Ana Rita: «É uma vantagem jogar sem ouvir manifestações»

«Não sou surda-muda!», explicou Ana Rita, central da selecção nacional feminina e campeã em título do 1º Dezembro, que em duas palavras revelou uma enorme vontade de vencer na vida e o sonho de um dia participar num Campeonato do Mundo

Ana Rita: «É uma vantagem jogar sem ouvir manifestações»
Ana Rita: «É uma vantagem jogar sem ouvir manifestações»

NA SELECÇÃO feminina de futebol há uma jogadora especial. Não propriamente pelos dotes futebolísticos, por ser uma defesa inultrapassável ou uma temível goleadora. Simplesmente porque, tendo uma deficiência auditiva, bate-se de igual para igual num mundo - o do futebol - competitivo e exigente.

Ana Rita, de 24 anos, é jogadora do 1º Dezembro há cinco épocas, e titularíssima na selecção nacional. Tem uma deficiência auditiva mas, ao contrário do que se possa imaginar, não tanto na fala.

Aliás, ainda antes de começarmos a entrevista, Ana Rita alertou-nos: "Não sou surda-muda... Sou sim surda!" Parece um caso estranho, mas tem uma explicação fácil e lógica após uma conversa bem agradável, na qual a presença dos pais e o conhecimento da linguagem gestual foram preponderantes.

- Por que é que não se considera surda-muda?

- Sou surda porque realmente não oiço. E não sou muda porque não tenho qualquer problema nas cordas vocais.

- Então consegue falar?

- Não muito bem. Emito sons pouco perceptíveis, mas quando me esforço e não sou preguiçosa percebem-se algumas coisinhas...

- Para uma jogadora de futebol, quais as desvantagens em ser surda?

- Desvantagens... bem, diálogo há sempre. Agora poder jogar concentrada, sem ouvir ruídos e algumas manifestações desagradáveis, é com certeza uma vantagem.

- Jogando como central de marcação, quais as maiores dificuldades?

- É nos treinos que nos preparamos, conhecemos e entendemos, daí as dificuldades serem quase todas ultrapassadas. Depois, em situação de jogo, é uma questão de concentração.

- As coisas não lhe têm corrido mal. Com que sonha ainda no mundo do futebol?

- Fiquei muito feliz quando conseguimos sagrar-nos campeãs nacionais! Jogo no 1º Dezembro e, profissionalmente, estou a terminar o curso de massagista. Mais objectivos... gostava de um dia poder representar Portugal num campeonato do Mundo.

- O que mais a marcou na sua vida desportiva?

- Uma vitória, por 5-2, ao Boavista.

- E pessoalmente?

- A separação entre mim e o meu irmão, após o seu casamento.

- Identifica-se com algum jogador do futebol de alta competição?

- Sim, com o Beto, do Sporting.

- Como analisa o futebol feminino em Portugal?

- Estamos um pouco esquecidas. E para melhorar há que investir. Esta iniciativa deve partir das instituições organizadoras, em consonância com os clubes.

- E o papel das jogadoras?

- Devemos treinar o melhor e o mais possível para que a qualidade seja visível e apreciada.

- Que outras modalidades e diversões ocupam o seu tempo?

- Gosto, e já pratiquei, de natação, ténis e atletismo, mas o futebol é um mundo fascinante e que nasceu comigo. O desporto é a minha paixão. Também adoro ir ao cinema.

- O que acha de o nosso país organizar o Europeu de futebol em 2004?

- O futebol português tem vindo a melhorar de qualidade a pouco e pouco. Por isso, merecemos organizar o evento. Ainda bem que a nossa capacidade foi reconhecida. É bom, para enriquecer o desporto.

O IRMÃO COMO REFERÊNCIA

O ambiente acolhedor, compreensão e respeito pelas necessidades e desejos da Ana Rita são as prioridades para uma boa educação e integração em casa e na sociedade.

Otília Gomes, mãe e tradutora da jovem jogadora, deu-nos a conhecer um pouco melhor a filha: "A Ana está cada vez mais comunicativa. É muito brincalhona, divertida e desinibiu-se um pouco desde que o irmão se casou. O Paulo também é surdo-mudo e, além de ter jogado futebol, foi sempre uma referência para a Ana. Actualmente, vivem muito afastados, porque o Paulo está a morar em Oliveira do Hospital. A distância provocou mais solidão à Ana, mas, por consequência, fez desencadear outras facetas positivas, e talvez, mais sociais. A relação entre eles continua a ser boa, sustentada num enorme respeito e amizade."

Para terminar a conversa não resistimos e perguntámos a Ana Rita qual seria, na sua opinião, o melhor jogador ou o que mais admirava e, sem qualquer surpresa, disse esboçando um enorme sorriso: "Luís Figo, claro!"

EX-TREINADOR ELOGIA ANA RITA

Ernesto Catarino, ex-treinador do 1º Dezembro, conhece Ana Rita há muitos anos. E assegura que a comunicação entre ambos sempre foi fácil, apesar de ter feito alguns sacrifícios...

"A Ana é uma jogadora possante, inteligente e portadora de uma grande capacidade técnica. E a sua forma de estar, posicionamento e atenção redobrada, faz com que ela consiga colmatar o facto de não falar. É uma jogadora de eleição. Digamos que 'fala' muito bem com os pés", analisa Catarino.

O treinador refere ainda que a sua relação com a jogadora, bem como desta com as restantes colegas foi bem sucedida. No entanto, para melhorar a comunicação com a atleta cortou o bigode: "Assim, ela podia perceber, lendo os meus lábios, as palestras e todas as indicações que eu dava. Com as colegas, quem assiste aos jogos pode presenciar que há um bom entendimento técnico-táctico entre todas."

QUE É QUEM

Nome: Ana Rita Andrade Gomes

Data de nascimento: 8 de Agosto de 1976 (24 anos)

Altura: 1,69m

Peso: 66 kg

Habilitações literárias: 12º ano; está a frequentar o 1º ano do curso de massagista/ fisioterapia

Posição: defesa-central

Clube actual: 1º Dezembro (Sintra); golos marcados: 37

Internacionalizações: 39; golos marcados: 2

Clubes que representou: Carcavelos (1990/91 e 91/92); Trajouce (92/93 e 93/94 - vice-campeã nacional) e 1º Dezembro (94/95, 95/96, 96/97, 97/98, 99/00 - actual campeão nacional - e 00/01).

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