A emoção de Fernando Martins na última entrevista a Record

A emoção de Fernando Martins na última entrevista a Record
• Foto: MARTA VITORINO

Presidente marcante do clube da Luz, responsável pela vinda de Eriksson e pelo fecho do 3.º anel, Fernando Martins faleceu este domingo aos 96 anos. Deixamos aqui um retrato feito na primeira pessoa - entrevista a Record publicada a 25 de janeiro de 2012 -  de quem foi “lebre” de Nicolau e Trindade.

RECORD – Ao completar 95 anos, considera que conseguiu cumprir os seus sonhos?

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FERNANDO MARTINS – Os sonhos nunca são satisfeitos. No Benfica podia ter feitomais do que fiz, nos seis anos da minha presidência. Encontrei o clube com muitas dívidas e muitos maus resultados, algo que se mudou. Quando cheguei, o clube não tinha crédito, nemsequer para a equipa dormir antes dos jogos! Tinha de pagar o hotel antes de entrar. Era uma situação muito difícil do Benfica e resolvemo-la logo, de imediato. Falei com os credores e ficámos com o crédito aberto, sempre que precisávamos de dinheiro.

R – Era um período em que os dirigentes “pagavam” para exercer esses cargos, não havia profissionalização ao nível diretivo...

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FM – Eraumperíodo muito difícil. O clube devia dinheiro aos bancos e não tinha crédito. A primeira coisa que tive de fazer foi pedir quemerecebessem para expor a situação. A partir daí, o clube ficou como crédito aberto. Foi muito bom.

R – Teve de adiantar dinheiro seu, para solucionar os problemas?

FM – Quando era preciso, tinha de “entrar”. Mas só quando era necessário. E “entrei” muita vez.Tínhamos de saber equilibrar as contas. Nunca paguei para ser dirigente, mas quando o clube precisava, disponibilizava dinheiro. Só para lembrar: estive na presidência seis anos e os jogadores hospedavam-se sempre aqui, no meu hotel, quando defrontavam qualquer equipa. Tiveram sempre o hotel de graça! Durante seis anos... é algum dinheiro. Por aqui se pode ver o que dei – e dei muito ao Benfica –, sem ser necessário colocar dinheiro na mão.

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R– Para manter uma equipa competitiva, fazer obras no estádio, precisava de muito dinheiro...

FM–As equipas também eram construídas com cabeça. Quando lá chegámos, o Benfica já tinha bons jogadores. Depois, apenas adquirimos os que necessitávamos.

R– Disse que deu muito ao Benfica. E o Benfica, o que lhe deu?

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FM – O Benfica deu-me muitas alegrias. Fui sempre do Benfica, mesmo quando não tinha dinheiro para vê-lo jogar.Quando pude finalmente assistir aos jogos, foi sempre a pagar.

R – Quem é que ganhou mais: o Benfica consigo ou Fernando Martins com o clube?

FM – Não sei... Talvez tenha ganho mais eu com o Benfica. Sentia-me tão feliz com as vitórias do clube, que não havia nada que pagasse isso. Ficou pago com aquilo que me deu.

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R – Nasceu em Alenquer...

FM–Nasci no concelho de Alenquer, numa aldeia que se chama Paúla, situada junto da serra de Montejunto. Tenho ali casa, como todos os que podem ter uma casinha fora daqui [Lisboa]. Por falarmos nisso, tem graça: há 15 dias estive lá e, como habitualmente, fui a uma tasquinha que costumo visitar. Em conversa, chamaram- me a atenção para um dado curioso: “Estivemos a fazer contas e só temos aqui uma pessoa mais velha do que o senhor. Todos os outros são mais novos.”

R– Na altura, demorava uma eternidade para chegar a Lisboa...

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FM – Nesse tempo, não havia automóveis. Eram os carros puxados por cavalos, machos... Os automóveis vierammuitomais tarde.

R– Era filho único?

FM – Não, tinha uma irmã e um irmão mais velhos, mas já falecidos.

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R–Sem as ligações que havia à capital, sem os meios de comunicação que hoje existem, como nasceu a paixão pelo Benfica?

FM–Na escola. Já havia a paixão pelos clubes e a mim calhou-me o Benfica. Estudei até à 4.ª classe. O meu pai era lavrador e político local – eu é que nunca quis ser político, detestava isso. As coisas correram-lhe mal, ficou sem nada, e acabei por deixar de estudar.

