Pedro Honório da Silva

Pedro Honório da Silva
Pedro Honório da Silva Presidente da FPDE

Electronic Arts e a Arábia Saudita: quando o gaming se torna geopolítica

A notícia caiu como uma bomba no mundo do gaming e dos esports: a Electronic Arts, uma das maiores e mais influentes publishers de videojogos do mundo, está a ser adquirida por um consórcio liderado pela Arábia Saudita num negócio avaliado em 55 mil milhões de dólares. O Public Investment Fund (PIF) saudita, em parceria com a Silver Lake e a Affinity Partners de Jared Kushner, está prestes a concretizar a maior aquisição privada da história, oferecendo um prémio de vinte e cinco por cento sobre o valor de mercado da EA e retirando a empresa da bolsa de valores.

Esta operação, prevista para estar concluída até 2027, representa muito mais do que uma simples transação financeira. Estamos perante uma mudança tectónica no panorama global do gaming e dos esports, com implicações que vão muito além dos videojogos e entram definitivamente no território da geopolítica e do poder económico global.

De Wall Street para Riade: uma transformação radical

A decisão da EA de sair da bolsa e passar para o controlo privado de um consórcio liderado pelos sauditas levanta questões fundamentais sobre o futuro da indústria. Andrew Wilson, o CEO da EA, permanecerá no cargo, mas a realidade é que as decisões estratégicas da empresa passarão a responder a um novo conjunto de prioridades e interesses que podem não estar alinhados com os valores e expectativas da comunidade global de jogadores.

A EA controla algumas das franchises mais importantes e lucrativas da indústria: EA Sports FC (anteriormente FIFA), The Sims, Battlefield, Apex Legends, entre muitas outras. Estas não são apenas marcas comerciais - são fenómenos culturais globais que influenciam milhões de pessoas diariamente. O controlo destas propriedades intelectuais por um fundo soberano representa uma concentração de poder sobre a cultura digital contemporânea que deve ser alvo de escrutínio rigoroso.

O padrão de centralização: uma preocupação antiga confirmada

Como temos vindo a alertar em artigos anteriores, a estratégia saudita de domínio do ecossistema dos esports e do gaming tem-se intensificado nos últimos anos. A aquisição dos principais Tournament Organizers através do ESL FACEIT Group, a criação da Esports World Cup com prémios recordes, os investimentos massivos em clubes e competições - tudo isto fazia parte de um padrão claro. Agora, com a aquisição da EA, esse padrão atinge uma nova dimensão.

A Arábia Saudita não está apenas a investir no ecossistema competitivo dos esports - está a adquirir o controlo sobre os próprios jogos que servem de base a essas competições. Esta integração vertical, do desenvolvimento dos jogos até às competições de topo mundial, cria um nível de controlo sem precedentes que deveria preocupar todos os que valorizam a diversidade, a independência e a transparência na indústria.

A sombra de Kushner: geopolítica e negócios de família

A presença da Affinity Partners de Jared Kushner neste consórcio adiciona uma camada particularmente preocupante a esta operação. Kushner, genro do ex-presidente Donald Trump e figura central na sua administração, recebeu dois mil milhões de dólares do Public Investment Fund saudita logo após o fim da presidência Trump. Esta ligação direta entre decisões políticas tomadas durante a administração Trump relativamente à Arábia Saudita e os subsequentes investimentos sauditas em empresas ligadas à família Trump levanta óbvias questões sobre conflitos de interesse.

Quando o poder político se entrelaça desta forma com negócios privados de tal magnitude, e quando esses negócios envolvem a aquisição de empresas que influenciam culturalmente milhões de pessoas globalmente, não estamos apenas perante uma questão de ética empresarial - estamos perante um problema de transparência democrática e de potencial instrumentalização da cultura popular para fins políticos.

