Carlos Queiroz: «As pessoas em Portugal não gostam de futebol»

O treinador português que ajudou o poderoso Manchester United a conquistar a Premiership fala da experiência em Inglaterra e das voltas que o futebol luso ainda tem que dar

- Numa escala de emoções, que valor atribui à vitória na Premiership inglesa, com o Manchester United?

- A última emoção é sempre a mais importante, é aquela que nos faz voltar a recordar o sabor de ganhar. Quando se saboreia o paladar único de ser campeão isso cria vício, faz-nos correr uma vida inteira à procura da repetição. Pode nunca mais voltar a acontecer, mas nós não desistimos. A vitória com o Manchester foi indescritível, uma coisa estonteante, mas também se tornou um alívio. Criou-se uma sensação mista, não se sabia se era maior o prazer de ganhar o campeonato, se o alívio de não dependermos do último jogo com o Everton para sermos campeões. Para mim foi também uma honra poder retribuir a confiança que tinham depositado em mim, nomeadamente Alex Ferguson.

- A vitória de 89, em Riade, com a selecção de juniores, considerou-a inconsciente e à do Mundial de Lisboa, dois anos depois, chamou-lhe racional. Aos 50 anos, esta foi a vitória de quê?

- Esta foi o resultado de uma aposta, de um desafio. Eu nunca fui uma pessoa de escolher caminhos fáceis ou aqueles que, para a maioria das pessoas, pareciam os mais lógicos, os mais directos para o sucesso. Eu lembro-me de, por exemplo, na Páscoa, três meses antes do Mundial de juniores, ter recebido o convite de um grande clube, que significaria saltar do oito para o oitenta, em vários planos, incluindo o financeiro. Eu tive a coragem de dizer não, por respeito aos compromissos assumidos. A lógica talvez dissesse o contrário. O Manchester talvez tenha sido a aposta desportivamente incorrecta, por aquilo que já tinha feito, mas, agora, posso talvez dizer que foi a melhor decisão da minha vida.

- E o que é que pesou mais na decisão de responder afirmativamente ao Manchester United? A organização em si? O nome? Os jogadores?

- Foi o desafio incomensurável da responsabilidade, isto é, um teste pessoal às minhas próprias capacidades. Aceitar ser o “first coach” e o “assistant manager” de uma equipa onde iria encontrar cinco ou seis titulares da selecção de Inglaterra, o capitão da selecção nacional da Argentina, três campeões do mundo e da Europa, um internacional uruguaio, era para mim um grande desafio. Devo reconhecer que apesar do meu percurso, da minha experiência, vivi as primeiras semanas com alguma ansiedade. É fácil para um treinador chegar ali e dar uns rebuçados, fazer uns números para agradar às pessoas, fazer uns exercícios engraçados, motivacionais, mas esse é um caminho que a curto prazo se esgota. Tinha que corresponder às pessoas, ajudando a equipa a jogar um futebol melhor. E para isso tinha de me concentrar nas grandes tarefas, para que jogadores como Paul Scholes, Rio Ferdinand, David Beckham, Verón ou Ruud van Nistelrooij pudessem jogar ainda melhor. Como é que eu vou fazer isso, criando um impacto pessoal? Foi este o desafio que se me pôs.

- As reacções dos jogadores depois da vitória são conhecidas por terem sido tornadas públicas, mas as primeiras reacções, que só o próprio Carlos Queiroz registou, como é que foram?

- Eles foram muito agradáveis comigo. Jogadores de diferentes culturas foram fantásticos, de uma abertura e de um apoio muito bons. Já conheci muitos jogadores, mas só os campeões se comportam assim. São pessoas abertas à crítica, ao diálogo, porque são profissionais preocupados com o seu próprio progresso.

- Recentemente, confessou que nunca na vida tinha trabalhado como em Manchester...

