Várias publicações internacionais consideraram-no um dos melhores do Mundo do século passado...
1 – O pai doente pelo Benfica
RECORD – Como se processou a sua transferência para o Benfica, numa altura em que tinha apenas 19 anos?
MÁRIO COLUNA – Em 1954, numa deslocação a Lourenço Marques, hoje Maputo, o Sporting defrontou uma seleção local. Eu joguei bem e, no fim, os dirigentes vieram ter comigo, perguntando-me se eu queria representar o clube. Disse que sim mas acrescentei que teriam de falar com o meu pai, um doente pelo Benfica. Não sei qual foi a resposta dele mas sei que o Desportivo (então filial do Benfica) mandou logo um SOS para Lisboa informando que o Sporting estava interessado num avançado-centro do clube. O Benfica respondeu para me colocarem no avião e que viajasse imediatamente. Quando cheguei, o José Águas tinha sido operado a uma apendicite e estava em convalescença. Otto Glória, o treinador, disse-me logo para treinar a avançado-centro. Parece que agradei e nos primeiros jogos nunca atuei nas reservas nem fui suplente na equipa principal. Quando o Águas regressou, passei a ser utilizado como interior-direito e esquerdo ou mesmo como médio. Para mim até foi melhor: joguei mais à vontade.
2 – Padrinho de Eusébio
R – Aceitou bem a função de protetor de Eusébio, quando ele fez o mesmo caminho de Lourenço Marques para Lisboa?
MC – Não tive alternativa. Quando saiu de Moçambique e chegou aqui tinha uma carta escrita pela mãe para me entregar. Fui esperá-lo ao aeroporto mas não sabia que ele trazia esse documento. Abri a carta à frente dele e comecei a ler. Era a mãe, D. Elisa, a pedir para eu tomar conta do filho, porque ele não conhecia ninguém aqui. Dizia mais ou menos isto: "Mário Coluna, é favor tomar conta do meu filho Eusébio." Agarrei no papel e dei-lhe para ele ler, o que fez. Foi o início de uma grande amizade. Ele era muito sossegado. No fim do mês, depositávamos o dinheiro no banco e a caderneta ficou comigo. Todos os meses tinha uma quantia estipulada para gastar: 500 escudos (equivalente a 25 euros). Naquele tempo era bastante bom. Depois levei-o ao alfaiate e comprámos dois fatos. Mais tarde chegou o tempo de namorar a Flora e casar. Eu fui o padrinho da parte dela enquanto da parte dele foi o presidente do Benfica na altura (António Catarino Duarte). Da primeira filha também sou padrinho de batismo. Era como se fosse o pai dele.
3 – Monstro Sagrado
R – Sentia-se mesmo o representante do treinador em campo?
MC – A coisa funcionava assim: os treinadores falavam na cabina, diziam o que tínhamos de fazer mas depois, quando íamos lá para dentro, não tinham a capacidade de intervenção de hoje. As regras na altura eram muito repressivas com a comunicação para dentro de campo. Ficavam sentados no banco e não podiam sequer levantar-se, sob risco de serem expulsos. Por isso o capitão de equipa era ainda mais importante naquela altura. Nunca rejeitei o peso da minha intervenção no jogo. Por isso, tenho de reconhecer que sim, é verdade, no campo de batalha quem mandava era eu. Funcionava como força lá dentro, cada vez maior com o passar dos anos. Mas mesmo quando o capitão era o José Águas, o Otto Glória e o Béla Guttmann diziam que quem liderava no terreno de jogo era eu. Os treinadores que tive naquela altura davam a tática no balneário e diziam que lá dentro quem dava as ordens era o Mário Coluna. Funcionava como o manda-chuva no campo. No Benfica e na Seleção. Também por isso passaram a chamar-me Monstro Sagrado. Foi o Artur Agostinho, grande jornalista e amigo, quem se lembrou disso depois de um jogo que me correu bem.
4 – No topo da Europa
R – Que sensações lhe provocaram as duas finais da Taça dos Campeões ganhas a Barcelona e Real Madrid?
MC – A primeira campanha vitoriosa teve a carga positiva da surpresa, da expectativa que foi crescendo à medida que fomos passando todos os obstáculos. Quando chegámos a Berna estávamos conscientes das dificuldades mas também das fortes probabilidades que tínhamos de ser felizes. O jogo com o Barcelona foi muito difícil. Na primeira parte, depois de um choque, fiquei absolutamente desmemoriado. Andei o primeiro tempo descontrolado e foram os meus colegas que tiveram de me contar o que se passara. No segundo tempo reencontrei-me e tive a sorte de obter um golo que nunca mais vou esquecer: aquele que nos deu a primeira Taça dos Campeões. Na segunda final, com o Real Madrid, aconteceu a mesma coisa. Conhecíamos a força do adversário mas não desprezávamos a nossa capacidade. Estivemos a perder, recuperámos e quando marquei o terceiro golo, com um tiro indefensável, senti que já não iríamos sair derrotados. A partir desse momento fomos senhores do jogo. Um triunfo claro, sem discussão. Uma vitória da raça. Da tal mística que se tornou tão famosa pelo tempo fora.
