Finalmente, uma equipa ganhou duas vezes seguidas a Liga dos Campeões. Dada a dificuldade que todos tiveram para o conseguir, a proeza não pode ser menosprezada. Mas será que do facto de Zidane e seus pupilos se terem sagrado bicampeões europeus se segue que Zidane seja um treinador extraordinário e que o seu Real Madrid pratique um futebol de qualidade indiscutível? A relação entre os êxitos de uma equipa e a qualidade do seu futebol não é de modo algum directa e causal. Mesmo em provas de regularidade, nas quais as qualidades colectivas das equipas são muito mais relevantes do que em provas a eliminar, é imprudente achar que as equipas vencedoras são especialmente competentes. Nos últimos 21 anos, o Olympiakos só não foi campeão grego em duas ocasiões. O Celtic é pentacampeão escocês. A hegemonia destas equipas na Grécia e na Escócia é indissociável da qualidade dos atletas que têm ao seu dispor, quando comparada com a qualidade dos atletas de que as outras equipas gregas e escocesas dispõem. Os êxitos desportivos do Olympiakos e do Celtic não são de modo algum, portanto, uma tradução das competências colectivas dessas equipas ou do trabalho irrepreensível dos seus treinadores. Essas competências até podem existir, e esse trabalho até pode ser bom, mas a relação entre isso e o sucesso desportivo dessas equipas não é de modo algum necessária. A qualidade do futebol não pode ser medida pelos troféus nas vitrines, nem pelo prestígio das competições mais difíceis de vencer. Os triunfos da Juventus em Itália nos últimos anos não invalidam que o melhor futebol praticado em terras transalpinas tenha sido o do Nápoles de Sarri, e muito menos que Allegri seja um treinador decente. Há sempre alguém que tem de ganhar, e geralmente ganha quem tem ao seu dispor o melhor conjunto de jogadores. Quando a diferença entre esse conjunto e o conjunto ao dispor dos rivais é abismal, é natural que esse conjunto, mesmo que sob o comando de um mau treinador, se sagre campeão.
À excepção da qualidade do plantel, não há nada – rigorosamente nada – no Real de Zidane que seja verdadeiramente digno de louvor. Nem o factor mais decisivo neste final de época (o aparecimento de Isco no onze titular) se pode dizer que tenha sido ideia sua. Se Gareth Bale não se tivesse lesionado, dificilmente o espanhol assumiria a titularidade e dificilmente teria o protagonismo que teve (Isco foi decisivo, a meu ver, nas duas importantes conquistas dos madrilenos). A verdade é que, enquanto treinador, Zidane ainda não mostrou grandes aptidões. Em termos colectivos, o Real é uma equipa banalíssima: o enorme espaço entre sectores, a inépcia para definir zonas de pressão, no momento defensivo, ou a inépcia para sair de zonas de pressão, no momento ofensivo, a simplicidade excessiva de processos, só amenizada pela qualidade brutal dos seus executantes, o desinteresse pela bola e pela iniciativa de jogo, a radical distribuição de tarefas, com jogadores para atacar e jogadores para defender, a fraca disponibilidade para gerir o ritmo do jogo com bola e a pouca importância dada ao jogo interior são apenas alguns aspectos dessa banalidade. Sem Isco em campo, por exemplo, não há um único jogador que, em posse, ofereça linhas de passe dentro do bloco adversário, que ocupe o espaço entre as linhas de defesa e de meio-campo do adversário e ofereça a Modric e a Kroos, geralmente os municiadores do ataque merengue, mais do que as soluções de passe do costume, junto às linhas ou nas costas do adversário. A presença de Isco atenua esse problema crónico e assegura, apenas pelas suas características particulares, uma importante melhoria colectiva. O Real de Zidane é temível no contra-ataque, é verdade. Mas já o é há anos, pelo que não me parece justo atribuir a Zidane qualquer mérito especial por isso. É-o essencialmente, de resto, porque possui jogadores que oferecem condições para isso. Também é fortíssimo nas bolas paradas, e também porque tem jogadores que, desse ponto de vista, são incomparáveis. Mas em que outros aspectos é um colectivo competente? Os médios não entram uma vez no bloco adversário e, em posse, muitas vezes é o médio-defensivo que se adianta, para permitir a circulação por fora a Kroos e Modric, que permanecem em zonas baixas e geralmente próximos da faixa. A função dos laterais é correr pela linha. Os avançados raramente baixam para dar um apoio vertical. Quantos passes frontais entram pelo chão? Quantas combinações entre dois ou mais jogadores é que acontecem por jogo? E quantas jogadas de ataque terminam em cruzamentos?
