Fernando Mamede parece condenado a ser o eterno incompreendido do desporto português e é com alguma ligeireza que se lhe aponta o dedo por ter desistido nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984, quando era o principal favorito e abandonou a prova a meio, estragando o serão a milhares de portugueses que ficaram até de madrugada à espera de ver a corrida do homem que detinha o recorde do Mundo dos 10 000 metros.
A vida e carreira de Fernando Mamede estiveram quase sempre ligadas ao sabor dos impulsos. Desde que saiu de Beja, em 1968, para ir trabalhar para a contabilidade do Sporting, na Rua do Passadiço, até sair do banco, em 1990, com uma pequena indemnização, Mamede passou por alguns momentos delicados, muitas incertezas e por força do seu feitio esteve sempre na primeira linha das revindicações, acabando por pagar caro a factura de ter o coração ao pé da boca. Muitas das vezes as suas palavras foram mal interpretadas.
Tudo se agravou a partir do momento em que o fundista alentejano passou a ter um nível internacional, aproximando-se das distâncias que eram percorridas pelo seu colega de clube, Carlos Lopes. E quando Lopes se lesionou com gravidade, em 1977, no tendão de Aquiles, Mamede passou a ser a primeira figura referenciada além-fronteiras com as suas fantásticas marcas. Moniz Pereira confiava nele a cem por cento, as expectativas foram aumentando rapidamente e há uma altura em que Mamede é vitima de si próprio. Estavámos em 1978, ano do Campeonato da Europa, em Praga, e acabara de fazer no Meeting de Estocolmo uma das melhores marcas do Mundo com 13.17,78 m. "Não sei se este país merece atletas como eu", disse Mamede em sinal de revolta por se aperceber claramente das enormes diferenças em termos de condições de treino e de apoio para os seus adversários. A frase caiu mal, para mais para quem não tinha conquistado ainda qualquer medalha, e "desde essa altura a minha vida nunca mais teve descanso".
No Europeu de Praga, as coisas não correram bem. Foi 15º na final e muita gente virou-lhe as costas. Mamede passou por um mau período, mas a sua rápida passagem, por imperativos da equipa, para os 10 000 m projectou-o para outros voos, fazendo esquecer esse mau resultado. O pupilo de Moniz Pereira afirmou-se nos grandes "meetings" e retira a Lopes o recorde de Portugal, em 1980, para no ano seguinte bater o recorde da Europa no Estádio José Alvalade, numa das melhores corridas de sempre no Mundo para essa altura.
Mamede vincou a sua classe na distância, voltando a melhorar o registo e numa altura em que Lopes regressou em pleno, em 1982, retirou-lhe o recorde, mas treze dias depois voltou a recuperá-lo em Paris. Fervilhava a emoção e a rivalidade entre os dois campeões já era bem expressa, agravando-se com o decorrer dos anos. Quase era inevitável que Lopes e Mamede deixassem de se falar, mas sempre se respeitaram mutuamente. A confirmá-lo o facto de a 2 de Julho de 1984, em Estocolmo, quando Mamede se tornou no primeiro atleta português recordista do Mundo nos 10 000 m, batendo Lopes (que fez a segunda melhor marca do Mundo), ambos terem dado uma volta à pista de mãos dadas!
Este recorde acabou por criar uma pressão enome em Mamede. A sua clara superioridade sobre os adversários, aliada a uma rapidissima aceleração final (podendo desferir o ataque a qualquer momento), fizeram dele o alvo a abater para Los Angeles e antes de aterrar nos Estados Unidos começaram as manobras para o inquietar com o presidente da Federação Internacional, Primo Nebiolo, a levantar dúvidas sobre a homologação desse recorde do Mundo. Mamede ganhou tranquilamente a eliminatória nos Jogos, mas na final resistiu apenas durante metade da corrida. "A pressão era muita e vinha de todos os lados. Hoje sei que não deveria ter desistido e as pessoas nunca compreenderam muito bem o que se passou."
Quando regressou a Lisboa viu que tinha as grades da sua loja de artigos desportivos pintadas, mas foi buscar forças para dizer que ele era o melhor corredor em "meetings". Dias mais tarde, em Zurique, prolongou a sua invencibilidade com uma marca notável em 5000 m, cimentando um reinado nesta distância que durou dois anos e meio, entre 1983 e 1985. A partir de 1986, notou--se já um Fernando Mamede diferente, mais envelhecido, a acusar o peso dos seus 35 anos e de uma longa carreira. Continuou a ser útil ao Sporting até à sua despedida em 1990.
O recorde mais barato
Quando Fernando Mamede bateu o recorde do Mundo dos 10 000 metros trouxe para casa no total 4500 dólares. "Salvo erro, foram três mil dólares de 'cachet' e mais 1500 por ter batido o recorde. Nessa altura, éramos bem explorados. Terá sido certamente o recorde do Mundo mais barato que um "meeting" pagou a um atleta. O Alberto Salazar cobrava 10 mil dólares por cada 'meeting'", diz Mamede, que nunca chegou a ter um verdadeiro empresário. "Era o prof. Moniz Pereira que tratava de tudo e ele era treinador."
Foi na parte final da sua carreira que Mamede embolsou a sua maior maquia e não foi na pista. "Pagaram-me 12 mil dólares por uma meia-maratona no Japão", recorda o sportinguista, que não tem qualquer reforma do banco, do qual saiu em 1990, quando abandonou a carreira. "A burocracia com as requisições foi tanta que tinha algumas faltas por justificar e quando foi a renovação do pessoal chegámos a um acordo para a saída", refere Mamede. Hoje, orgulha-se do seu passado e de ter proporcionado à sua filha, Patrícia, agora com 29 anos, um curso de advocacia, profissão que exerce.
Técnico de desporto na Azambuja
Depois de ter abandonado o atletismo, Fernando Mamede ainda esteve ligado ao Sporting. Foi adjunto de Moniz Pereira, mas o regresso de Lopes a Alvalade criou alguma tensão e Mamede afastou-se, passando a estar mais tempo disponível para a sua loja, na Avenida de Roma. No entanto, tem por Lopes uma grande admiração como atleta. "Ele foi o melhor atleta português", reconhece Mamede.
O regresso ao mundo do desporto aconteceu, em 1995, na Câmara Municipal da Azambuja, onde é técnico de desporto. "Sinto-me bem", diz Mamede para aquela que é, no fundo, a sua única actividade remunerada nos dias de hoje.
Também faz parte da Direcção da Associação de Lisboa.
QUEM É QUEM
Nome: FERNANDO Eugénio Pacheco MAMEDE
Local/data de nascimento: Beja, 1-11-51
Clube Sporting (1968 a 1990)
Ex-recordista mundial de 10 000 m (27.13,81 em 1984)
Ex-recordista europeu de 10 000 m (2727,7 em 1981 e 27.22,95 em 1982)
Medalha de bronze no Mundial de Corta-Mato de 1991
Duas vezes vencedor individual na Taça dos Campeões Europeus de Corta--Mato e oito vezes campeão colectivo (pelo Sporting)
27 internacionalizações na pista, incluindo três presenças em Jogos Olímpicos (1972, 1976 e 1984), uma em Mundiais (1983) e três em Europeus (1971, 1974 e 1978), para além de uma presença no Europeu de Juniores (1970)
15 internacionalizações em Mundiais de Corta-Mato (mais uma como júnior)
Ex-recordista nacional de 500 m, 800 m, 1000 m, 1500 m, milha, 2000 m, 3000 m, 2 milhas, 5000 m e 10 000 m
20 vezes campeão nacional dos 800 aos 10 000 m (14) e corta-mato (6)
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