Uma longa viagem da Mafalala ao céu

Uma longa viagem da Mafalala ao céu
• Foto: D.R. RECORD

Eusébio da Silva Ferreira morreu este domingo, aos 71 anos. Recorde a carreira do maior símbolo do desporto português: as histórias, os golos, os títulos. Tudo sobre o "Pantera Negra".

Infância passada com a bola nos pés

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Eusébio da Silva Ferreira nasceu em Lourenço Marques, hoje Maputo, capital de Moçambique, numa segunda-feira, dia 25 de janeiro de 1942. Foi no bairro de Xipamanine, na Mafalala, que o mais extraordinário jogador português de sempre iniciou a longa caminhada que havia de levá-lo ao céu, depois de uma vida em que foi reconhecido nos quatro cantos do planeta como uma das mais amadas, prestigiadas e reconhecidas figuras do desporto de todos os tempos.

Filho de pai branco, Laurindo António da Silva Ferreira, que morreu de tétano aos 35 anos, e de Elisa Anissabene, Eusébio teve uma infância feliz, despreocupada e sem grandes carências, no seio de uma família numerosa e que foi aumentando com o tempo – aos cinco irmãos nascidos do primeiro casamento de D. Elisa, no seio do qual nasceu o Pantera Negra, devemos acrescentar três de uma segunda relação.

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A infância de Eusébio foi passada com uma bola colada aos pés. Era o mais talentosos de todos os meninos que se deliciavam nas peladinhas de final de tarde na Mafalala e não foi de estranhar que os espectadores desses grandes espetáculos o tivessem escolhido como herói, ampliando o deslumbramento um pouco por toda a cidade. O cauteleiro, senhor Chico, não descansou enquanto não o viu a jogar, aos 12 anos, numa equipa popular chamada “Os Brasileiros” Futebol Clube. Até aos 15 anos acumulou argumentos para despertar o interesse dos grandes clubes laurentinos.

Amigo Hilário puxa-o para o Sporting

Com essa idade, Eusébio submeteu-se por duas vezes aos treinos de captação do Desportivo de Lourenço Marques, ao tempo filial do Sport Lisboa e Benfica. Em ambas as ocasiões foi preterido. Revoltado pela recusa do clube do coração, deu ouvidos a Hilário, amigo dos irmãos mais velhos, que lhe fez ver as vantagens de jogar no Sporting local. Aceitou com relutância mas, impulsionado pela revolta, decidiu pôr a nu o erro de avaliação de quem o rejeitou. Durante três anos brilhou com a camisola verde e branca, suscitando o interesse de clubes continentais.

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O Sporting Clube de Portugal chegou primeiro ao diamante que brilhava com a camisola da filial, atraído pelos sucessivos apelos moçambicanos de que estava ali um reforço extraordinário para a equipa principal. Os dirigentes leoninos não deram todo o crédito às opiniões, por mais credíveis que fossem e, dando como adquiridos os direitos desportivos sobre o jogador, decidiram encarar a situação com leveza. Os emissários a Mafalala propuseram ligação à casa mãe condicionada por um período de experiência. D. Elisa não esteve com meias tintas: o filho só sairia de sua casa por bom dinheiro, com contrato assinado e tudo clarificado na chegada a Lisboa.

Águias conquistam quem mandava a sério

Mais incisiva foi a intervenção do Benfica. Os dirigentes encarnados não estiveram com rodeios e foram diretos ao assunto: ofereceram 250 mil escudos (1.250 euros, para a época, eram uma exorbitância) a D. Elisa e deram resposta a todas as preocupações da mãe do futebolista. O acordo estava feito, Eusébio sentia-se jogador do Benfica mas foi com surpresa que recebeu, a 14 de dezembro, um telefonema de Gastão Silva, na altura responsável pelo futebol encarnado, a explicar-lhe que tinha de viajar no dia seguinte para Lisboa. Foi o que sucedeu, apesar de todas as tentativas leoninas para impedir que Eusébio apanhasse o avião.

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Quando aterrou no aeroporto da Portela, em Lisboa, na noite de 15 de dezembro de 1960, Eusébio era um menino assustado. Pelo frio, pela grandeza do que o esperava, pelos inúmeros responsáveis benfiquistas que o esperavam e até por merecer a presença de dois jornalistas interessados em saber o que pensava sobre a nova etapa. Sempre achou que se saiu bem das primeiras exigências mediáticas como jogador do Benfica, certo de que estava a dar início à grande aventura da sua vida: tornar-se um dos melhores futebolistas da história do futebol.

Luta sem tréguas entre rivais eternos

Recebido calorosamente pelos ilustres companheiros benfiquistas, Eusébio viveu o primeiro impacto da nova etapa no Lar do Jogador. No dia seguinte foi para a Covilhã com a equipa. Os encarnados venceram por 3-1 (dois golos de José Águas e um de Santana) e ele não escondeu a preocupação de ver tantos craques juntos. Face a tanto talento, não entendia o motivo pelo qual fora contratado.