É possível a uma equipa tão banal ser bicampeã europeia? Claro que é. Com os melhores jogadores do mundo, tudo é possível. Isso não invalida que, sempre que o Real Madrid defrontou equipas competentes com bola e que procuram assumir o jogo, tenha sentido muitas dificuldades. Foi assim em Espanha com o Barcelona ou o Sevilha, por exemplo, e foi assim na Liga dos Campeões com o Borussia de Dortmund, o Nápoles ou mesmo o Sporting. E quando se deparou com uma equipa que, além de possuir um conjunto de jogadores de qualidade idêntica, procura assumir o jogo (mesmo que sem a competência colectiva de outras equipas), o Real só não foi eliminado porque não calhou. Há quem reconheça tudo isto e, ainda assim, conceda que Zidane tem de ter algum mérito nos êxitos desta temporada. Faz-me alguma confusão, devo confessar, que haja tanta gente incapaz de perceber que tanto se ganha por causa do treinador como se ganha apesar dele. Umas vezes uma equipa vence por influência do treinador; outras vezes vence apenas porque sim. O que é que custa aceitar isto? Essa influência pode registar-se num modelo de jogo consistente e bem trabalhado ao longo da época, no plano de jogo posto em prática nas partidas decisivas ou até numa substituição feliz ou num rearranjo táctico improvisado sob o joelho. Mas, muitas vezes, essa influência não se regista. Muitas vezes, ganha-se apenas porque não se perde, porque uma bola decidiu entrar, contra todas as leis da física e os mais elaborados cálculos de probabilidades, após um remate aparentemente inofensivo que, acertando de súbito num adversário bem intencionado, ganha um efeito de que nem o Roberto Carlos seria capaz e escapa às luvas do mais precavido e inteligente dos guarda-redes. Esta necessidade doentia de conferir mérito a todo e qualquer marreta a quem é dado o privilégio de usar a braçadeira de treinador é absurda.
No caso concreto do futebol do Real, é difícil apontar um aspecto no qual se identifique claramente o dedo do treinador, pelo que os elogios têm recaído sobre a capacidade de liderança de Zidane, ou sobre a capacidade para gerir os egos daqueles jogadores. Como não sei bem que capacidades são essas, e tenho dificuldades em perceber de que modo é que elas se expressam em campo, desconfio sempre desse tipo de elogios. Era assim, aliás, que se elogiava Claudio Ranieri o ano passado. Dizem que burros velhos não aprendem línguas, e se calhar é verdade. Pelos vistos, nem com os melhores exemplos aprendem. Quando uma equipa tem sucesso e não se sabe bem explicar porquê, os treinadores deixam de ser aplaudidos pelo trabalho de treinador propriamente dito e passam a ser aplaudidos por outras qualidades. E logo surge a lengalenga de que o trabalho do treinador não se esgota nas competências técnico-tácticas, de que é preciso muito mais do que conhecer a fundo o jogo ou saber ler as incidências de uma partida em específico. Troçam dos desenhos do outro no cavalete, mas acreditam ainda assim nas virtudes da palavra de ordem e dos berros no balneário, como se a capacidade para persuadir as outras pessoas das suas ideias dependesse apenas da forma convincente com que elas são proferidas ou como se o carisma de um líder não tivesse qualquer relação com as suas ideias e competências específicas. Alguém aclamaria Napoleão, aquando do regresso do exílio em Elba, se não lhe reconhecessem as qualidades necessárias para voltar a desempenhar o cargo de imperador? Um bom treinador de futebol distingue-se de um mau treinador de futebol pelas competências específicas no seu domínio, não por ter capacidades inatas para liderar outras pessoas, por ser carismático ou por saber dar palmadinhas nas costas. Zidane não só não fez nada de especial para que o seu Real, em termos colectivos, fosse mais do que um conjunto de onze jogadores como não fez nada de especial para que cada um desses jogadores se sentisse particularmente bem consigo mesmo. Os jogadores podem transcender-se por causa do treinador, mas é perfeitamente possível que se transcendam também apesar dele. A expectativa da glória, por exemplo, é mais do que razão para que se transcendam. O sucesso e o insucesso desportivo de uma equipa não depende necessariamente das acções do treinador, e nem sempre o que acontece em campo é resultado da vontade daquela pessoa sobre a qual recai a responsabilidade do que aí se passa. Mas então como é que se explica o sucesso de Zidane? Da mesma maneira que se explica o sucesso de quem é obrigado a ir a jogo e lhe sai um poker de ases: acontece. Contentemo-nos com isso, como nos contentaríamos com a passagem rara de um cometa. Mas não confundamos um acontecimento com um feito, e guardemos os foguetes para celebrar o que deveras merece celebração.
Nuno Amado é um dos fundadores do blogue www.entredez.blogspot.pt e colabora em www.lateralesquerdo.com
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