Jogar com o coração

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Eu e o meu filho António Maria, de 10 anos, fizemos algumas arrumações no quarto dele e fomos surpreendidos ao acharmos alguns pequenos tesouros, engavetados e esquecidos. O maior de todos, uma foto do ‘nosso’ Eusébio no Mundial de 1966, autografada e com dedicatória especial entregue em mão pelo King ao meu ‘puto’, no hotel do Benfica em Maio de 2013, na final da Liga Europa com o Chelsea, em Amesterdão. Lembro, como se fosse hoje, o diálogo carinhoso que trocaram. Sobre o Benfica, a escola, o jogo que iria acontecer daí a quatro ou cinco horas. E sobre o Óscar Cardozo, o jogador preferido do António Maria.

Ao encontrar o postal e lendo alto a dedicatória, perguntou-me:

– Ó pai, achas que o Eusébio estará no céu? Achas que estará com os meus avôs a trocar uns passes?

Respondi, sorrindo:

– Penso que sim filho. Eles, o Cruyff, o Di Stéfano, o Best, o Coluna e uma mão cheia de outras estrelas da bola. E depois, sentam-se numa esplanada lá no céu, com vista privilegiada cá para baixo, a beberem umas imperiais e a comerem tremoços e caracóis.

– Achas mesmo pai? Questionou-me de com um olhar arregalado e suspenso com o que iria responder a seguir.

– De certeza absoluta filho. O vício da bola até no céu ataca. Tu nos intervalos das aulas o que fazes?

– Jogo à bola…

– Estás a ver? Até eu jogava, se ainda pudesse, a toda a hora e em qualquer lugar!

– Ó pai, o Eusébio era boa pessoa não era?

Durante 15 minutos contei-lhe algumas das muitas peripécias que vivi com o Pantera Negra. Em viagens ao estrangeiro pela Selecção Nacional de veteranos. Em almoços e jantares de trabalho e de amigos, em cerimónias várias. E principalmente, o que vivemos entre 28 de Fevereiro e 7 de Março de 2003, numa viagem a Timor.

Os receios que tinha por andar de avião. As sete operações aos joelhos que o limitavam a pegar em pesos e a deslocar-se. A total disponibilidade para fotos, autógrafos e uns dedos de conversa com todos aqueles que o abordavam. E eram muitos! As lágrimas que escondeu, quando lhe apareceu pela frente, aquele timorense de nome Eusébio, porque para o seu pai, o ‘nosso King’ era para ele um Deus… A história da não ida para o Inter de Milão, ganhar num mês o que ganhava no Benfica em três anos, porque Salazar o colocou no serviço militar.

Os rituais com a alimentação e especialmente a paixão gastronómica pelo piri piri. As fantásticas e mágicas histórias de vida. A sua humildade e espírito de solidariedade.

E a relação de fraterna e verdadeira amizade com o ‘lendário’ Xanana Gusmão que um dia disse: "Eusébio deu mais uma lição de grandeza. Mostrou que todos aqueles que tiveram o prazer de desenvolver esta fabulosa atividade do sentimento que se joga com uma bola dentro das quatro linhas – não devem, depois de pendurar as chuteiras, pendurar o coração. Devem jogar com ele todos os instantes do resto das suas vidas! É o que Eusébio fez e continuará a fazer."

Quem nesta nova geração lhe seguirá o exemplo?

Por António Carraça
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