Opinião
Para jogar matraquilhos, não basta existir. Mais do que dominar nuances técnicas de pulso ou conhecer os melhores dichotes bélicos a cuspir para cima do adversário, é necessário primeiro ter indumentária a preceito. Uma pessoa não pode aproximar-se de uma mesa trajando fatinho e gravata, por exemplo. O jogo exige de nós a devoção solidária de um respeito tabernal - calças surradas, t-shirt rasgada, sapatos gastos, um boné vermelho da Sagres virado para trás, tinta na cara, manchas de vinho na pele. Resquícios honestos de uma vida matraquilhada a vícios e peculiares berbicachos.
Cada matraquilhador com a sua camisola: de um lado, os do Benfica; do outro, os do Sporting. Cada par de jogadores com o seu equipamento já maltratado por décadas de bebedeiras, zaragatas e esporádicas vitórias. O cenário: do lado dos benfiquistas, dois bípedes com as camisolas do Valdo e do Paneira; os sportinguistas vestidos a Balakov e Juskowiak - o Rui Barros e o Timofte estão nos topos, a assistir. Todos vociferam como animais no cio com as minis encostadas ao ábaco que leva roldanas de um lado para o outro consoante as bolas que batem no fundo da madeira e levantam um som oco de eco eco eco.
Uns definham na vergonha daquela má defesa, em que a mão esquerda prendeu os nós e não soube ver o engano diagonal do pé pintado a preto e branco de uma chuteira cheia de ângulos; outros festejam, quase bêbados, aproveitando o som das várias esferas que vão caindo do lado contrário, para dois, três, quatro goles directos para a garganta onde se fazem outros jogos de matraquilhos entre a goela, a língua e o céu da boca. Urram muito, os matraquilhadores. Bebem mais.
Os bonecos acordam, vivem, jogam e adormecem sempre da mesma forma: hirtos no seu abraço de metal, uns com os outros como alentejanos numa espécie de dança lenta de lento cante, quase tocando o relvado de madeira. Há-de ser intrigante, sufocante até, estar ali uma vida inteira tão perto do terreno de jogo e nunca poder tocá-lo, como se os tivessem transportado para uma vida de semi-enforcados, não mortos mas quase, atirados para uma prisão de horizontais por onde vão respirando, chegando-se às vezes à direita, outras à esquerda, nunca para cima nem para baixo. E o coração do boneco-jogador palpitando por dentro de uma tinta com mais de 30 anos, uma tinta que não cobre os sentimentos amargos daquele craque já sem metade da cabeça que sobrevive dentro de uma plataforma crua e fria de químicos e parco esmalte.
Quem é, afinal, aquele médio direito que, se for bem orientado, cobre toda a baliza, recupera bolas na dúvida da gravidade ou de um tampo menos capaz, que lança contra-ataques venenosos para uma bola que quase vai entrar não fosse bater no poste pintado a branco junto à goela do golo? Quem quer saber deste homem que, por vezes, roda sobre si próprio como trapezista de circo barato? Que vive atrelado a outros uma vida inteira, com o corpo percorrido por um metal que lhe fere o fígado, os pulmões, os rins, as dores, os amores, as saudades? Lançado lateralmente de um lado para o outro, vai vendo o cérebro desalmadamente horizontar e mesmo quando quer rematar, porque vê o golo ali tão perto, é subjugado a uma mão que o direcciona para a defesa ou passe lateral que ele naturalmente questiona porque já antecipava (com melhor visão) a jogada final. Quem são estes homens hirtos que agora lembramos? Quem lhes conhece as angústias e os frios?
Vai para os matrecos de forma humilde, companheiro leitor. Ouve quem conhece o ofício: sempre em 2-5-3, sistema e modelo que atacam o futebol calculista. Veste-te com respeito. Bebe muito, como devoção. E, nos intervalos dos golos, dá de beber aos bonecos.