Ricardo Silveirinha

Ricardo Silveirinha
Ricardo Silveirinha Clube Romântico de Futebol

A arte científica do penálti

A 14 de Maio de 1994, no Riazor, estádio do Deportivo da Corunha, Miroslav Dukic preparava-se para aquele que viria a ser um dos golpes mais trágicos da História do Futebol. Empatados 0-0 com o Valência no último minuto da última jornada, os jogadores do Super-Depor rezavam por um milagre que lhes desse a vitória e, consequentemente, o campeonato espanhol. Um título que, ainda por cima e só para ajudar à festa, seria o primeiro para o clube galego.

Na linha directa da hierarquia do penálti, o sérvio Dukic não era a primeira escolha, nem sequer a segunda. Mas tragicamente aconteceu que Donato, o capitão, havia já sido substituído durante o jogo, e Bebeto, o genial goleador que festejava golos embalando os filhos nos braços, não quis bater a bola decisiva porque tinha falhado um penálti no jogo anterior. Resultado: atiraram o pobre Miroslav para o meio dos lobos de Valência e mudaram o rumo da História para sempre.

A bola, tímida, quase nem uma bola mas qualquer coisa mais leve e frágil, uma pena, seguiu para a meia-direita do guardião González que a aninhou no peito sem nenhuma dificuldade e atirou os adeptos do Depor para a noite mais longa das suas vidas. No momento decisivo, como lhe chamava Cartier-Bresson, o jogador sucumbiu à pressão e fez o que quase todos os humanos fariam: jogou sem risco, para o meio, à espera da sorte e com medo da morte. Mas... terá sido apenas culpa do azarado sérvio? Ou Arsenio Iglesias, o histórico treinador castelhano, também deve contas eternas ao Riazor?

No coração do adepto, há sempre um penálti de sonho. Mas, para quem é responsável por um plantel de alto rendimento, e tem de escolher o seu melhor executor, a pergunta que deve ser colocada é simples: o que é um penálti bem marcado?

Em resposta, teremos várias visões. Logo na primeira fila, aparecerão os pragmáticos: «é o penálti que dá golo». De seguida, os prestidigitadores: «é o que engana o guarda-redes». Os estetas: «bola para um lado, guardião para o outro». Os cruéis: «o que humilha o adversário». Os estrategas: «o que transmite a ideia de ir para um canto e vai para o lado contrário». Os cavaleiros: «o que tem uma paradinha a meio da corrida». Os bélicos: «o que faz explodir as redes!». Os emotivos: «o que faz levantar o estádio».

Na verdade, como em quase todos os momentos do jogo, o futebol é para cada adepto um mundo muito diferente do dos restantes e as teorias sobre ele tendem para mais infinito. Há em cada um de nós um especialista catedrático nesta arte; temos todos o conhecimento científico - porque empírico - sobre quais as melhores acções ao longo de uma partida de futebol. Tivesse o treinador a nossa clarividência e o nosso clube ganharia sempre por 20-0 com mais 20 golos falhados porque os jogadores, já se sabe, não possuem as nossas qualidades inatas para a prática da modalidade.

Humildemente, deixarei o meu contributo: um penálti bem marcado é aquele que, por maior qualidade que o guarda-redes tenha, por mais alto, elástico, atlético, instintivo que o guardião seja, fará com que a bola entre sempre na baliza. Dito de outra forma: o penálti bem marcado é o penálti que encontra a sua janela para a baliza num lugar em que é impossível ao adversário chegar.

Pode ser, na perfeição, uma bola batida a um dos cantos superiores da baliza - esse é o penálti-fenómeno, o penálti-pérola, o Rei dos penáltis. É o penálti que traça uma linha horizontal e vertical tão perfeita que cria a diagonal eterna. Lá «onde a coruja dorme» é o sítio do milagre e da explosão do adepto. Esteticamente, é admirável; tecnicamente, soberbo; psicologicamente, devastador para o guarda-redes.

Mas há outras caminhos por onde marcar golo mantendo o essencial do princípio «penálti bem marcado»: bola batida, rasteira, em força, a um dos cantos da baliza; bola batida para as malhas laterais de um dos lados, a meia-altura; bola, rasteira, meia-altura ou alta, que ou apanhe a lateral interna ou o poste pelo lado de dentro, inevitavelmente entrando. Toda a bola que for batida com estes princípios dará golo. É impossível a um guarda-redes defender um esférico que vá puxado, em força, a um dos lados da baliza. E isso, por ser inevitavelmente golo, é um penálti bem marcado.

O que são penáltis mal marcados? São todos os outros. Um penálti «à Panenka» é um penálti mal marcado, por mais arte que o jogador tenha em fazer crer ao guarda-redes que vai atirar para um canto e não para o centro, em delicadeza - é bonito, não nego, mas não cumpre o requisito de tornar impossível ao guardião a sua defesa. Basta que fique ao centro para defender a bola; basta que, indo para um dos lados, consiga com os pés tocar no esférico. Ou seja, este é um penálti que não depende apenas e só da qualidade do remate, mas de vários outros elementos: posicionamento do guarda-redes; capacidade do guardião em antecipar a ideia do marcador; sorte do guarda-redes que, mesmo atirando-se para um canto, pode tocar com as pernas ou pés na bola. Pelos mesmos motivos (não dependerem apenas da qualidade do executante mas de vários outros factores), todos os penáltis que fizerem a bola entrar num lugar da baliza a que o guarda-redes pode chegar são maus penáltis, são penáltis com gripe, são anti-penáltis.

E isto é independente de ser golo ou não. A grande maioria dos penáltis marcados em futebol é executada de forma deficiente. Pode a bola entrar ou não, é irrelevante para a análise. Pergunta-se é: «podia o guardião chegar àquela bola?». Quase sempre, sim. Logo, o executante não fez aquilo que devia.

A função de um treinador tem de passar por escolher o jogador que marca mais vezes o penálti bem marcado, o tal impossível de ser defendido, e não aquele que nos treinos mete mais vezes a bola na baliza porque esse, em competição, falhará inevitavelmente mais do que aquele que nos treinos mete, em 10, 7 bolas impossíveis de defender, 2 à trave e 1 para fora. O que marca, por exemplo, 8 em 10, mas fá-lo de forma deficiente, estará sujeito, em jogo, a vários outros imponderáveis elementos que o forçarão a uma estatística mais baixa se analisarmos a sua produção no tempo - digamos, por estudo, 5 anos.

Ou seja, como em tudo neste jogo que nos apaixona, mais uma vez importa olhar menos para o resultado esporádico e mais para a acção e decisão acertadas ao longo do tempo. Será que, em 1994, não havia, no plantel do Desportivo, alguém mais capaz do que Dukic para bater aquela bola?

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