Opinião

Pedro Honório da Silva
Pedro Honório da Silva Presidente da FPDE

Jogos Olímpicos de Esports: quando os valores olímpicos prevalecem

Na última quinta-feira, o Comité Olímpico Internacional (COI) anunciou oficialmente o fim do acordo de doze anos com a Arábia Saudita para organizar e operar os Jogos Olímpicos de Esports. Este acordo, assinado em julho de 2024 pelo então presidente do COI, Thomas Bach, e pelo Comité Olímpico e Paralímpico da Arábia Saudita, prometia ser um marco histórico na união entre os esports e o movimento olímpico. A primeira reação à sua dissolução pode ser de que estamos perante um rude golpe para os esports, porém, estou em crer que este foi um momento decisivo bastante positivo para o COI e as comunidades de esports.

O comunicado oficial do COI foi diplomaticamente vago, afirmando que ambas as partes continuam comprometidas com as suas próprias ambições para os esports, mas agora em caminhos separados. No entanto, como frequentemente acontece em questões desta magnitude, a verdade por detrás das declarações oficiais é aparentemente mais complexa e reveladora sobre o estado atual dos esports globais e sobre a tensão entre valores desportivos fundamentais e interesses geopolíticos.

Fevereiro de 2025: os primeiros sinais de erosão

Os primeiros indícios de que algo não corria bem exactamente como planeado no verão de 2024, surge em fevereiro de 2025, quando o COI anunciou que os Jogos Olímpicos de Esports não se realizariam antes de 2027. Na altura, os organizadores justificaram o adiamento com a necessidade de mais tempo para formular um plano adequado, mas o plano inicial previa um evento já em 2025. Este atraso de dois anos foi o primeiro sinal público de que poderia não haver um alinhamento total entre as partes, embora eu tenha considerado no meu artigo de 20 fevereiro 2025, que achava oportuno este adiamento. Já então me parecia que se estava a tentar fazer um evento com a magnitude dos Jogos Olímpicos "de um dia (ano) para o outro", e como diz o ditado, a pressa é inimiga da perfeição, logo ter mais 2 anos para organizar bem as coisas pareceu-me uma medida inteligente.

A estrutura criada para dirigir este projeto monumental incluía a Esports World Cup Foundation, o Príncipe Abdulaziz bin Turki Al Faisal (Presidente do Comité Olímpico Saudita e Ministro dos Desportos), e um comité conjunto entre o COI e o Comité Olímpico Saudita, presidido pelo membro do COI Ser Miang Ng. Tive a oportunidade de falar pessoalmente com vários elementos do Comité de Esports do COI para tentar perceber o que estava a ser feito e como, com que objectivos, e com que linhas de orientação. Desde cedo percebi que a inclinação do COI passava sobretudo por ter uns Jogos Olímpicos de Esports maioritariamente com jogos de simulação desportiva e desporto via VR - como se pode ver nas recentes iniciativas do Comité Olímpico Brasileiro com a apresentação de Remo e Ciclismo virtual, por exemplo.

Agosto de 2025: ruptura anunciada com a Esports Nations Cup

Em agosto de 2025 ficou claro que o acordo estava efetivamente ameaçado. No dia 23 de Agosto, a Esports World Cup Foundation anunciou a Esports Nations Cup (ENC), uma nova competição entre nações a cada dois anos, co-desenvolvido com alguns dos principais publishers mundiais (EA, Ubisoft, Krafton, Tencent). Este anúncio, feito durante a New Global Sport Conference em Riade, foi o prenúncio público do fim da parceria olímpica. Os sauditas, percebendo que o acordo com o COI estava em risco, avançaram com a sua própria visão - uma que não necessitava de aprovação ou supervisão olímpica.

Segundo fontes próximas da situação (e também de alguma imprensa especializada em esports), a eleição de Kirsty Coventry como nova presidente do COI em junho de 2025 alterou fundamentalmente a dinâmica das negociações. O que tinha sido aceitável para Thomas Bach revelou-se inaceitável para Coventry, e as razões são profundamente reveladoras sobre os valores em jogo e relacionadas com a própria Carta Olímpica. 

A Carta geralmente exige que os organizadores de jogos trabalhem com federações relevantes e partes interessadas. No caso dos esports, existem duas federações internacionais: a International Esports Federation (IESF) e a Global Esports Federation (GEF), sendo a FPDE membro de pleno direito de ambas. A IESF existe desde 2008 e a GEF desde 2020, e existem conversações em curso há já algum tempo no sentido de uma fusão com o objectivo de que exista apenas uma. No entanto, os sauditas não pareciam ter qualquer interesse em trabalhar com estas organizações, considerando-as financeiramente frágeis e sem controlo sobre propriedade intelectual dos stakeholders relevantes, o que é efectivamente uma realidade, diga-se em abono da verdade. 

Senão vejamos, a GEF não tem demonstrado criação de valor relevante para os seus membros filiados, tendo organizado dois campeonatos mundiais sem premiação (2022 e 2023), e cancelado outros dois (2024 e 2025). A GEF anunciou este ano que irá fazer um mundial em Los Angeles em 2026, mas a realidade é que existem zero garantias disso face ao cancelamento dos dois mundiais em 2024 e 2025… A IESF, por sua vez, tem sido alvo de diversas equipas de gestão absolutamente ruinosas e incompetentes, com alguns escândalos de desvios de dinheiro e vários exemplos de má gestão, incluindo o facto de ainda não ter pago a totalidade dos prémios do Mundial de 2024 a dezenas de países (incluindo a Portugal)! 