- Disse isso no sentido em que o volume de tarefas e de responsabilidades não é distribuído por mais ninguém. O clube tem jogadores dos seis anos até à equipa profissional, mas aos 16 anos há uma fronteira onde começa a educação profissional. Temos então a equipa de sub-17, a de sub-19, a equipa de reservas e a equipa principal. Nestas quatro equipas temos tantos técnicos como a equipa principal de um grande clube, em Portugal. Na minha equipa técnica do Sporting, tinha tantos treinadores como existem no Manchester para trabalhar nessas quatro equipas. Eu tinha o Costa, o Hilário, o Meszaros, o Roger Spry, depois veio o Mariano, digamos que estas quatro ou cinco figuras, no Manchester, sou eu. Eu trabalho a preparação física, a táctica, a análise do jogo...

- ... o registo estatístico?

- Nós temos um técnico, mas esse técnico trabalha para todas as equipas, no Sporting eu tinha o Rui Claudino. O Manchester é um bom exemplo da gestão de recursos humanos.

- Isso significa trabalhar quantas horas por dia?

- Uf! Depende. Nós temos uma periodicidade de jogos muito grande, chegamos a ter séries de sete, oito nove jogos de três em três dias. São sequências muito apertadas. Se quarta-feira há jogo da Liga dos Campeões e no sábado seguinte jogamos para a liga inglesa, isso quer dizer que a quinta e a sexta-feira vão ser dias muito apertados, porque é preciso fazer a análise do jogo anterior e preparar o jogo seguinte, analisar o adversário, treinar. Às vezes, ter um dia a mais entre cada jogo é um luxo.

- Chega a haver semanas sem dias de folga?

- Não posso quantificar exactamente quantas folgas houve, mas não foram muitas. Dia de Natal treinámos e jogámos, dia de Ano Novo treinámos e jogámos, houve, de facto, semanas sem folgas. O que não quer dizer que o treino tenha sempre o mesmo significado, o treino de recuperação, no domingo de manhã, pode ser com o fisioterapeuta, pode haver um jogo de pólo aquático, porque é preciso evitar situações de fadiga mental.

- Vir a ser “manager” do Manchester United foi uma possibilidade que já colocou a si próprio?

- Eu percebo a pergunta, mas o respeito daquela que é a situação do clube e pelas funções para as quais fui convidado... O clube tem uma hierarquia, tem uma filosofia, o “manager” inglês não é o treinador principal que nós conhecemos, tem uma filosofia diferente. E digo isto porquê? Porque eu fui convidado pelo Alex Ferguson, depois de uma pesquisa que ele fez, e a minha preocupação é corresponder à confiança dele. Desse modo estou a servir o clube e o meu destino está nas mãos dele. Não tenho de me preocupar mais.

- O Manchester United ganhou a liga interna, mas não passou dos quartos-de-final da Liga dos Campeões. Que reflexos é que isso teve na organização?

- Nós fizemos um trajecto brilhante na liga europeia, mesmo quando tivemos sete jogadores lesionados. Nas primeiras duas fases fomos classificados de uma forma imaculada, mas ficou um sabor amargo. No futebol, como na vida, não vale a pena carpir as mágoas, quando a água passa por debaixo da ponte já não volta para trás. Mas temos consciência que abordámos mal o jogo de Madrid. Os dois primeiros remates do Real resultaram em golo - o golo do Figo, então, é mágico - e isso obrigou-nos sempre a andar a correr atrás deles. Agora, sem tirar o mérito à equipa do Real, e também por aquilo que vimos no jogo deles com a Juventus, penso que a nossa equipa tem maior profundidade, apesar de eles possuírem três tenores que já foram considerados os melhores do mundo (Figo, Zidane e Ronaldo). A nossa equipa talvez tivesse disputado melhor a semifinal com a Juventus, comparativamente àquilo que o Real fez. Agora, na nossa eliminatória com eles, ficou para mim uma coisa inesquecível que vale a pena referenciar, que é um hino ao espectáculo, à cultura, ao futebol. Faltam alguns minutos para acabar o jogo, em Old Trafford, nós estamos eliminados e há um jogador, de seu nome Ronaldo, que é o principal responsável pela nossa eliminação, com três golos marcados, que é substituído. Quando o jogo pára, 67 mil espectadores, todos de pé, dão-lhe uma extraordinária ovação. Os jogadores do Madrid, o banco, todos ficaram estupefactos. Eu a olhar para aquelas pessoas, desde o simples espectador até aos membros do “board” do Manchester United, todas de pé a aplaudirem o jogador que com os seus gestos técnicos deu tamanha magnitude ao espectáculo. Esta é uma situação que eu não esquecerei e não me cansarei de referenciar enquanto exemplo para o futebol.

