O meu clube

João Gonçalves
João Gonçalves

Dignidade europeia

O futebol parou e ninguém estava preparado para isto. Em quatro décadas que levo de dedicação ao jogo mais bonito alguma vez inventado, nunca tinha passado por tal paragem. A única pausa admissível no futebol é o defeso. Não estava preparado para este deserto. Nem eu, nem ninguém porque o futebol sempre esteve acima de tudo e de todos entre agosto e julho. Nada pára o futebol. Guerras não param o futebol, tivemos um Liverpool – Boavista no mais famoso dia 11 de setembro de sempre. Religião não pára o futebol, há o boxing day e jogos na Páscoa. Crises financeiras não param o futebol, o FMI esteve forte por cá e continuou a haver bola. Política não pára o futebol, o futebol é que faz o favor de desviar jogos em fins de semana de eleições.

Depois, a nível pessoal, o objetivo principal até chegar à idade adulta era conseguir a independência financeira e a compreensão familiar para dar prioridade total aqueles 90 minutos em que joga o Benfica. Objetivo conseguido e a vida flui de forma natural, o espaço compreendido entre o final de um jogo e o começo do próximo é para ser investido na responsabilidade profissional, cuidar da família e conviver com os amigos. Um carinho retribuído a todos que não amuam por eu faltar a um aniversário, dia da mãe ou do pai, casamento ou batizado, só porque não troco um jogo do Benfica por nada. É a lei da compensação na vida.

Serve esta introdução para contextualizar o verdadeiro sentimento de vazio dramático que se abateu sobre os adeptos de futebol por estes dias. Maldita Covid-19!

Líder. Luís Filipe Vieira deve ajudar a melhorar competições como a Taça da Liga e a Taça de Portugal
E agora? Podemos ser pessimistas e deprimir ou aproveitar para parar, olhar para trás, para o presente e pensar no futuro. Neste caso, o que pode ser o futuro imediato do Sport Lisboa e Benfica?
Já temos bases interessantes. O clube respondeu à altura da sua grandeza e responsabilidade social, justificando o seu estatuto de utilidade pública. Direção, técnicos, jogadores, Fundação e Casas, todos ajudaram de forma responsável e significativa no combate à pandemia.

A seu tempo, ouvimos várias figuras de peso no clube a mostrar os vários caminhos possíveis e os objetivos a atingir. Domingos Almeida Lima aceitou com classe o final abrupto das competições das cinco modalidades de pavilhão. Sem truques e sem exceções, mesmo naquelas que o Benfica ia bem lançado para vencer. Tudo vai mudar e no plano das modalidades espero que o Benfica continue a ser eclético, competitivo mas que aproveite a oportunidade para se afastar de orçamentos surreais e sem retorno. A aposta na formação é o caminho.
Um caminho que Domingos Soares de Oliveira também fez questão de reforçar na sua intervenção na BTV. Vamos ter novos desafios, por isso espero que o Benfica continue a encurtar a lista inexplicavelmente gigante de jogadores emprestados, por exemplo. Comprar jogadores que nunca chegam a vestir a camisola do clube tem que ser algo para ficar no pré Covid-19. Por outro lado, gostava que o investimento previsto para melhorar o Estádio da Luz não fique adiado por muito tempo, Domingos Soares de Oliveira falou na aquisição de novos écrans para substituir os obsoletos ‘marcadores eletrónicos’ da Luz e ainda uma atualização na iluminação do estádio com uma solução mais económica e amiga do ambiente.

Tiago Pinto foi muito claro quanto ao objetivo imediato de terminar a Liga e decidir tudo dentro de campo. Todos os desenvolvimentos que conhecemos até aqui deram razão ao caminho traçado pelo director -geral do Benfica. Mesmo sem público, e eu não falho um jogo na Luz para o campeonato há décadas, assumo que é a melhor opção. Por muito que me custe.

Mas o grande mote para o futuro foi dado por Rui Costa de uma forma inesperada. No rescaldo de um excelente documentário de Ricardo Soares na Benfica TV sobre o título europeu ganho ao Real Madrid, Rui Costa identificou exatamente aquela que eu acho que tem de ser a prioridade do Benfica nos próximos anos; voltar a ser digno na Europa. Tem de ser este o objetivo máximo do Benfica, honrar os homens que fizeram do clube bicampeão europeu e andar nas competições europeias até abril, pelo menos.

Neste tempo de reflexão vi na BTV velhas glórias a recordarem golos e jogos que os marcaram, muitos iam dar a noite europeias. Peças que valem ouro, feitas em condições difíceis e que muito valorizaram o canal do clube. Recordei o passado com ex-jogadores, e não só, no brilhante projeto Benfica Independente no YouTube, imaginado pelo enorme Sérgio Engrácia, e todos iam parar às noites europeias. Temos de assumir este desígnio no futuro breve.

Finalmente, espero que o presidente do Benfica aproveite o balanço da FPF, que tomou conta, literalmente, do futebol português, para ajudar a melhorar as competições. As prioridades são a remodelação da Taça da Liga. Acabar com o ridículo formato atual, promover um apurado para as provas da UEFA ou, até, acabar com a competição. Ajudar a melhorar a Taça de Portugal, acabar com as repescagens e meias finais a duas mãos, os clubes profissionais podem entrar em cena mais cedo, por exemplo. Convencer a Liga Portugal a descer três clubes na 1.ª e 2.ª Liga. Seria essencial para aumentar o nível de competitividade e não termos clubes a passear na parte final da época sem objetivos nos lugares seguros entre a descida e a zona europeia.

Por fim, é essencial que o Benfica continue a defender os interesses dos seus associados e recuse essa ideia macabra de um cartão de adepto que é a única bandeira de um sinistro Secretário de Estado da Juventude e Desporto. Bem, a única não, a outra era jogos à porta fechada, essa vontade foi feita pelo vírus.

Antes desta pandemia, o rumo do Benfica estava traçado e era bem conhecido. Aposta na formação do Seixal e equilibrar a equipa principal com investimentos certeiros no mercado. É verdade que não estamos a imaginar uma compra no valor de 20M € num futuro imediato. Mas também não deixa de ser verdade que um Weigl no pós Covid-19 vai ter que valer bem menos. É nesta lógica que o Benfica tem de se posicionar porque vai continuar a ter um poder de compra superior aos rivais e até pode ser uma oportunidade para se aproximar de alvos que estavam absurdamente inflacionados.
Demasiado otimista? Prefiro ver este caminho. Quero acreditar que teremos sempre o futebol. E, especialmente, o Benfica.

Autor: João Gonçalves, comentador BTV e sócio do Benfica
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