Houve apenas uma notável excepção com a direcção do anterior Presidente Vlad Marinescu (na qual o Vice-Presidente da FPDE era também membro da Direcção da IESF) em que a IESF ganhou uma aura de seriedade e integridade que nunca teve nem antes, nem depois da sua presidência. Vlad Marinescu demitiu-se da IESF em finais de 2023 para ceder o seu lugar ao Príncipe Faisal, fundador da Federação Saudita de Esports, e membro da Direcção da GEF, sob a promessa de uma fusão entre a IESF e a GEF, que ainda não aconteceu…

A rejeição das Federações existentes e a proposta saudita

Era óbvio que os sauditas conheciam bem o funcionamento interno destas federações, dado que o Príncipe Faisal tinha papéis executivos tanto na GEF como na IESF e observado de perto as suas fragilidades. Eu pessoalmente estou em crer, e sempre fui bastante vocal nos fóruns internacionais da IESF, que o objetivo final do governo saudita me parecia, desde há vários anos, o de levar ao fim de ambas as federações e substituí-las por algo novo - algo sob o seu controlo permanente.

A proposta saudita ao COI foi precisamente essa: que a Esports World Cup Foundation passasse a ser a nova federação internacional dos esports. Sob a presidência de Thomas Bach, o COI concordou. No entanto, quando Kirsten Coventry assumiu a presidência, aparentemente rejeitou categoricamente esta proposta porque esta nova “federação” proposta por Saudi não proporcionaria um processo verdadeiramente democrático e estaria perpetuamente sob controlo do governo saudita (algo bastante periogoso, tal como eu já alertei em vários dos meus artigos). Esta foi uma linha vermelha que, pelo que sei, a nova presidente não estava disposta a cruzar. E bem-haja!

Embora o comunicado oficial do COI seja diplomaticamente neutro, como deveria ser, a realidade é que assistimos a uma vitória importante dos valores democráticos e olímpicos sobre o poder dos petrodólares. Kirsty Coventry tomou uma decisão difícil mas correcta: os Jogos Olímpicos de Esports não podem ser construídos sobre fundações que contradizem os valores fundamentais do movimento olímpico.

Esta decisão, no entanto, tem custos. Os sauditas tinham recursos financeiros virtualmente ilimitados e capacidade de organização comprovada. O COI terá agora de encontrar um novo caminho, provavelmente com menos recursos mas com maior integridade, e não necessariamente com menos qualidade. Existem inúmeros operadores no mercado que conseguem operacionalizar uns Jogos Olímpicos de Esports ao mais alto nível. A promessa de realizar os Jogos "o mais rapidamente possível" sugere que o COI está consciente da urgência, mas não ao ponto de comprometer os seus princípios, o que saúdo veementemente com profunda admiração.

Nem tudo vai mal no mundo dos Esports

Esta divisão pode, paradoxalmente, ser bastante saudável e benéfica para o ecossistema global dos esports, porque permite que existam múltiplos modelos competitivos, reduzindo a dependência de um único organizador e preservando alguma diversidade no panorama competitivo internacional.

Por um lado, os sauditas avançam com a Esports Nations Cup, uma competição que replica o modelo das federações internacionais existentes mas com o seu próprio selo e controlo, e com uma premiação recorde ($70M). É um reconhecimento implícito de que, sem o selo olímpico, ainda se podem criar competições de elite - mas sem a legitimidade e o prestígio que só os anéis olímpicos podem conferir. Por outro lado, os Jogos Olímpicos de Esports avançam na mesma, preservando os valores da carta olimpica e o desenvolvimento das bases desportivas. Se quisermos estabelecer um paralelo com o Futebol, por um lado temos o Campeonato Mundial de Nações (FIFA World Cup = Esports Nations Cup) dirigidos aos atletas de topo nos principais títulos de esports (CS2, LOL, PUBG, Apex, etc.), e por outro lado teremos os Jogos Olímpicos de Esports, que, a semelhança dos Jogos Olímpicos, são dirigidos aos atletas de alta competição nos jogos de simulação desportiva (EA FC/eFootball, NBA2K, SimRacing, etc.).

O fim do acordo entre o COI e a Arábia Saudita para os Jogos Olímpicos de Esports é um momento definidor. Demonstra que, mesmo numa era dominada por considerações financeiras, ainda existem linhas que não devem ser cruzadas. A decisão de Kirsty Coventry de colocar os valores olímpicos acima dos petrodólares sauditas é uma lição importante para todos os que se preocupam com o futuro dos esports.

Selecções Nacionais de CS2 em 2024
Selecções Nacionais de CS2 em 2024

Para Portugal, este é o momento de se posicionar como parte da solução. Temos valores, temos talento, temos estruturas democráticas e temos compromisso com a igualdade. O que precisamos agora é de vontade política para transformar estas vantagens numa participação activa na construção do futuro olímpico dos esports - um futuro que, finalmente, parece-me estar a ser construído sobre os fundamentos certos.

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