- O facto de as meias-finais da Liga dos Campeões terem sido dominadas por clubes italianos tem um significado especial?

- Não. Eu acho que isso tem a ver com aquilo que é a liga italiana. Às vezes, vejo jogos do Milan, do Inter, da Juventus, e não é um futebol que me agrade. Fico com alguma frustração ver ali jogadores fantásticos como o Rui Costa amarrados. Há jogos em que não são feitos mais de três passes seguidos, que logo se dá uma mudança de posse de bola. Estas equipas, depois de seis, sete meses a jogarem assim internamente transportam para a competição europeia uma rigidez que lhes dá mais garantias de saírem como vencedoras. É um futebol que joga para o resultado e só para o resultado. Neste aspecto, o futebol inglês e o futebol espanhol são diferentes, mais abertos. Agora, não me parece que haja uma hegemonia das equipas italianas no futebol europeu.

- Que distinção faz entre o futebol português e o futebol inglês?

- O futebol inglês é tomado como um todo. Essa é a primeira grande diferença. O futebol tem de ser gerido no interesse dos jogadores, dos treinadores, dos patrocinadores, dos media, da televisão, daquilo que no final é o espectáculo. A grande diferença reside na cultura e no entendimento que as pessoas têm desse espectáculo. Falei-lhe do caso do Ronaldo, no fundo, em Inglaterra, as pessoas são mais apreciadoras. Posso também dar-lhe o exemplo do jogo que ganhámos ao Newcastle (6-2). A poucos minutos do fim, o resultado estava em 6-1 e quem entrasse naquele momento no estádio não acreditaria, dada a forma como eles se batiam. E quando marcaram o último golo, continuaram a jogar de uma maneira que quem os via pensava que era possível virarem o resultado. Em Portugal, as pessoas não gostam do futebol, as pessoas vão ao estádio para ver o Sporting ganhar. “Eu vou para ver o meu Benfica ganhar, se não ganhar, não vou”. É assim. Sabe como é que isto se inverte? Na escola, permitindo que, através da prática, as pessoas percebam o que é o jogo, que percebam que, em determinados momentos, apesar de termos dado o máximo, podemos ser batidos por alguém que foi melhor. Se nós conseguirmos alterar isto, se afastarmos a suspeição, o discurso negativo, e juntarmos aquilo que fazemos de bom... o FC Porto na final da Taça UEFA, o Boavista quase lá, a selecção a preparar-se condignamente para o Euro 2004, a selecção de sub-17 na final do Europeu, tudo isso é extraordinário.

- Os convites dos grandes clubes de Portugal não constituem um apelo suficientemente forte para o fazer voltar ao futebol português? Oportunidades não lhe têm faltado...

- Essas oportunidades têm-me deixado lisonjeado, honrado, mas o que tem acontecido em determinados momentos - e já são vários - é que a minha disponibilidade não se cruza com essas oportunidades. Quando eu saí do Japão, estive aqui cinco meses e acabei por ter de partir para outro projecto; saí dos Emirados Árabes Unidos, em Novembro, estive aqui até ao Europeu e não apareceu nenhum clube grande. Assinei um contrato com a selecção da África do Sul e quando faltava um jogo para o fim do apuramento para o Mundial apareceu um clube.

- O Sporting?...

- Não interessa. Não é inteligente deitarmos fogo às pontes que atravessamos, porque nunca sabemos se precisamos de voltar para trás. Eu não ponho em causa a confiança das pessoas que me dão trabalho. Não tenho coragem. Ter a oportunidade de ir para o Sporting ou para o FC Porto, voltar para o meu país, a família, os amigos, faz pensar. Os sentimentos dão-me a vontade que a razão contraria. Você sabe o que eu tenho perdido, mas não sabe o que tenho ganho com essa atitude. Ganho o respeito das pessoas, que ficam a saber que não rompo compromissos.