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Feliz ficou Bela Guttmann quando viu os primeiros treinos. “É ouro, ouro, ouro”, repetia sucessivamente ao adjunto Fernando Caiado. Pouco depois de ter aterrado na Luz eram os parceiros a olhar entre si tentando adivinhar, sempre com sentido de humor, quem iria sair para ele entrar. O grande Germano Figueiredo sorria, escudado na condição de defesa: “Eu estou safo, nada tenho a ver com isso.”

A par desses primeiros passos felizes na adaptação à nova realidade, a luta entre Benfica e Sporting pelos seus direitos desportivos assumia proporções gigantescas. Os leões não abdicavam dos seus argumentos e, mesmo face à derrota que constituíra o contrato assinado com os rivais, acreditaram ter ainda uma palavra a dizer – e não se cansaram de pressionar D. Elisa, na longínqua Lourenço Marques. Nas primeiras semanas de 1961, a Direção-Geral dos Desportos pronunciou-se favoravelmente aos interesses verdes e brancos; logo a seguir foi a FPF que deu validade aos argumentos encarnados.

Quando ele passou a ser Ruth Malosso

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Paralelamente à indecisão quanto ao futuro, Eusébio mostrava, a cada dia, um talento especial. Sem surpresa, o Benfica declarou estado de alerta máximo para se defender das tentativas adversárias e nomeou o advogado Martins da Cruz para resolver a questão. O primeiro passo foi contactar Campos Figueira, representante do Sporting de Lourenço Marques, para ser estabelecida uma plataforma de entendimento entre as partes. Como o acordo estava iminente, a máquina leonina apertou ainda mais o cerco. Foi então que os benfiquistas decidiram que o melhor era tirar Eusébio do campo de batalha e resguardá-lo em lugar seguro.

A 8 de abril de 1961, o jovem seguiu para Lagos com o dirigente Domingos Claudino. Ambos se instalaram no Hotel da Meia Praia e, o secretismo era tal, que Eusébio foi rebatizado nas conversas, telefónicas e pessoais, entre os altos comandos da águia. Nesses dias de maior tensão, o jovem moçambicano era, para todos os efeitos, uma tal Ruth Malosso, cujo nome, como é evidente, só servia para atrapalhar eventuais interceções. Ao fim de doze dias no Algarve, Eusébio tinha a 4.ª classe tirada e recebido a informação que mais desejava. O dirigente Pinheiro Machado telefonou a dizer que podia regressar a Lisboa. O assunto estava definitivamente resolvido..

Jogador do Benfica por pequena fortuna

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Não era totalmente verdade. Ficara definido, isso sim, que a razão no conflito estava do lado benfiquista mas que, para usufruir dela, teria de pagar uma pequena fortuna ao Sporting de Lourenço Marques – 400 mil escudos, o equivalente a 2.000 euros. Significava que, sem essa verba, o jogador regressaria ao anterior clube, ficando depois livre para negociar com quem quisesse.

Na madrugada de 13 de maio de 1961, os responsáveis encarnados cruzaram-se ocasionalmente com Jaime Catarino Duarte, conhecido benfiquista que, estando a par dos últimos desenvolvimentos, quis saber em que ponto estava o caso. Que estava quase tudo tratado, faltando apenas 400 contos para que Eusébio pudesse vestir, por fim, a camisola encarnada. Catarino Duarte desbloqueou a quantia em causa. Só a partir desse momento o Benfica pôde cantar vitória.

Um ano de estreias e a primeira operação

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Eusébio pôde por fim dar início à lenda que havia de levá-lo ao céu, com passagem pelo reconhecimento planetário de jogador genial, fenómeno eterno e figura mítica. A 23 de maio envergou a camisola encarnada pela primeira vez, num jogo de reservas com o Atlético, no qual marcou 3 golos na vitória por 4-2. A partir dessa data foi acumulando estreias, todas marcadas por episódios curiosos. Depois de ter sido goleado pelo Peñarol, em Montevideu, na 2.ª mão da Taça Intercontinental (0-5), Bela Guttmann ordenou que Eusébio e Simões deviam viajar com urgência de Lisboa para o jogo de desempate. O velho feiticeiro ficou destroçado com a exibição da equipa e aproveitou o desaire para lançar o seu menino de ouro em jogos internacionais de cariz oficial. O Benfica equilibrou as operações, perdeu pela margem mínima (1-2) e Eusébio, cumprindo a regra, fez golo na estreia. Foi quase sempre assim. Em dezembro de 1961 submeteu-se à primeira intervenção cirúrgica ao joelho esquerdo. Jogou nas Antas no dia 3 desse mês e só regressaria à competição a 11 de Fevereiro de 1962, na receção ao Olhanense (4-2).

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