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Ricardo Silveirinha
Ricardo Silveirinha Clube Romântico de Futebol

Por teu livre pensamento

Numa velha mesa de madeira, enfiados para dentro das mãos e sem rosto, três homens jogam às cartas. Vemo-los de longe, observando-os em silêncio.

(Foram-te longe encerrar)

Afastado do cinco de ouros pousado no tampo, um copo de vinho e, ainda mais distante, no outro topo, de pé, olhando-os de espanto, uma mulher com rosto.

(Tão longe que o meu lamento)

Aqui sentado a escrever, Figueira da Foz 2025, salto para dentro desse desenho que me desenha da parede do escritório. Vejo a mão fina de Álvaro Cunhal a traçar agora a luz sobre a mesa velha de madeira.

(Não te consegue alcançar)

Uma lanterna caída do tecto humilha os homens, ilumina a mulher. Mostra um bêbado a dormir ao fundo. Passo as mãos sobre o seu chapéu cheio de pó, tento levantá-lo, mas a fina mão de Álvaro Cunhal, Forte de Peniche 1959, apaga-me do desenho.

(E apenas ouves o vento)

Quando este homem entrou algemado pela ponte do Forte de Peniche, já ia com isto na ideia: uma mulher com rosto a observar de espanto três homens bêbados, absurdos e sem cara. Álvaro sonhou com ela. Imaginou-a ao som do vento e do mar.

(E apenas ouves o mar)

A sua farta cabeleira enchia-se de maresia numa noite quase igual a esta e a mulher do desenho já o amava ainda tão longe de existir no desenho das paredes do meu escritório.

(Levaram-te a meio da noite)

- Para sermos livres, não basta a inteligência. É preciso coragem, Aníbal! É preciso trazer a verdade dentro de nós!

(A treva tudo cobria)

O guarda prisional Aníbal sem rosto não entendeu os dedos finos de Álvaro Cunhal, a sua cara fenomenal, os seus traços claros de luz e sombra.

(Foi de noite numa noite)

- O que é que está a desenhar, Doutor?

(De todas a mais sombria)

- A tua história, Aníbal. A nossa história. Os vultos redondos da miséria.

(Foi de noite, foi de noite)

Quando eu passava a ponte com o meu Pai, Forte de Peniche 1995, e via a cela de Álvaro Cunhal e o vento e o mar e a ideia da fuga e trazia para casa os desenhos da prisão, eu ainda não sabia que a liberdade era não morrer por dentro.

(E nunca mais se fez dia)

A liberdade é conseguir nunca ser envenenado.

(Ai! Dessa noite o veneno

Persiste em me envenenar

Oiço apenas o silêncio

Que ficou em teu lugar

E ao menos ouves o vento

E ao menos ouves o mar.)

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