R– Era jovem?

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FM –Muito jovem. Tinha 14 anos e comecei a trabalhar.Não tive infância fácil, mas sempre gostei de trabalhar.

R – Lembra-se do seu primeiro emprego?

FM– Comecei a trabalhar... Na serra de Montejunto haviamuito arvoredo. O homem que mandava naquilo era meu primo e eu tinha de dar água aos trabalhadores. O meu primo nunca me passou uma enxada para a mão. Depois deixei isso.Em Vila Franca de Xira havia um homem que tinha uma tasca, onde vendia petiscos, aguardente e café às pessoas que atravessavam o Tejo, para Benavente. Eu ia para lá vender. Levantava-memais cedo e fazia café para eles.

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R – Com ordenado, pôde enfim tornar-se sócio do Benfica?

FM– Passei a ter dinheiro e a ser sócio do Benfica.Mas já ia lá de vez em quando. Eram 50 quilómetros até Lisboa, só que a estrada era muito estreitinha. Demorava uma hora e tal a chegar a Lisboa.

R–Tornou-se benfiquista por influência do seu pai, de algum familiar?

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FM – Tornei-me benfiquista por mim. O meu pai era um homem de idade e tive de trabalhar. Trabalhei muito! Tive vários negócios, até que cheguei a este [hotelaria]. Mas gostei. Nesse estabelecimento em Vila Franca fui bem tratado. No entanto, mais tarde, houve um período que faltou pão. Então, desafiaram-me a aprender a fazer pão. Estive em Valada do Ribatejo algum tempo a ajudar e foi aí que conheci o [José Maria] Nicolau.

R – Disse numa entrevista a Record, em 2004, que se tornou benfiquista graças a esse ciclista...

FM – Ele já era do Benfica quando o conheci. Mais tarde conheceria o Trindade [do Sporting]. Era amigo de ambos. Corria com os dois: era “lebre” do Nicolau e também do Trindade. Aliás, treinava-me mais com este.

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R– E tinha pedalada para eles?

FM – Era giro. Havia alturas em que lhes apertava os calos. Eles corriam muito, mas eu também... O problema é que eu não aguentava. A primeira coisa que tive foi uma bicicleta, sem mudanças. Eles tinham bicicletas parecidas. Nos treinos, íamos de Valada a Lisboa, passando por Loures, e voltávamos.

R– Todos os dias?

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FM– Não, isso é que era bom! O trabalho não permitia. Ainda em Valada, o meu patrão quis fazer uma sociedade comigo e aceitei. Fizemos umas padarias para servir aquela gente. Quando a sociedade estabilizou, propôs-me ficar com as padarias. Aceitei e dei-lhe o dinheiro que investira. Fiquei com o negócio. Depois tive armazéns de vinho, de madeira – quando houve um grande ciclone... Só mais tarde vim para Lisboa. Tinha 29 anos.

R – Em Lisboa, pôde aproximar-se do Benfica. E ainda antes de ser presidente, esteve no Conselho Fiscal e na comissão de obras...

FM – Eles gostavam de mim! Trabalhava muito para o Benfica. Fiz as obras necessárias. Quando liderei a comissão de obras, havia muita coisa para construir. Construiu-se a piscina, o pavilhão também começou a ganhar forma... Estava tudo idealizado, mas tive de acabar essas infraestruturas. Ainda fiz os cortes de ténis, o campo de treinos, fechei o terceiro anel... Tudo isso eu acabei. E limpei as dívidas!

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R – Antes de ser eleito, concorreu duas vezes contra Borges Coutinho e Ferreira Queimado, duas figuras emblemáticas do clube...

FM – Apesar de ter perdido, ficámos amigos. Trabalhei com eles, ajudei-os.

R–Em 1981 chega finalmente à presidência do Benfica, concretizando o seu desejo...

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FM – Era um sonho e tinha a convicção de que podia fazer alguma coisa pelo clube. O Benfica precisava de tudo aquilo que lhe dei e, também, de títulos. Venci três campeonatos e o quarto já estava praticamente ganho, antes das eleições que conduziram à minha saída. Faltavam dois jogos.