- O campeonato português é do terceiro escalão, como se lhe referiu Laszlo Boloni, treinador do Sporting?

- Não gosto de fazer comentários sobre comentários. Ainda há pouco tempo quis elogiar um colega, usando de toda a minha sabedoria, e a primeira crítica que vi escrita dizia que eu era vaidoso, enfim... Comentar o comentário é uma tentação a que prefiro resistir. Se me disser isso assim, não posso estar de acordo. O que é que nós estamos a analisar? São os jogadores? Se nós formos falar do nível técnico, da organização do campeonato, dos ordenados, se estão em dia ou em atraso, obviamente que algumas coisas não estão bem. Toda a gente diz isso. Exemplo concreto: quando você tem um espectáculo para vender e chega ao ponto de o tornar de graça, isto é a negação do próprio espectáculo. Li que alguns clubes abriram, recentemente, os estádios às pessoas. Você está a ver os supermercados deixarem as pessoas levarem os produtos de graça? Aquilo que parece uma generosidade é um acto de negação. Nós temos de chegar a um ponto em que as pessoas querem comprar bilhete e não há, existem listas de espera de quatro anos. O espectáculo em vez de ser bem vendido, promovido, apetecido, está a ser oferecido, se me disser isso, então a conclusão é que não é de terceiro escalão, mas de sétimo. Se formos apreciar a qualidade técnica do jogo, então não posso estar de acordo. Nós temos todos um contributo a dar, a começar pelos técnicos estrangeiros que são sempre recebidos com uma tolerância que nós não usamos para nós próprios.

- O Manchester United fez um protocolo com o Sporting porque, objectivamente, entende que o produto da formação é o mais interessante?

- Não, essa é a última razão. Felizmente, para o clube o comprar é o menor problema, essa é uma imagem de marca que os nossos adversários criticam, mas é, de facto, assim. Nós fizemos a parceria como uma fórmula de resposta a alguns problemas que vão ser colocados. A situação foi-me posta e eu fiz um relato sobre as condições do FC Porto, do Benfica, e do Sporting, e a escolha recaiu no Sporting. Mas isso não tem a ver com a compra de jogadores, porque eles vão continuar a ser contratados.

- Ricardo Quaresma ou Cristiano Ronaldo? Por qual corre mais o Manchester United?

- Eu sei que têm saído notícias, mas não as vou comentar, porque faz parte das nossas regras, no Manchester, não o fazer. São poucas as pessoas do “management” do clube que têm acesso a essa informação e que podem falar sobre ela. O Alex, o Peter Kenyon e eu próprio não fazemos comentários, porque a pressão é muito grande, porque há muita gente envolvida e são muitos os jogadores. O Sporting não precisa de fazer mais do que faz para promover o Quaresma. Colocando-o a jogar está a promovê-lo. O que a Imprensa deve estar alertada, e não deve ser ingénua, é que existem períodos intermédios em que outros agentes usam de métodos pouco edificantes para promover os jogadores. Dou-lhe um exemplo: se um clube espanhol quer vender um jogador para Itália, alguém arranja maneira de as notícias saírem em Itália, porque depois os próprios jornais espanhóis podem citar a informação. E dizem eles: “Não tenho nada a ver com isso, os italianos é que disseram isso.” Eu não estou a dizer que isso se passa em Portugal, é só um exemplo. Isto perturba o mercado, mistura os bons com os maus, obriga a ter a frieza e a capacidade de não responder. Mas também obriga a que quando existe algo reunir a Imprensa e comunicar o interesse, para evitar especulações. É isto que o Manchester faz.

- Que significado é que tem a presença do FC Porto na final da Taça UEFA no actual cenário de crise?

- Dizer-se que o futebol português está todo bem porque o Porto vai à final da Taça UEFA seria um erro, dizer-se que o futebol português está todo mal porque existem clubes com ordenados em atraso também não está certo. Temos de elogiar o que está feito e bem feito. O FC Porto, o Boavista, a selecção nacional, a selecção de sub-17, todos têm sido fantásticos, a formação que continua a ser feita, Veja o caso do Hugo Viana, vendido a um preço fantástico num período de crise como é este. Temos de ser frios para saber dizer o que está bem, mas não podemos dizer que está tudo bem só porque o FC Porto vai à final da Taça UEFA.

