Convidados
Numa velha mesa de madeira, enfiados para dentro das mãos e sem rosto, três homens jogam às cartas. Vemo-los de longe, observando-os em silêncio.
(Foram-te longe encerrar)
Afastado do cinco de ouros pousado no tampo, um copo de vinho e, ainda mais distante, no outro topo, de pé, olhando-os de espanto, uma mulher com rosto.
(Tão longe que o meu lamento)
Aqui sentado a escrever, Figueira da Foz 2025, salto para dentro desse desenho que me desenha da parede do escritório. Vejo a mão fina de Álvaro Cunhal a traçar agora a luz sobre a mesa velha de madeira.
(Não te consegue alcançar)
Uma lanterna caída do tecto humilha os homens, ilumina a mulher. Mostra um bêbado a dormir ao fundo. Passo as mãos sobre o seu chapéu cheio de pó, tento levantá-lo, mas a fina mão de Álvaro Cunhal, Forte de Peniche 1959, apaga-me do desenho.
(E apenas ouves o vento)
Quando este homem entrou algemado pela ponte do Forte de Peniche, já ia com isto na ideia: uma mulher com rosto a observar de espanto três homens bêbados, absurdos e sem cara. Álvaro sonhou com ela. Imaginou-a ao som do vento e do mar.
(E apenas ouves o mar)
A sua farta cabeleira enchia-se de maresia numa noite quase igual a esta e a mulher do desenho já o amava ainda tão longe de existir no desenho das paredes do meu escritório.
(Levaram-te a meio da noite)
- Para sermos livres, não basta a inteligência. É preciso coragem, Aníbal! É preciso trazer a verdade dentro de nós!
(A treva tudo cobria)
O guarda prisional Aníbal sem rosto não entendeu os dedos finos de Álvaro Cunhal, a sua cara fenomenal, os seus traços claros de luz e sombra.
(Foi de noite numa noite)
- O que é que está a desenhar, Doutor?
(De todas a mais sombria)
- A tua história, Aníbal. A nossa história. Os vultos redondos da miséria.
(Foi de noite, foi de noite)
Quando eu passava a ponte com o meu Pai, Forte de Peniche 1995, e via a cela de Álvaro Cunhal e o vento e o mar e a ideia da fuga e trazia para casa os desenhos da prisão, eu ainda não sabia que a liberdade era não morrer por dentro.
(E nunca mais se fez dia)
A liberdade é conseguir nunca ser envenenado.
(Ai! Dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar
Oiço apenas o silêncio
Que ficou em teu lugar
E ao menos ouves o vento
E ao menos ouves o mar.)