R – Quando foi eleito, o treinador era Lajos Baroti. É verdade que quis contratar Pedroto?

FM–Tinha-o contratado! O que aconteceu é que Pinto da Costa estava a candidatar-se no FC Porto, porque o clube dele também não estava muito bem [foi eleito em 1982]. O Pedroto já estava comprometido com Pinto da Costa. Aliás, gostei muito da atitude dele. Disse-me que tinha o sonho de ser treinador do Benfica, mas esclareceu que estava comprometido. E como Pinto da Costa acabou por vencer, Pedroto não pôde voltar com a palavra atrás. Fiquei sem o Pedroto! Naquela altura era omeu preferido. Estava tudo assente. Se não tem sido isso, ele teria sido treinador do Benfica. Isto apesar de ter sido muito criticado por ter o Pedroto.

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R – Não veio Pedroto, mas chegou Eriksson...

FM–Quando cheguei ao Benfica, era um velhote [Baroti] que estava lá. Tinha assinado com a anterior direção. Não o queria, mas tive de o manter. Foi até ao fim do contrato, contra aminha vontade, e perdemos o campeonato. Falei com Eriksson e gostava da maneira de tratar dele, era um tipo porreiro.

R– Conheceu o treinador sueco através de Borje Lanz, que era amigo comum. Certo?

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FM – Sim, foi ele quem me apresentou Eriksson. Diziam que era uma aposta de risco, mas tinha fé nele, havia conquistado a Taça UEFA. Prometeu-me que ia fazer tudo para ganhar, porque gostava muito do Benfica. Era um homem muito sério.

R – Por causa do bom trabalho que realizou, não conseguiu manter Eriksson muito tempo no Benfica...

FM– Pois não. A Roma veio buscá-lo. Nessa altura ele já tinha 5.000 contos [25 mil euros]meus para renovar contrato. Havia já um recibo assinado por ele. Mas os italianos deram-lhe tanto dinheiro, que ele veio ter comigo e disse: “Ó senhor Martins, gosto muito do Benfica e de si, mas a Roma dá-me muito dinheiro”. Podia segurá-lo, mas iria arranjar problemas com ele. Disse-lhe: “Havemos de continuar a viver”. Os sócios criticaram-me, mas não sabiam o que se passava.

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R – A sua gestão ficou ainda marcada pela transferência de Chalana para o Bordéus. Também lhe custou abrir mão dessa joia da coroa?

FM – Tinha de deixar sair! Ele queria ir. Recebemos umas massas boas, graças ao Chalana. Foi quando se começou a receber muito dinheiro pelos jogadores. Era impossível segurá-lo.

R– Esse dinheiro ajudou a pagar o fecho do 3.º anel?

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FM–Então não ajudou?! Todo o dinheiro ajudava. Fiz essa obra e tivemos bons resultados. Fechámos o 3.º anel sem dever nada a ninguém! Foi pena terem deitado o estádio abaixo. Enquanto lá estive, estava sempre cheio. Mas depois não tivemos equipa para o estádio. Nunca mais ganhámos nada! Gosto do estádio atual, mas ainda não vi nenhum jogo que me fizesse esquecer o anterior. Tenho saudades dele.

R – Em 1987 ainda se candidatou ao quarto mandato, perdendo para João Santos...

FM – ... E perdi porque me convenci de que estava ganho. O campeonato estava praticamente conquistado. Nessas eleições vieram autocarros de Braga. Houve uma ameaça de bomba e o presidente da mesa da assembleia geral suspendeu os trabalhos. Nesse intervalo, chegaram os ditos autocarros. As urnas acabaram por fechar à meia noite, mas, à hora que deviam ter encerrado, estava na frente. Constatei isso através dos boletins de voto, cujas cores diferenciava mas listas. No chão havia muitos mais boletins do outro candidato. Nesse momento ainda havia muita gente para votar e concordei em prosseguir os trabalhos.

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R– Houve batota?

FM– Houve batota... dos outros!

R– Saiu desiludido?

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FM–Não. Os sócios quiseram assim.

R - É justo que se lembrem de si como o presidente que fechou o 3.º anel?

FM – Fiz mais do que isso! Fechei o 3.º anel, venci campeonatos, descobri Eriksson...

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R – Sente-se um homem realizado?

FM – Sinto-me. Não tenho inimigos, só amigos.

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