«Figo é explosivo, Beckham um passador nato»

– A partir de dado momento da temporada, quando se começou a gerar um fluxo de informação grande a propósito de trocas no mercado, os nomes de Beckham e Figo ressaltaram, nomeadamente em Espanha. Actualmente, poucos treinadores os conhecerão tão bem quanto Carlos Queiroz. Para si, há um melhor do que o outro?

– Essas discussões são interessantes para ver de fora e só têm um espaço, que é a Imprensa, porque os técnicos não perdem muito tempo com isso. São obviamente dois grandes jogadores. O fato do Manchester assenta bem ao David e o modelo do Real também vai muito bem no Figo. Agora, se me perguntar se eles são compatíveis eu respondo-lhe que, face à obrigação que Manchester e Real Madrid têm de ganhar, todos os grandes jogadores são de menos numa equipa. Tomara nós podermos juntar os dois. A mim fizeram-me essa pergunta de Espanha e eu disse, muito simplesmente: “O David não vai sair e vocês ponham-se mas é à tabela se não ainda quem sai é o Figo”. E a brincar acabei por dizer tudo. Quem é o melhor? São dois jogadores diferentes, apesar de terem um denominador comum, que é jogarem na mesma posição. Um é explosivo (Figo), o outro é um jogador de resistência (Beckham). Um é um passador nato, tem aquilo a que nós chamamos a raqueta, não precisa de driblar para encontrar soluções, com o passe resolve; o Figo é capaz de tirar um, dois, três adversários do caminho, para encontrar o melhor ângulo para cruzar. Feliz o treinador que os possa juntar aos dois.

– Beckham é mais do que um jogador de futebol? É uma entidade do “star system”, que pelos vistos não agrada muito a Alex Ferguson...

– As coisas não podem ser vistas dessa maneira. Se há duas referências no desporto mundial, que têm a ver com modernidade, são Michael Jordan e David Beckham. Nós não podemos ignorar a força dos media, dos patrocinadores, do mercado. Eles conseguem harmonizar essas frentes todas, são estrelas. Agora, não pode haver equívocos quanto à função primária de cada um. O David Beckham é um jogador de futebol. E o treinador tem a obrigação de chamar o jogador à razão.

«Peixe tinha um potencial imenso»

– Disse em tempos que os jogadores com que trabalhou são o seu melhor cartão de crédito. Definitivamente, quais foram os melhores?

– Tive o privilégio de me cruzar com grandes jogadores. No MetroStars, trabalhei com o Donadoni, Tab Ramos, Tony Meola; depois fui para o Japão e tive comigo o Stoijkovic, o Torres, o Valdo, foi um privilégio fantástico. E treinei duas vezes a selecção do mundo, tive a oportunidade de observar as “nuances” que fazem de alguns jogadores grandes campeões, que é o estar sempre disponível a ouvir para progredir. Mas não posso deixar de referenciar alguns miúdos – e perdoe-se-me o abuso de linguagem – que hoje são admirados em todo o mundo, como é o caso do Figo, do Rui, do Sérgio. Uns tiveram um sucesso extraordinário, outros menos, mas o coração está sempre aberto a todos

– É muito procurado por eles?

– Quando temos amigos em quem confiar sabemos que podemos contar com eles. Felizmente, tenho exemplos para citar. Ainda agora tenho um que diz respeito ao Balakov. A dada altura, quando estive no Sporting, falou-se muito sobre problemas que existiam entre nós, mas só nós soubemos o que se passou exactamente, e ele, agora que está para acabar a carreira, uma das pessoas que convidou para estar na festa de despedida, como treinador, fui eu. Isso para mim não tem preço, é o melhor título que existe.

– Como é que reage quando vê Peixe, o melhor jogador do Mundial de 91, a jogar tão pouco?