5 – As três finais perdidas
R – Que memórias guardou das três finais europeias perdidas nos anos 60?
MC – Comecemos pela de Wembley, frente ao AC Milan. Foi a mais fácil de todas as que disputei. Perdemo-la ingloriamente, por lamentável excesso de confiança. Marcámos o nosso golo muito cedo, o que reforçou o otimismo. Depois, quando já estávamos empatados, Trapattoni inutilizou-me (n.d.r.: não foi Trapattoni para sim Pivatelli, embora Coluna tenha mantido sempre a convicção de que foi o antigo treinador benfiquista a magoá-lo). O Eusébio também foi fortemente tocado. E perdemos... Mas nunca me resignei a essa derrota. Com o Inter, em Siro, parecia que ia ser um jogo terrível para nós e não sucedeu assim. Mesmo quando perdemos o Costa Pereira e o Germano foi para a baliza não nos inferiorizámos. Batemos o pé, impusemo-nos e só não empatámos por mera infelicidade, pois tivemos bastantes oportunidades para consegui-lo. No regresso a Wembley, com o Manchester United, voltámos a perder, desta vez para lá dos 90 minutos. Foi pena: nos últimos instantes do jogo, o Eusébio apareceu isolado diante do guarda-redes, Alex Stepney, e rematou forte, à figura. Bastava que tivesse desviado a bola. Estávamos muito cansados e no prolongamento sofremos três golos.
6 – Magriços acima de todos
R – Que espaço ocupa o Mundial’66 na sua carreira?
MC – É o grande momento da minha vida desportiva. Pelo que vivemos em Inglaterra, independentemente do 3.º lugar alcançado, é inegável que aqueles dias tiveram um peso determinante, maior e ainda mais significativo do que as duas Taças dos Campeões conquistadas. O ambiente foi extraordinário: a emoção, a alegria, a esperança, o reconhecimento e o sucesso prolongado durante semanas criou em nós um sentimento difícil de traduzir em palavras. Juntou-se em Inglaterra a fina-flor do futebol de todos os hemisférios. E mais: se não fosse a pouca sorte com os ingleses o caso teria sido ainda mais falado. Isto para já não falar do erro tremendo que foi ir para Londres quando devíamos ter jogado a meia-final em Liverpool. Depois do esforço despendido frente à Coreia do Norte, terá sido o maior erro que os nossos dirigentes cometeram: aceitarem, a troco de dinheiro, fazer uma longa viagem. Não desdenho sequer a hipótese de que poderíamos ter chegado ao título. Jogámos o suficiente para consegui-lo.
7 – A escolha de Helenio Herrera
R – Costuma dizer que ter sido capitão de uma selecção mundial foi uma das maiores honras da carreira. Foi mesmo?
MC – Foi, pelo menos isso corresponde ao mais sincero dos meus sentimentos e das minhas convicções. Estávamos em setembro de 1967 e senti logo um orgulho muito grande por ter sido escolhido para uma seleção mundial, mais ainda por ter sido convocado por Helenio Herrera, à época um dos treinadores com mais prestígio em todo o Mundo. Tudo se passou na festa de homenagem a Ricardo Zamora (o espanhol que foi um dos melhores guarda-redes da história do futebol). Na preleção dada no balneário, HH anunciou a equipa e revelou que me tinha escolhido para capitão, isto num grupo em que figuravam Rivera, Hamrin, Corso, Burgnich, Mazzola... Não há dúvidas, foi uma das maiores honras da carreira. Vencemos a Espanha por 3-0 e o Eusébio fez um golo. Foi um final de ano em beleza, depois de já ter passado pelo pior jogo da minha vida: fui operado a um joelho em fins de março desse ano. Com tantos anos de futebol, felizmente, nunca algo do género me tinha acontecido. Foi a minha única intervenção cirúrgica. Passei um mau bocado, principalmente por causa das dores horríveis que não me deixavam.
8 – Marcas de Otto Glória
R – De entre os muitos treinadores que teve, quem foi o mais marcante?
MC – Todos tiveram influência no percurso, uns mais do que outros, porque deram o que podiam e sabiam para melhorar o nosso futebol. Gostei muito de trabalhar com Fernando Riera, um grande senhor e um homem muito conhecedor. Mas o mais marcante, por motivos que facilmente se explicam pelas circunstâncias (foi o meu primeiro treinador no Benfica e dirigiu-me no Mundial de Inglaterra), foi o Otto Glória. Quando me fazem esta pergunta e não respondo Béla Guttmann, as pessoas ficam admiradas e julgam que foi esquecimento meu. Não é. Faz parte da história, conseguiu resultados extraordinários mas era muito mau. Exagerava no modo rude e mal-educado como falava connosco. Sei que a disciplina é fundamental em qualquer grupo mas Guttmann tornava-se insuportável. Chegava a insultar-nos.
