo, basquetebol e basebol as insígnias já nascem com uma representação importante da mascote.
Coração das crianças para chegar ao bolso
As mascotes servem para criar receitas e estão vocacionadas, exclusivamente, para o mercado infantil. É o princípio de avaliação elaborado por Ana Matias, especialista em marketing desportivo da ISM. "O princípio das mascotes é só um: criar mais uma fonte de receitas, exactamente como os equipamentos alternativos", afirmou.
"Deve ser feito um manual de comportamento da mascote, contendo as atitudes que toma, se fala ou não, e como se veste. Por exemplo, o “Kinas” [mascote do Euro-2004] não fala, não bebe, nem fuma", diz.
Ana Matias defende que a mascote "deve ser um boneco apelativo para as crianças, que represente o clube através da animação do logótipo, ou de um animal quando existe como símbolo do clube. Mas que também contenha as cores, os princípios e a atitude do clube". Juntamente com o manual gráfico, a mascote é pensada para as várias aplicações de cores, preto e branco, corpo inteiro e meio-corpo, em diversos tamanhos e suportes. Ilustrada, ou em três dimensões, a sorrir ou a gritar. "Uma coisa é indissociável da outra. É reguila ou bem comportado? É agressivo ou tem 'fair play'? Mete-se com as pessoas ou reage apenas?"
Ana Matias defende que a mascote deve ter duas existências. "Uma estática, no merchandising, com o objectivo de gerar receitas para o clube. Receitas essas provenientes do 'target' [alvo] infantil, pelo que é muito importante que reflicta os gostos das crianças e não o dos adultos. Por isso é interessante que seja criada por crianças, se bem que depois essa 'inspiração em bruto' deva ser desenvolvida por especialistas de comunicação."
"Fred" do Manchester e as guerras no relvado
"Fred the Red" [Fred o Vermelho] é a mascote do Manchester United. Mas todos os clubes da Premier League têm uma que acompanha a equipa e ajuda a aquecer o ambiente nos estádios. "Fred the Red" veste-se como um diabo vermelho, o símbolo do Manchester United. Tem a sua própria coluna nos programas de jogos.
É um esquema semelhante ao de outros clubes. No Tottenham, por exemplo, "Chirpy" veste-se como um jovem galo azul e branco e expressa sentimentos, afirma o gosto por encontrar-se com mascotes de outras equipas. E vive num ninho sobre o telhado do Estádio White Hart Lane. "Chirpy" também participa numa competição ao intervalo, entre adeptos da equipa da casa e da visitante.
Outros exemplos de mascotes são um leão no Chelsea e um
santo no Southampton. Também há uma corrida anual entre todas as mascotes, vestidas com os fatos habituais, que determina quem é a mais rápida. Por vezes, no entanto, a competição fica muito feroz e a relação entre mascotes nem sempre é pacífica. Há uns anos, as mascotes dos Wolves e do Coventry, da First Division, um lobo e um elefante, lutaram durante um jogo e tiveram de ser separadas pela Polícia.