– É a selecção natural das espécies. Nem sempre os mais talentosos são os que têm maior sucesso, a tenacidade, a persistência, um pouco a sorte, acabam por superar o talento. O Peixe, como outros, tinha um potencial imenso, mas, às vezes, uma reacção emocional, num momento dado, não permite a expressão desse potencial. Às vezes, jogadores há que, motivados, conseguem voar, outros, em ambiente de desconfiança, onde são postos em causa, não rendem. O facto de o Peixe não ter sucedido não faz dele um jogador mau, aquilo que ele fez está escrito, são páginas que não serão apagadas. E lembro-me de ele, no FC Porto de Fernando Santos, ter feito grandes exibições. Como que renasceu, fez até um golo de meio-campo. Mas volto a dizer, às vezes, a vida não é dos mais talentosos.

– Como é que acompanhou à distância o caso de outro jogador que trabalhou consigo na selecção júnior, o Cao, que comprovadamente não tinha idade que lhe permitisse jogar no escalão?

– Tomei a posição de não me pronunciar por não conhecer os dados. Reservei para as autoridades esses comentários. Obviamente, fiquei triste. Lembro-me que ele foi dos jogadores que entraram nas últimas convocatórias, porque alguém se terá lesionado. Agora, esse foi um caso individual, que não teve que ver com a Federação.

Potenciar efeito Scolari

– A selecção está no rumo certo, com os melhores jogadores e o melhor seleccionador?

– Em relação ao seleccionador, campeão do mundo, dou-lhe um exemplo: quando no Manchester se falou deste assunto, as pessoas diziam “ah, o Scolari, o campeão é o vosso seleccionador. Vocês puderam contratá-lo, fantástico”. Houve um critério de competência que é reconhecido. Agora, porque trouxemos um treinador brasileiro campeão do mundo não significa que se passou um atestado de incompetência aos treinadores portugueses, nem que já não vale a pena apostar na formação. O facto de termos o treinador campeão do mundo obriga-nos a investir e tê-lo cá obriga a que ele vá todos os meses, a todas as províncias, explicar aos treinadores como é que foi campeão do mundo. Que foi o que a FIFA fez comigo, quando nós fomos campeões do mundo de sub-20 duas vezes seguidas. Quanto aos resultados, às convocatórias, antes de Janeiro é absurdo tirar conclusões. Neste momento, 40 ou 50 por cento da equipa estará consolidada, o restante só se conhecerá daqui a uns meses.

Deco obriga a formar ainda mais

- A naturalização de Deco incomodou-o?

- Sou muito prático nesse aspecto. Temos uma tradição de emigração e por respeito a nós próprios somos o último povo do mundo a poder levantar objecções à imigração, à integração de imigrantes e à sua naturalização. Devemos ser exemplares. Só assim podemos exigir aos outros que tratem bem os nossos emigrantes. Agora, a questão que se põe para o seleccionador também se põe em relação ao Deco. Deve haver o reforço no investimento no jogador português, na formação, e foi essa a mensagem que o Figo e outros que falaram quiseram fazer passar. Isto deve ser um alerta, porque não se pode cair na tentação de pensar: "Para que é que nos estamos a chatear com a formação, se ao fim de cinco anos podemos naturalizar os brasileiros, os búlgaros, os chineses...".

Como chegar à final do Euro-2004

- Scolari pode prometer o Portugal campeão europeu, como, de resto, até já prometeu?

- Não é uma tarefa fácil, mas é uma missão que pode ser cumprida. No Mundial, criaram-se muitas expectativas e depois reagimos com frustração. As expectativas não eram muito realistas, mas não podemos aceitar as reacções como verdadeiras. Porque a nossa realidade não era exactamente aquela, nós não éramos os melhores do mundo e, depois, passámos a ser os piores. Para o Europeu, com uma abordagem cuidada, com a nossa equipa, bem dirigida como está a ser, com pessoas competentes, com os nossos bons jogadores e a jogar em casa, podemo-nos colocar no patamar que desejamos, que é a final, onde, eventualmente, temos condições para ganhar o título. Nós temos é que, antecipadamente, sermos campeões na nossa cabeça, no desejo, na atitude, no empenhamento, na vontade de vencer. Como dizia o Figo, o perigo é deixarmos de ser exigentes connosco. Para já, o seleccionador está a demonstrar vontade e firmeza na preparação da equipa.

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