Nuno Félix
O caso Boavista é mais do que um episódio lamentável de um histórico em colapso. E é a prova de que a chamada “liga profissional” portuguesa é, antes de mais, uma construção de papel. Como é possível continuar a vender a ideia da competitividade e espetacularidade de um campeonato profissional quando esta época tivemos jogadores a treinar sem luz, sem água quente e, pior, sem os salários pagos? Como se tolera que um clube em incumprimento gritante continue a competir em igualdade formal com os restantes?
Esta semana, duas notícias deixaram a nu o estado calamitoso da SAD axadrezada. Ficámos a saber que o PER (Processo Especial de Revitalização) da SAD foi chumbado devido a uma dívida de 53 milhões de euros à construtora Somague, referentes à construção do Estádio do Bessa (Record, 30 de maio de 2025: "PER da SAD do Boavista chumbado por dívida do clube"). Num outro artigo do Record, o avançado Róbert Bozeník despediu-se do clube denunciando a falta de condições básicas como luz, água quente e salários em dia (Record, 30 de maio de 2025: "Bozenik diz adeus ao Boavista: 'Quando enfrentamos falta de água quente, luz ou salários...'"). Um jogador internacional, com contrato até 2026, abandonado à sua sorte num clube sem rumo.
Mas o mais grave não é a falência anunciada de um clube. É a apatia cúmplice dos restantes membros da Liga. Os clubes, que deviam ver a competição como um negócio coletivo. A autorregulação é inexistente, a solidariedade estratégica também. Ninguém defende a seriedade da competição, ninguém protege a marca comum. Porque, em Portugal, cada um joga só por si, até um dia...
A Liga Portugal fica mais atrativa sem o Boavista e sem o Estádio do Bessa?!
Este silêncio cúmplice é tanto mais chocante quanto os danos são evidentes para todos: a credibilidade do campeonato fica manchada, a imagem da Liga Portugal sofre e o produto futebol, que deveria ser valorizado como uma indústria coletiva, vê-se corroído por dentro. A ausência de mecanismos de controlo rigorosos e de penalizações exemplares para incumpridores reincidentes transforma a competição numa autêntica farsa.
Como se pode clamar por "verdade desportiva" como o fez recentemente o SL Benfica quando nem todos partem das mesmas condições mínimas? Como sustentar a competitividade e a imprevisibilidade dos resultados — dois pilares do apelo universal do futebol — quando há equipas a funcionar num regime quase amador dentro de um quadro que se diz profissional?
É incompreensível que os clubes deixem perpetuar este tipo de situações, sem exigirem uma reforma estrutural, sem forçarem a aplicação de regras apertadas que protejam não só o seu próprio investimento, mas também a integridade da competição. Fingem que não é com eles, mas é. A médio prazo, a instabilidade de uns contamina todos.
Ou a Liga Portugal transforma-se numa entidade verdadeiramente profissional, com critérios de licenciamento exigentes, controlo financeiro eficaz, cultura de exigência coletiva, e mecanismos de solidariedade formais entre clubes, ou continuará a ser um campeonato onde a aparência conta mais do que a substância. E isso, mais cedo ou mais tarde, acabará por atingir todos.
Quem não defende a casa comum, um dia acabará soterrado nos seus escombros.