Game-washing: o novo sport-washing

O conceito de "sport-washing" - usar investimentos desportivos para melhorar a imagem internacional de regimes com registos questionáveis em direitos humanos - está bem estabelecido. A Arábia Saudita tem sido acusada de usar esta estratégia através de investimentos no futebol, na Fórmula 1 e noutras modalidades. Agora, com a aquisição da EA e o domínio crescente sobre os esports, surge o "game-washing".

Os videojogos e os esports são ferramentas culturais poderosas que chegam a audiências jovens e globais. O controlo sobre estas plataformas permite não apenas projetar uma imagem positiva, mas também influenciar narrativas, moldar percepções e, potencialmente, exercer uma forma subtil de poder cultural. Quando uma nação com um historial controverso em liberdade de expressão e direitos humanos passa a controlar plataformas de entretenimento que alcançam centenas de milhões de pessoas, as implicações vão muito além do mero entretenimento.

Implicações práticas: transparência, empregos e conteúdo

Para além das questões geopolíticas, esta aquisição levanta preocupações práticas imediatas. A saída da bolsa significa menos transparência, menos obrigações de prestação de contas pública e menos escrutínio sobre decisões empresariais. A pressão para maximizar lucros a curto prazo pode diminuir, mas surge uma nova pressão: alinhar as operações com os objetivos estratégicos dos novos proprietários.

Há receios legítimos sobre potenciais cortes de emprego facilitados por inteligência artificial, sobre alterações nas políticas de diversidade e inclusão que têm caracterizado a EA nos últimos anos, e sobre possíveis mudanças nos conteúdos dos jogos para os tornar mais alinhados com valores conservadores ou para evitar temas sensíveis para os novos proprietários. Estas não são preocupações teóricas - são questões práticas que afetarão milhares de trabalhadores e milhões de jogadores.

A reação da comunidade: preocupação generalizada

As redes sociais, particularmente o X (antigo Twitter), têm estado a ferver com preocupações sobre esta aquisição. Os termos mais comuns nas discussões são reveladores: "dynasty vibes" (sentimento de dinastia), "power grabs" (aquisições de poder) e "who really owns gaming?" (quem é que realmente controla o gaming?). A comunidade de jogadores, tradicionalmente cética em relação a grandes corporações, está particularmente inquieta com esta concentração de poder.

Esta reação não é infundada. Quando uma indústria que se orgulha da sua natureza democrática e descentralizada - onde qualquer pessoa pode, em teoria, criar um jogo e encontrar uma audiência - se torna progressivamente controlada por um número reduzido de entidades com agendas políticas claras, há razões legítimas para preocupação.

O imperativo europeu: proteger a nossa indústria

Para a Europa e para Portugal, esta aquisição deve servir como um alerta final. Não podemos continuar a ser espectadores passivos enquanto o controlo sobre uma das indústrias culturais e económicas mais importantes do século XXI se concentra nas mãos de atores que não partilham necessariamente os nossos valores democráticos, de liberdade de expressão e de direitos humanos.

É urgente que a União Europeia desenvolva uma estratégia industrial para o setor do gaming e dos esports, protegendo e promovendo empresas europeias, investindo em talento e infraestruturas, e criando um ecossistema robusto que possa competir com estas megaoperações financiadas por fundos soberanos. Portugal, com o seu talento reconhecido em programação e design, pode e deve ter um papel protagonista nesta estratégia.

Conclusão: gaming como campo de batalha geopolítico

A aquisição da Electronic Arts pela Arábia Saudita marca o momento em que o gaming deixou definitivamente de ser apenas entretenimento para se tornar um campo de batalha geopolítico. As questões em jogo são sobre poder, influência e controlo cultural numa escala global.

A resposta não pode ser a ingenuidade ou a passividade. Temos de reconhecer esta realidade e agir em conformidade, garantindo que a Europa e Portugal desenvolvem capacidades próprias, protegem os seus valores e mantêm uma voz independente num ecossistema global cada vez mais concentrado. O futuro do gaming - e, por extensão, uma parte significativa da nossa cultura digital - está em jogo.

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