UMA MÃE viu um dia um camião projectar-se em velocidade sobre o filho, cerrou os olhos e levantou o carro com um olhar, salvando a vida da criança. Paulino Pavão não se recorda onde a história aconteceu, mas leu-a num livro e acredita nela. A quatro dias do primeiro jogo do Santa Clara na I Liga, o presidente do clube açoriano, um faquir aposentado há quatro anos, faz um apelo à superação mental de jogadores e treinadores. Porque tudo é possível, mesmo ganhar ao Sporting.
"Não acredito em parapsicólogos, mas sei que querer é poder, que o homem tem dentro de si uma força imensa. Há muitos fenómenos inexplicáveis, sentimentos que não sabemos de onde vêm, coisas que não são palpáveis mas existem... O segredo é saber utilizá-las em proveito próprio", explica.
"Uma equipa como a do Santa Clara pode perfeitamente ganhar ao Sporting. Não é que eu saiba de facto que isso vai acontecer... Não sou um crente, mas acredito na força interior de cada um."
Pavão, um homem de quarenta anos que mantém um brilho fresco no olhar e um sorriso inocente de criança, costuma utilizar técnicas de relaxamento nos momentos de maior "stress", incluindo antes dos jogos do Santa Clara. O faquirismo, praticado durante 20 anos, já passou. Acabaram as perfurações, acabou o sangue que ocasionalmente escorria da pele ferida, acabaram as horas de jejum para engolir vidros (ver peça abaixo). Hoje, Paulino isola-se um pouco antes de dormir, fecha os olhos e visualiza mentalmente um veludo preto e vazio, controlando através da ioga as forças Yang e Yin, positivas e negativas. Sexta-feira à noite, diz, repetirá o ritual e fará emergir do pano uma situação objectiva de jogo e um golo fortuito do Santa Clara a Peter Schmeichel.
"O exercício mental e espiritual prepara-nos física e psicologicamente para as dificuldades. A ideia é esvaziar por completo a mente, livrá-la das preocupações do dia a dia e sugestioná-la com pensamentos positivos. É por isso que se diz que, se Maomé não sobe à montanha, desce a montanha a Maomé", sublinha. "É claro que não espero que os jogadores se ponham no balneário a utilizar estas técnicas, nem sequer alguma vez tive a tentação de promover isso. O oculto não é uma aprendizagem que se imponha a quem quer que seja, é um desejo de conhecimento com que se nasce."
O presidente do Santa Clara recorda que se concentrou especialmente para o encontro com o Desportivo das Aves, num domingo de Maio, que valeu a primeira subida de uma equipa açoriana à I Divisão nacional. Fez-lhe bem, recorda. Agora, enquanto ensaia uns truques de prestidigitação, fazendo aparecer moedas e desaparecer cigarros, no entanto, deixa ao treinador a tarefa de sugestionar os jogadores.
"O Manuel Fernandes sabe muito bem como mentalizar positivamente os jogadores. Já lhe ouvi fases como 'Vocês são tão bons como os melhores'... Os treinadores são autênticos psicólogos. Eu próprio tento, pontualmente, falar com alguns atletas para os libertar das preocupações. E, se eles interiorizarem a mensagem de que ganhar depende apenas deles, vão com certeza superar-se."
PAIXÃO NASCIDA EM ANGOLA E DESENVOLVIDA A PARTIR DAS TÉCNICAS REPRODUZIDAS EM LIVROS
"Faquir", que na sua essência significa "pobre", era o nome dado a alguns indianos da classe dos párias que ao longo dos séculos desenvolveram práticas de sacrifício, para enganar a fome ou simplesmente poupar dinheiro. O objectivo era a superação dos problemas físicos e sociais através da auto-sugestão, mas no Ocidente a técnica viria a ser adaptada sobretudo ao "show business", como um espectáculo de horror para espantar os fantasmas interiores.
Paulino Pavão, de 41 anos, conheceu o faquirismo ainda criança, em Angola, durante demonstrações de magia e ilusionismo onde era levado pelos pais. Mais tarde, tornou-se simplesmente Paulo Pavão, o único faquir português a juntar a engolição de espadas aos números mais banais da arte.
Durante 20 anos, percorreu os palcos da região, do País e das cidades da América do Norte onde se instalavam comunidades de emigrantes açorianos. O faquirismo começou a ser levado a sério por volta dos 15 anos, altura em que Paulino, hoje um optometrista com três lojas em São Miguel, foi contratado para trabalhar numa óptica que estava dependente de uma livraria. Foi ali que tomou contacto com os primeiros livros com teorias sobre o oculto e a forma de potenciá-lo em proveito próprio.
Até aos 36 anos, o faquir dos Açores participou nos mais diversos grupos de animação criados em Ponta Delgada, incluindo o Jopele, uma associação artística constituída com os amigos João Ferreira, o palhaço internacional Pezinho, e Eliseu Silva, o ilusionista D'Ávila. Dos três, apenas Ferreira está ainda no activo.
O momento mais alto da vida de Paulo Pavão aconteceu em 1981, durante uma eliminatória do concurso televisivo Prata da Casa, apresentado por Fialho Gouveia. Frente à equipa de Castelo Branco, Paulino representou o distrito de Ponta Delgada na representação e ganhou, mas a equipa haveria de ser eliminada nas provas de perguntas. Ainda hoje se diz nos Açores que as equipas do arquipélago eram prejudicadas na selecção das questões, visto os custos que envolviam as suas viagens a Lisboa.
Quatro anos passados sobre o abandono do faquirismo, Paulino Pavão continua sem acreditar nas convicções religiosas paralelas à actividade, sintetizadas no hinduísmo. Mas ainda hoje pratica as técnicas de concentração e superação mental.
"Houve espectáculos em que desmaiaram pessoas, horrorizadas com as agulhas espetadas no meu corpo. Era aí que se atingia o máximo enquanto faquir. Não é por acaso que Hitler foi considerado o maior hipnotizador do mundo. Ele movia massas."
JOEL NETO