Luís Alves Monteiro

Luís Alves Monteiro
Luís Alves Monteiro Atleta olímpico

Sem Glória e com drama — um elevador chamado Desejo

O Elevador da Glória nasceu em 1885. Ferro, madeira e engenho a ligarem a Baixa ao Bairro Alto. Era transporte de quotidiano, discreto, funcional, cidade pura. Hoje é postal turístico. E, tragicamente, palco de luto.

A tragédia

Na quarta-feira, 3 de setembro de 2025, a máquina desceu desgovernada a calçada. O cabo cedeu. O carro descarrilou e embateu num edifício. Dezasseis mortos, mais de vinte feridos — portugueses e estrangeiros. O Governo decretou luto nacional, Lisboa três dias de luto municipal. Todos os funiculares ficaram suspensos.

A falha técnica é evidente. Mas o acidente é mais do que isso: é metáfora. A Glória sucumbiu à erosão do tempo e ao peso de uma cidade transformada em parque temático.

A cidade em saldo

Em 2024, Portugal recebeu 29 milhões de visitantes. Vieram empregos, notoriedade, receita. Mas vieram também sombras:

   •   Habitação: preços das casas subiram 9,1% em 2024. Lisboetas e portuenses são expulsos para a periferia.

   •   Comércio: padarias tornam-se cafés gourmet, mercearias dão lugar a lojas de lembranças.

   •   Sustentabilidade: cruzeiros despejam milhares, o lixo acumula-se, o património gasta-se.

O turismo é hoje uma slot machine. Mete-se a moeda, sai lucro imediato. Mas as perdas ficam para os outros. A máquina ilumina-se com estatísticas recorde, enquanto destrói silenciosamente a cultura local e verga populações a um limiar de pobreza.

O fado sem voz

Até o fado, símbolo maior da alma portuguesa, já não resiste. Na casa da Amália, as guitarras calam-se sob o ronco dos aviões que aterram a cada dois minutos. Cada aparelho traz mais passageiros — suposta galinha dos ovos de ouro. Mas será ouro? Ou apenas o brilho falso de uma promessa que corrói?

O retrato

Glória é drama. O elevador chamado Desejo já não é apenas imagem de postal. É o retrato de um país que transforma símbolos em mercadorias e cidadãos em figurantes. Lisboa debate-se entre a miragem da prosperidade turística e o peso das suas consequências humanas.

E, juntando a tudo isto, sobra a hipocrisia de políticos que tentam esconder responsabilidades atrás de velórios oficiais e homenagens fúnebres, encenando compaixão. Mas o fumo das velas não cobre a verdade: o luto também se esfuma, rápido, na névoa voraz de um sistema que prefere esquecer.

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