Nuno Félix

Nuno Félix
Nuno Félix Scout internacional

Um futebolista do 25 de Abril e do 1º de Maio

O futebol não pode ser uma bolha alienada da realidade social.

Num tempo em que se vive refém de silêncios bem pagos, onde a neutralidade se confunde com cumplicidade e o ativismo é muitas vezes punido com o "cancelamento", ainda há quem rompa com o conformismo e nos lembre que o desporto também é mais uma trincheira na defesa dos direitos civis, da liberdade, e da consciência social.

No entanto, neste "jardim à beira mar plantado", infelizmente acredito que se o Cassius Clay tivesse nascido português, mais depressa aceitaria o estatuto de "propriedade do Estado" do que mudaria de nome, de religião, ou lutaria contra uma guerra injusta.

A verdade é que este ano, aqui pelo país dos brandos costumes, a festa da liberdade foi ensombrada por um ataque violento de um grupo extremista racista e xenófobo com ligações ao futebol. E quando se esperaria que alguém do futebol ou do desporto em geral, por mais tímida que fosse a referência, viesse condenar o acontecido, ou apenas sublinhar que no futebol e no desporto, não há lugar para grupos como o 1143 do skin Mário Machado, sem surpresa, ficámos vazio.

Em boa verdade, ao dia de hoje, e agora que o ex-jogador do Sporting Francisco Geraldes já não é apanhado a ler o "Ensaio sobre a Cegueira" do Saramago no intervalo dos treinos, o mais próximo que temos do envolvimento de um desportista na política é o caso  do ex-lançador do peso Marco Fortes que se levanta todos os dias da caminha para guardar as costas ao Dr. André Ventura.

Individual ou coletivamente nada se ouviu, porque nada se disse, da parte de qualquer atleta, dirigente ou instituição, e no entanto, enquanto imagens de extrema e gratuita violência passavam em primetime e por todos os canais de televisão, eram repetidas até à exaustão expressões como "membros da claque de futebol", "Juventude Leonina", ou "Sporting Clube de Portugal", que, como é óbvio, nada têm que ver com aqueles criminosos.

Mas aqui ao lado em Espanha há um atleta, um internacional de seleção espanhola de futebol, que é ao dia de hoje um verdadeiro porta-estandarte dos direitos cívicos e isso em nada melindra a sua qualidade enquanto futebolista.

Borja Iglesias, avançado que representa o Celta de Vigo, é esse exemplo. Um jogador que não tem medo de pensar, de falar e, sobretudo, de se posicionar.

No rescaldo do 25 de Abril — símbolo maior da liberdade e da resistência à opressão — e do 1.º de Maio — dia internacional do trabalhador, da dignidade e da justiça social — a sua postura merece um destaque especial.

Borja Iglesias tem sido uma voz firme contra todas as formas de discriminação no futebol. Pintou as unhas de preto como forma de protesto contra a homofobia, o que abriu um precedente num meio ainda largamente conservador e heteronormativo. Foi também protagonista do vídeo de uma campanha nacional que provocou uma reflexão poderosa e desconfortável sobre a realidade que muitos atletas LGBTQ+ enfrentam no balneário e na sociedade. Tem sido um crítico assumido da extrema-direita espanhola, sobretudo do partido Vox, cuja agenda política considera perigosa para os direitos civis, para os imigrantes, para as mulheres e para a democracia em geral. É também um defensor da redistribuição fiscal e da responsabilidade social dos mais ricos: "Prefiro pagar mais impostos se isso significar viver num país mais justo", declarou. Num futebol que se revê cada vez mais como um paraíso de milionários e um território de privilégios intocáveis, foi uma posição arrojada, mas não deixou de ser respeitado enquanto atleta por isso.

Após o caso Rubiales — o beijo forçado a Jenni Hermoso — Borja tomou a posição que muitos evitaram: anunciou publicamente que não voltaria a representar a seleção espanhola enquanto as estruturas do futebol permitissem a normalização de comportamentos abusivos.

Numa cultura de silêncio, o seu gesto foi um murro na mesa.

Borja Iglesias não é apenas um jogador de futebol. Mais um. É um cidadão inteiro! Para alguns um perigoso agitador, eu tomo-o por inspirador.

No mês da Liberdade e da Luta, Borja Iglesias representa o futebol que ousa pensar, falar e lutar. Um futebol de Abril e de Maio. E que, talvez por isso, nos devolva alguma esperança no futuro do desporto e da sociedade.

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