Escrevem os Leitores

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Golo ou greve?

Contado ninguém acredita, mas é verdade: a coroa do desporto-rei anuncia partir-se e teme-se uma ameaçada greve nunca vista. Imaginam-se botas entrelaçadas umas nas outras, a pender de postes que erguem balizas estáticas onde se alinham apitos em impactante silêncio. Os jogadores de futebol protestam porque são pessoas normais, mas querem o que nem as pessoas normais podem pensar querer: ser incluídos no processo decisório do seu trabalho, não ser expostos a um 'burnout' iminente, cuidar da sua integridade física e mental, bem como manter o rendimento alto que exige descanso. Quem não ambiciona isto, afinal?

Sabe-se que ninguém produz sem descansar. Cansado ninguém consegue estar motivado. E a motivação parte de uma relação mútua através da qual alguém solicita, considerando, e outro alguém oferece tendo, precisamente, considerado. Esta pode ser, até, a palavra-chave do momento: consideração. Os jogadores, de chuteiras na mão, decidem perguntar "então e nós?", mas quem de direito prefere ignorar quaisquer perguntas mantendo o novo formato da competição: 50 jogos transformados em 80 jogos, que na verdade podia traduzir-se como 50 momentos de paixão transformados em 80 momentos de angústia e pura obrigação.

"Quem sofre somos nós!", diz, com a boca, um dos jogadores de classe mundial enquanto os olhos, inevitavelmente, confessam "e eles limitam-se a contar notas à custa de sprays milagrosos, batidos de frutas dúbias, barritas mais rijas que pedras e injecções para às dores". Pena de quem ganha €260.000,00 por semana é impossível ter, por muito que o dói-dói doa como nunca doeu. Reparem: tudo o que têm sido apontado à UEFA, enquanto descontentamento dos jogadores, sintetiza, eximiamente, o quotidiano dos infinitos trabalhadores que, na maioria, ainda escolhem encher o estádio para ver as mais frágeis e indefesas vítimas desta tremenda injustiça laboral. Aliás, há uma diferença: as pessoas normais, dos nem-mil-euros-mês, quando arriscam falar nos empregos, o que é raríssimo, sofrem logo consequências, sendo mal tratadas ou simplesmente ignoradas com as habituais papas e bolos.

Os jogadores jogam, tem oportunidade de jogar, dedicando-se a um desporto estupidamente bem remunerado que adoram, e nem por isso o individualismo é descartado: "quem sofre somos nós", dizem como se não houvesse nunca substitutos ou até jogadores por convocar à ficha de jogo. Atenção: sabem onde inexistem suplentes ou reservas? Na nossa vida diária, quando, às 6h45 da manhã, o despertador, depois de já ter gritado às 6h25, 6h30, 6h35, 6h40, nos atira para banhos de olhos ainda fechados e, em seguida, para transportes públicos onde já não cabe uma pontinha que seja de esperança! "Quem sofre somos nós!", ouve-se, novamente, da boca dos verdadeiros bate-bolas profissionais, não compreendendo o descaramento perante os milhões que assistem sem sequer entenderem - sabe-se lá porquê - a dimensão da gravíssima ofensa: nem-mil-euros-mês, reclama alguém, esgotadíssimo, depois de sair às 7h da manhã e chegar quase às 20h da noite, na fúria de perder um jogo destes craques agora com necessidades de reinvidicações públicas, quando na verdade, este alguém, perdeu, isso sim, o mais importante que alguma vez teve: a vida.

A vida que é engolida por horários infinitos de trabalho sem verdadeira voz, por entretenimentos sempre-sempre disponíveis e por desculpas que legitimam nunca chegar-se a existir plenamente. No entanto, há algo de importante nesta situação. A UEFA, os jogadores, e todo o lobby futebolístico, têm oportunidade de encontrar uma solução publicamente discutida, por meio da qual transmitam às pessoas normais já atentas ao real desenvolvimento humano, que o diálogo transparente, o bem estar de todos os intervenientes e o lucro dos negócios podem desaguar num ponto comum que promova, sustentavelmente, não só o desporto, mas, através do exemplo, a realidade democrática cada vez mais esmagada pelo sucesso económico desmedido, individualismo e falta, gigante, de consideração pelo outro. Viva ao futebol, mas viva ainda mais àquilo que a vida pode ser! Viva! Viva você, que gosta de futebol mas deve gostar ainda mais disto: viver! Viva!

Gonçalo Soares de Jesus, 29 anos, advogado

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