Os deuses ao ataque dos bombeiros

O castigo (três meses) a Fernando Mendes demorou 401 dias a ser aplicado...

Os deuses ao ataque dos bombeiros
Os deuses ao ataque dos bombeiros

Durante ano e meio os campos portugueses tiveram três situações disciplinares que envolveram futebolistas e os chamados agentes em serviço no espaço circundante às quatro linhas. Entre fevereiro de 1997 e agosto de 1998, Fernando Mendes (FC Porto), João Pinto (Benfica) e Emmanuel Duah (U. Leiria) envolveram-se em agressões a bombeiros e pessoal de emergência médica.

As decisões dos órgãos competentes da Liga e da Federação Portuguesa de Futebol foram todas diferentes mas nenhuma delas pôs em causa o artigo 115.º, 1, f), do Regulamento Disciplinar da Liga, isto é, o preceito que previa e punia a agressão contra aqueles que a lei defendia como “intervenientes com direito a acesso e permanência no recinto desportivo”. De resto, nem mesmo os recursos apresentados por Fernando Mendes (indeferido pela instância superior) e João Pinto (aceite pelo Conselho de Justiça da FPF) aludem a qualquer interpretação distinta relativa ao célebre artigo 115.º, 1, f), tornado famoso e polémico na altura do julgamento de Hulk e Sapunaru, em 2010, pelos acontecimentos no túnel da Luz.

Altíssima tensão

Os casos que envolveram representantes de FC Porto e Benfica tiveram a enquadrá-los situações de altíssima tensão: a 28 de fevereiro de 1997, os dragões empataram na Amadora, tendo sofrido o golo decisivo (2-2) nos derradeiros minutos, na sequência de uma grande penalidade muito discutida; a 20 de setembro de 1998, as águias perderam em Vila do Conde por números claros (1-3), em jogo que ditou a saída de Manuel José do comando técnico encarnado e, mais relevante ainda, implicou a queda da direção comandada por Manuel Damásio.

No final do jogo com o Estrela, o árbitro António Rola foi alvo da fúria de alguns jogadores portistas, com o brasileiro Artur à cabeça. A questão centrava-se no comportamento dos futebolistas, que o próprio Pinto da Costa considerou “altamente reprovável”; cinco dias depois, porém, o comissário Pereira, líder da força policial no José Gomes, informou que o bombeiro Joaquim Grilo apresentara queixa contra Fernando Mendes por agressão.

Dentada na face

O acórdão da Comissão Disciplinar da Liga, de 3 de abril de 1998, explicita que, aos 55 minutos, um grupo de maqueiros, entre os quais Joaquim Grilo, entrou no relvado para socorrer um futebolista do Estrela. No momento de se retirarem, está escrito, são atribuídas a Fernando Mendes as seguintes palavras: “Mexam-se, mexam-se; vêm para aqui perdidos de bêbado; mexam-se filhos da p....” Ao que Joaquim Grilo “respondeu ao arguido se estava a falar com a mãe”, voltando a utilizar as palavras referidas no processo.

Terminada a partida, Fernando Mendes dirigiu-se ao referido bombeiro, aparecendo por trás, dizendo-lhe: “Como vês estou aqui.” O documento esclarece que “ato contínuo pisou-lhe um dos pés e deu-lhe uma dentada na face direita”. A condenação foi unânime. Cerca de um mês depois, a 8 de maio, o CJ da FPF confirmou a decisão, com os votos de vencidos dos juízes António Madureira e Cerqueira Alves. Tinham passado 401 dias.

Dois socos

Quando se deslocou a Vila do Conde, a 20 de setembro de 1997, o Benfica atravessava tempos conturbados. O treinador Manuel José já era contestado mas, ainda mais relevante, era a própria direção de Manuel Damásio que dependia, cada vez mais, de bons resultados desportivos para cumprir o mandato. A derrota frente ao Rio Ave (1-3) caiu como uma bomba entre a família encarnada. Cinco dias depois do jogo veio a público a notícia mais inesperada: João Pinto agredira com dois socos um bombeiro no túnel de acesso aos balneários, incorrendo assim em pena que ia de seis meses a três anos, ainda e sempre ao abrigo da alínea f) do artigo 115.º do RD da Liga.

A deliberação da CD da Liga foi conhecida a 16 de julho de 1998, ou seja, quase um ano depois. Apesar de uma folha disciplinar recente maculada (“nove jogos de suspensão nas últimas duas épocas desportivas”), a decisão contemplava “a notória prestação de serviços relevantes ao futebol nacional por parte do arguido”, razão pela qual o coletivo adotou “o regime de atenuação especial” resumido na pena “de três meses de suspensão da atividade desportiva e 600.000 escudos (3.000 euros) de multa.”

