No mundo do futebol onde os ídolos vendem sonhos e se vendem por milhões, é imprescindível que não percamos de vista o que se passa à volta do relvado. O caso de Jérôme Boateng, antigo campeão do mundo e símbolo do Bayern Munich, não pode ser tratado apenas como um erro pontual. Em 2021 foi considerado culpado por violência doméstica contra a mãe das suas filhas. Mais tarde haveria de ser responsabilizado indiretamente pelo suicidio da sua namorada. Apesar dos processos contra ele terem sofrido várias reviravoltas legais, a mensagem que os adeptos do Bayern quiseram deixar ao expulsarem o seu antigo ídolo, do estágio da equipa, foi clara: mesmo as figuras mais ilustres no desempenho das suas profissões não estão acima da responsabilização pelos actos praticadas na sua esfera particular.
Quando adeptos do Bayern recusam a presença de Boateng num estágio, num gesto de grande simbolismo, não estão apenas a reagir a um individuo, estão a exigir que o clube e a sociedade não abram espaços ao protagonismo de quem cometeu actos de violência contra as mulheres.
Ora, enquanto isto acontece na Alemanha, nós por cá em Portugal vemos a aprovação de uma lei que visa proibir o uso de determinado vestuário em espaços públicos, Numa iniciativa legislativa que se camuflou na defesa dos direitos das mulheres contra uma «ameaça» que por cá praticamente não existe, e que nos mobilizou a todos para debates culturais sobre identidade, ordem pública e símbolos religiosos, passando ao lado do essencial.
A pergunta que se impõe é clara: estamos a legislar com o foco certo? Estão a querer resolver o problema real, a violência doméstica, ou propositadamente a desviarem a nossa atenção para algo verdadeiramente insignificante?
Porque o verdadeiro flagelo — a violência doméstica, e em particular a violência contra mulheres — permanece num nível alarmante e exige outra prioridade. Portugal fez progressos no combate a essa violência, mas há lacunas significativas que continuam a exigir ação urgente.
O futebol como grande desporto popular e de massas, pode ter neste ponto, um importante papel difusor dos valores da não violência, da igualdade e da tolerância
Quando se protege uma figura pública, quando se aceita “um afastamento simbólico” em vez de responsabilização real, corre-se o risco de normalizar a impunidade. Ou não é mesmo isso a que assistimos de cada vez que é apanhado mais um criminoso nas fileiras do partido que apregoa a moral e os bons costumes?
Quando se aprova legislação que tenta regular o que a mulher deve ou não vestir em vez de garantir que nenhuma mulher viva com medo de se vestir como bem entende, estamos a alinhar prioridades de cabeça para baixo.
O futebol como desporto coletivo baseia-se nos valores mais nobres (fair play, respeito, dignidade), mas esses valores têm de ter tradução na vida de todos os dias.
Não basta aplaudir golos, taças ou defesas heróicas se ao mesmo tempo, continuamos a fazer piadas que normalizam a relação entre o sucesso desportivo de determinado clube português e a integridade física das companheiras dos seus sócios!
As leis existem no caso português, em que a violência doméstica está criminalizada. Mas precisamos de mais: precisamos ser todos mais exigentes, sensíveis e, limite, intransigentes para com a violência.
Este é o alerta. Que os aplausos aos jogadores não abafem o grito das vítimas. Que a atenção mediática dada à burka não ultrapasse a urgência de garantir que nenhuma mulher seja silenciada sob qualquer forma de intimidação ou agressão. E que, num país como o nosso, ninguém — mesmo que de renome — receba um convite para pisar um palco, quando a sua vida não reflete os valores que diz querer promover.
Se os adeptos do Bayern não toleram que um ídolo seja um agressor, o clube teve de entender porquê, e a sociedade alemã foi obrigada a refletir sobre o que significou essa tomada de posição colectiva.
Porque na tematica da violência contra as mulheres, "Não", tem de ser mesmo Não!