Luís Montenegro
É com genuíno fair play desportivo que começo por registar o que todos sabemos. Uns dizem que o seu clube é o "glorioso", outros tentam explicar que "só eles sabem porque não ficam em casa" e nós elevamos a nossa paixão clubística à mítica divisa de que "o Porto é uma Nação".
Esta Nação é, antes de tudo mais, um vínculo de afetos. Estou muito à vontade para falar disso, porquanto dei por mim portista por escolha própria, sem hereditariedade e sem saber explicar porquê. O meu pai era da Académica de Coimbra, a minha mãe é ‘agnóstica’, nunca fui a qualquer jogo pela mão de um avô ou sequer de um tio. Julgo, portanto, que já nasci portista! Adoro desporto, pratiquei e pratico várias modalidades e gosto tão naturalmente do Porto que só posso respeitar quem sente coisa parecida por outro emblema.
Digo coisa parecida de propósito, porque quando um ser humano sente uma paixão verdadeira é capaz de perceber que os outros também sentem, mas nunca crê que esta é igual àquela. A sua é sempre especial e diferente.
O Porto como Nação é um divisa forte e impactante e é mais do que o afeto. É o símbolo do ecletismo popular, do compromisso, do trabalho, do espírito de sacrifício, da luta contra as adversidades e as injustiças, do interclassismo, do brio, da competência, da superação e da afirmação de uma identidade. A marca Porto.
O FCP vai a caminho de completar 127 anos de vida e quis a história que o país e o Mundo vivessem nesta altura um dos momentos mais desafiantes desse período. Como responder na sua gestão a uma situação de pandemia cujos contornos são a incerteza, o distanciamento social, a mudança abrupta de hábitos e costumes? De repente, todos já estamos desejosos de ver os nossos clubes jogarem como se estivessem de castigo!
Sim, convém lembrar que até há bem pouco tempo só jogavam à porta fechada as equipas sancionadas por alguma irregularidade.
Como é que eu gostaria de ver o FC Porto enfrentar os tempos de retoma da atividade desportiva? Em primeiro lugar, fiel aos seus valores fundacionais. Fiel ao sentimento de Nação de paixão.
É preciso pôr todos a pensar, a inovar e a ter a criatividade de ‘engendrar’ mecanismos seguros de levar, logo que possível, público aos estádios e pavilhões. Pode aparentar lirismo dizer-se que é difícil alimentar a paixão à distância, mas creio que o assunto é mesmo sério. Os hábitos de consumo são cada vez mais voláteis e a voracidade das ofertas não garante a perenidade de nenhum segmento de negócio ou divertimento. A vibração de ver um jogo ao vivo ou de sentir pela televisão a emoção da multidão que enche um recinto desportivo é um elemento fundamental da economia desportiva e do sentimento ‘tiffosi’. É a base que subjaz à compra de um bilhete, ou de uma camisola, ou de uma assinatura de um canal de televisão em sinal fechado, ou a garantia de uma audiência que justifica um investimento publicitário, etc. O jogo precisa de gente, a gente precisa do jogo e se esta dinâmica entra em desuso, a indústria pode colapsar e o prazer dirigir-se para outras paragens.
Em segundo lugar, um desejo para o futebol. Sermos campeões, claro. Mas pedir um pouco mais. Novamente um apelo aos nossos valores. À superação. Sermos capazes de competir sem receios na Liga dos Campeões. Os nossos jogadores têm de sentir que no Porto a sua possibilidade de valorização é mais elevada. É a oportunidade de brilhar no meio da mais reluzente constelação de estrelas do futebol mundial. É uma honra guardada para uma pequena elite de predestinados. Foi nas Antas e no Dragão que muitos atletas incógnitos ascenderam à condição de galácticos, multiplicaram por muitos dígitos os seus rendimentos e souberam retribuir o clube com renovações que fizeram aumentar o valor das transferências. Esse sentimento de respeito recíproco, de receber, mas também de dar, é um esteio da mística portista que temos de recuperar na plenitude. Porque será essa fórmula que trará ainda mais qualidade e ambição à equipa, que arrastará mais entusiasmo nos adeptos e garantirá melhor saúde financeira. E digo isto sem queixumes, porque os portistas sabem que precisaremos no futuro próximo de afinar algumas agulhas, de regenerar e renovar, mas mal de nós se fôssemos agora quebrar a liderança mais ganhadora de sempre!
Em terceiro lugar, um projeto novo que me parece deve ser estudado pelo clube e pela autarquia do Porto. O FC Porto é hoje a maior marca da cidade e uma das maiores do país. É uma instituição de utilidade pública. Para além dos departamentos profissionais, prossegue um grande número de atividades amadoras, desde os escalões de formação aos veteranos ou ao desporto para pessoas portadoras de deficiência. O FC Porto tem um Estádio, um pavilhão e um centro de estágios onde treinam os escalões de formação do futebol. Nas outras modalidades, o clube anda com a ‘casa’ às costas, espalhado em remendos por instalações difusas.
Em tempos de discussão sanitária, de mobilidade, de envolvência social e humana, penso que o FC Porto, e a cidade através dele, merecem um grande complexo desportivo destinado à prática das modalidades que não o futebol, mormente centralizando as referidas escolas de formação e as demais secções amadoras.
E se reclamo a intervenção da autarquia, não é para proporcionar já aos ‘Velhos do Restelo’ uma investida contra a promiscuidade entre a política e o desporto. Porque nessa consideração reside logo uma aberrante confusão, uma vez que o desporto é – e muito bem – merecedor de uma política pública, enquanto área essencial à saúde e desenvolvimento socioeducativo. Mas neste caso, as duas instituições, ambas de prossecução do interesse público, devem ser parceiras no desígnio de dar à população a oportunidade da prática desportiva, mesmo que em muitos casos na vertente de competição. Ciente que estou da necessidade de sustentação financeira de um projeto desta envergadura, vejo-o como uma aposta segura para alimentar o futuro do clube, da paixão que ele desperta e do valor social e económico que aporta à região e ao país.
Para terminar, já sei que para alguns é estranho, mas não vou perder tempo a explicar. Tal como naquele que bombeia o sangue que me faz viver, também no desporto tenho dois lados no coração. E ao lado do FC Porto está o meu centenário e igualmente eclético Sporting Clube de Espinho.
Para ele desejo que as próximas jornadas tragam sucesso desportivo, saúde financeira e, sobretudo, as merecidas e há muito prometidas novas instalações, à cabeça das quais está o novo estádio. Também o Espinho presta o seu serviço público e dá uma alegria única a muitos pais, como aquele que vos deixa estas linhas, de verem os seus filhos vestirem as camisolas que outrora eles envergaram, aprendendo a conviver, a competir, a ganhar e a perder, a trabalhar em equipa ou simplesmente a ser um igual aos outros, sem destrinças sociais, intelectuais ou económicas. E conciliar isso tudo com a descoberta de talentos para voos mais altos.
Só na minha geração e do meu círculo de amigos e vizinhos saíram da ‘Rainha da Costa Verde’ vários campeões de azul e branco ao peito, como o Rui Rocha e o Ricardo Tavares no andebol, o Pedro Nuno no basquetebol, o Fernando Couto no futebol e o lendário Vitor Hugo no hóquei em patins. Lembrei-me deles e até dou comigo a pensar que há aqui potencial para projetar o futuro do Porto em vários domínios.