9 – Sentimento de injustiça
R – O troço final como jogador do Benfica não foi feliz. Como analisa tudo o que viveu nessa altura?
MC – A partir de uma certa altura, passei a jogar mais recuado, a defesa-central. Achei que a opção de Otto Glória, que em 1954 me colocara a avançado-centro, fazia sentido, porque me permitia ser influente no jogo, em termos técnicos e de liderança. Mas quando ele saiu e o José Augusto assumiu o comando da equipa fui afastado, talvez porque ele se sentia mais à vontade para exercer o cargo. Chegado a esse ponto de quase rotura, antes mesmo da festa de homenagem do Benfica, o Olympique Lyon ofereceu-me 75.000 francos (cerca de 2.000 euros) e 15.000 francos de ordenado (cerca de 400 euros). Foi o melhor contrato que fiz, já em velho, pois nunca tinha ganho tanto. O Benfica aceitou e deu-me a carta internacional de desvinculação. Passei uma boa época em França, joguei a final da Taça (perdida para o Stade Reims, por 0-1) mas achei que devia regressar.
10 – Portalegre e regresso a África
R – Quando regressou a Portugal não foi para o Benfica. Por que razão escolheu outro destino?
MC – Quando voltei a Portugal recebi um convite do Estrela de Portalegre para jogar e aceitei, até porque recebia mais do que se fosse para o futebol juvenil do Benfica – desempenhei as funções de treinador e jogador. Isto apesar de me sentir bem no clube do coração, mais ainda estando lá o Ângelo e outros amigos a orientar os escalões mais jovens. Acabei por regressar à Luz anos mais tarde, já na década de 80, para trabalhar na formação. Lembro-me do Rui Costa e do José Dominguez. Nessa altura havia muitas promessas, algumas das quais singraram no futebol português, mesmo que nem todas o tenham feito no Benfica. Nessa altura a equipa principal do clube estava muito bem servida e não precisou de recorrer aos escalões jovens para reforçá-la.
11 – "Merci beaucoup"
R – Que relação manteve com Portugal, o Benfica e o futebol português em geral?
MC – Não posso falar por todos mas devo expressar o que sinto. E sinto que a imprensa e os adeptos em geral, principalmente aqueles que me viram jogar, nunca se esqueceram de mim. Mas também esses sabem quem eu sou e abordam-me com afeto. No fim de contas é uma emoção saber que toda a gente me recebe de braços abertos. Nunca me cansarei de agradecer esta amizade. São estes pequenos/grandes momentos que reforçam a ideia de que foi bom ter sido jogador de futebol, de ter representado o Benfica e Portugal, de ter mantido uma relação sempre cordial e respeitosa com toda a gente. Receber o "Record de Ouro", a caminho dos 80 anos, é uma honra muito grande. Acreditem, estou muito feliz. Esta homenagem foi uma surpresa gratificante para mim. Fico sempre satisfeito por sentir que as pessoas continuam a lembrar-se de mim. E a alegria é tanto maior quando a distinção parte daquele que foi sempre o meu jornal. Agradeço ao Record, de todo o coração. A nossa relação sempre se pautou pela sinceridade, pela abertura e pelo respeito mútuo. Estou muito feliz. "Merci beaucoup", como dizem os franceses.
MAIS
Capitão dos Magriços
"As coisas boas da carreira começaram na transferência para o Benfica e prosseguiram com todos os feitos conseguidos. Primeiro as duas conquistas europeias, depois, e principalmente, a epopeia dos Magriços, que entendo como ponto mais alto da carreira. Não apenas pelo terceiro lugar, porque podíamos, perfeitamente, ter sido campeões, mas por tudo o que envolveu a campanha. Depois disso ainda tive a felicidade de ser capitão de uma seleção do Mundo, escolhido por Helenio Herrera, e de me ter despedido do Benfica com uma grande festa."
MENOS
A dor do adeus ao Benfica
"Pode dizer-se que um dos pontos mais difíceis da carreira foi a operação a que fui submetido a um dos joelhos, em 1967. Felizmente recuperei bem. Mas o ponto mais delicado, o que mais me fez sofrer, foi o adeus ao Benfica, quando ainda me sentia útil, curiosamente, como defesa-central. O fim da ligação como jogador não foi fácil, embora me tenha proporcionado uma época interessante ao serviço do O. Lyon, clube pelo qual joguei uma final da Taça de França."
(Este trabalho resulta de declarações concedidas por Mário Coluna ao "Record", ao "O Benfica", à revista "Coluna – O Grande Capitão" e ao livro da coleção Ídolos do Desporto, "O Homem das 5 Seleções")
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