A 3 de setembro, cerca de mês e meio depois, coube ao CJ da FPF pronunciar-se pela anulação da decisão. Para o conselheiro Arnaldo Marques da Silva, “segundo um princípio do Direito, se temos dúvidas, não podemos condenar”. João Pinto ficou assim livre para jogar em todas as competições.

Um pontapé

Porque não há duas sem três, a 30 de agosto de 1998 o ganês Emmanuel Duah, então ao serviço da U. Leiria, agrediu um maqueiro no momento de ser levado para fora das quatro linhas. Decorria o minuto 77 do jogo em Guimarães; o resultado assinalava 0-0 (assim ficaria até final) quando Duah recebeu assistência por estar a sangrar da cabeça. Os maqueiros, com o objetivo de agilizar o reatamento do jogo, colocaram o corpo do jogador bruscamente em cima da maca, ao que este respondeu com um pontapé. O árbitro, Duarte Gomes, não mostrou logo o correspondente cartão vermelho, fazendo-o apenas quando o ganês saltou da maca, em protesto com os elementos do corpo de bombeiros que o conduziam.

Parte dos acontecimentos ficaram registados televisivamente. Duah, que sangrava da cabeça na altura dos incidentes, veria confirmado posteriormente um traumatismo craniano, facto que sustentou a ideia de que o jogador estava alterado e “confuso” na altura dos ilícitos cometidos. Dois meses depois a CD da Liga aplicou-lhe pena abaixo do mínimo legal: dois meses de suspensão e 220.000 escudos (1.100 euros) de multa. O jogador não recorreu para o CJ da FPF. Claro!

Hospital só ao fim de 48 horas

• O conflito de João Pinto com o bombeiro de Vila do Conde foi marcado, desde o início, por imprecisões e episódios mal contados. Paulo Oliveira, assim se chama o “soldado da paz”, deu entrada na unidade hospitalar dois dias depois do jogo. Abel Maia, então presidente da direção dos Bombeiros Voluntários de Vila do Conde, advogado de profissão, disse a Record que Oliveira “levou dois murros e nem se mexeu” e que “só mais tarde decidiu ir ao hospital”. Esse “mais tarde”, é bom esclarecer, foram 48 horas.Paulo Oliveira apresentou queixa de João Pinto nos tribunais civis, tendo entretanto decidido retirá-la em troca do convite para assistir a um jogo do Benfica no Estádio da Luz. Pior ficou quando, a 3 de setembro de 1998, viu a mais alta instância desportiva não dar provimento à queixa apresentada.

TRÊS CASOS, TRÊS DECISÕES DISTINTAS

Fernando Mendes

A Comissão Disciplinar da Liga puniu o jogador, então ao serviço do FC Porto, a 3 de abril de 1998, por agressão a um bombeiro no decorrer de um jogo na Amadora (28 de fevereiro de 1997). A pena foi de três meses de suspensão e 310 mil escudos (1.550 euros) de multa. O Conselho de Justiça da FPF confirmou o castigo a 8 de maio de 1998.

João Pinto

Então ao serviço do Benfica, foi punido pelo CD da Liga, a 16 de julho de 1998, por agressão a um bombeiro em serviço num jogo em Vila do Conde, com o Rio Ave (20 de setembro de 1997): três meses de suspensão e 600.000 escudos (3.000 euros) de multa. O CJ da FPF decidiu revogar a pena por “insuficiência da prova da agressão” a 3 de setembro de 1998.

Duah

O ganês da U. Leiria agrediu um maqueiro num jogo em Guimarães (30 de agosto de 1998). A 30 de outubro de 1998, apenas dois meses depois, o CD da Liga aplicou-lhe dois meses de castigo (inferior ao mínimo legal admissível) e 220.000 escudos (1.100 euros) de multa. A decisão não teve recurso.

O QUE ESTÁ EM CAUSA

Os três casos aqui referidos, todos eles com decisões diferentes, tiveram como base a aplicação do art. 115.º, 1, f) do RD da Liga, isto é, utilizaram o preceito que previa a agressão contra “intervenientes no jogo com direito de acesso ou permanência no recinto desportivo”, neste caso bombeiros que exerciam funções de maqueiros e pessoal de emergência médica nos jogos.

Tanto a Comissão disciplinar da Liga como o Conselho de Justiça da FPF não tiveram dúvidas (bem como os jogadores arguidos nas suas alegações) na qualificação de bombeiros perante o já referido artigo. E mesmo a divergência no caso de João Pinto teve apenas a ver com “insuficiência da prova da agressão”. Os três casos sustentaram juridicamente a decisão do CD da Liga, então liderada por Ricardo Costa, de punir, anos mais tarde, os portistas Hulk e Sapunaru pela agressão a um steward, no Estádio da Luz, em dezembro de 2009.

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