Opinião

FRANCISCO SOBRAL: Pé de atleta

Numa visita recente ao Museu Olímpico, em Lausana, um apontamento da exposição permanente muito me surpreendeu. Numa vitrina do átrio principal exibiam-se peças do equipamento desportivo do próprio barão de Coubertin e de alguns dos seus amigos, entre os quais se contavam participantes nas primeiras edições dos Jogos modernos. Como deverão saber, Pierre de Coubertin era esgrimista - não sei com que mérito mas de confirmada aplicação. Alguns desses atletas do seu círculo de amizades e cumplicidades olímpicas eram também esgrimistas, com incursões naquilo a que poderemos chamar as “artes desportivas militares”, como o tiro e a equitação - o que fazia parte da sua educação de “gentis-homens” que o século XX iria, em breve, tornar obsoleta.

A causa da minha surpresa veio dos vários pares de sapatos ali expostos, espólio dos grandes homens do Renascimento desportivo que, pelo seu tamanho, dir-se-ia pertencerem a crianças daquelas que todas as famílias guardam, nos seus álbuns, em retratos a sépia, vestidas de marujo ou montadas num cavalinho de pau. Na verdade, à vista daquelas provas materiais, não se tratava apenas de homens ilustres, de ar marcial, porém de pés pequenos - ao contrário do retrato que de si mesmo fazia o nosso poeta Bocage. A forma dos sapatos que usavam nas suas justas desportivas, finos e oblongos, não deixa ilusões acerca do que seria a delicadeza, se não mesmo alguma feminilidade, dos pés. Isto, em termos técnicos de anatomia antropológica, chama-se gracilidade - um conceito que liga bem com a estrutura (até a esquelética) da aristocracia oitocentista, mas que não se ajusta de todo ao estereótipo actual do desportista - robusto, ossudo e musculado, mesmo quando de baixa estatura.

Aqueles sapatos, de fina pelica preta, pouco se distinguiam das botinas das nossas bisavós. Fiquei ali, de nariz pregado à vitrina, imaginando alguns daqueles homens, em uniformes de campanha, pisando as calçadas de Paris durante a guerra franco-prussiana, ou as escarpas dos Dardanelos, por onde terão andado combatendo os Otomanos; ou, uma dúzia de anos depois, as planícies lamacentas do Marne. E, de súbito, a memória fotográfica dos militarões de barbicha branca, à Foch ou à Pétain, toda ela se desmoronou à minha frente, perante a evidência dos artefactos expostos.

Lembrei-me, então, de ter visto, em Nova Iorque, expostas na montra de uma loja de sapateiro por medida, as botas de básquete descomunais de Shaquill O’Neal, umas fragatas aí para número 55, ou mais, que faziam parar toda a gente numa ruazinha traçada para Times Square. E, de novo, me assaltou o velho problema de saber até onde as mudanças verificadas nas dimensões do homem - dos homens e das mulheres, bem entendido - levaram às mudanças também verificadas nas dimensões do Desporto e vice-versa. E não só as dimensões físicas.

No decurso do século XX, as populações cresceram substancialmente em estatura e, de década para década, manifestaram-se diferenças também muito significativas na forma do corpo - no conjunto e nalguns detalhes. Este fenómeno é mais notório nos países da Europa e da América do Norte, mas não afectou todos os países da mesma maneira. No princípio do século, o português médio estava menos afastado do holandês médio que, hoje, nos “come” em altura cerca de 12 cm! Os registos fotográficos dos atletas e a observação atenta dos seus equipamentos são materiais de grande poder informativo, histórico, social e biológico.

Recordo, quando José Torres começou a jogar pelo Benfica, o espanto que se apoderou dos adeptos à vista da sua peculiar morfologia. As alcunhas canalhas que logo lhe puseram - “Pau de Fio”, “Couve Galega” e outras do género - foram desaparecendo gradualmente, desde os primeiros jogos pelas reservas, com “produções de 7 e 9 golos ao Vialonga, ao Arroios e a outros da mesma linhagem, para darem lugar ao cognome ternurento de “Bom Gigante” quando ganhou galões e respeito na alta-roda do futebol internacional.

Contudo, o que ficou desde então associado ao nome de José Torres no patuá português do futebol foi a expressão “45 biqueira larga” como epítome do jogador de gabarito extravagante. Ora, hoje, muito adolescente desengonçado chega aos catorze anos com uma patola desse calibre, como saberão, de ciência certa, os roupeiros dos clubes. Parece, assim, que o progresso desportivo do homem pode medir-se também pelo tamanho das suas pegadas - em conformidade com a História Natural.

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