Numa era na qual o nível no atletismo está cada vez mais elevado, especialmente em provas como os 800 e os 1.500 metros, há mudanças que podem fazer a diferença entre um patamar 'normal' e o da excelência. Um grande exemplo disso é o português José Carlos Pinto, atleta de 28 anos que, de certa forma, parecia ter estagnado no tempo nas últimas temporadas - em 2023 e 2024 o seu registo nos 1.500m praticamente não mexeu (3:37.98 para 3:37.73). Até que tudo mudou este ano.
Dos 'incógnitos' 3:37.73 minutos que tinha na entrada da temporada, saltou para os recentes 3:31.94 que fez na Bélgica e que o colocam já no Mundial de Tóquio - e no 3.º lugar na lista dos melhores portugueses de sempre. Uma melhoria de quase 6 segundos que se deve não só à sua capacidade, mas também - e se calhar mais importante de tudo - da mudança que fez na sua carreira. Aos 28 anos, sem nada a perder, aceitou o desafio de mudar a sua vida e trabalhar com Gjert Ingebrigtsen. Sim, esse mesmo. O homem que 'produziu' o trio de irmãos mais talentoso que a Europa já viu e que, numa etapa final, foi também o responsável pelo desenvolvimento do monstro na pista que é Jakob Ingebrigtsen. A família zangou-se, Gjert já não fala com os filhos, mas a capacidade de orientar talentos continua a estar lá. E José Carlos Pinto é um grande exemplo disso mesmo. Como também são todos os que fazem parte do grupo de treino, agora apelidado de Vikings Athletics.
Um mero acaso
A oportunidade de treinar com o norueguês, que em 2018 foi eleito como o treinador do ano no seu país, surgiu por acaso, após ter ido a Madrid servir de lebre num evento do World Athletics Indoor Tour. Nessa prova, os 3.000 metros, serviu de 'pacer' para Narve Gilje Nordas - treinado por Gjert -, ajudando-o de forma decisiva a vencer em 7:41.28, uma marca que na altura era o seu recorde pessoal. A boa impressão foi deixada, mas não passou disso... até que este ano tudo aconteceu. A conversa de ocasião "devias vir treinar connosco" passou para algo mais sólido e José Carlos Pinto embarcou então para a aventura.
"Com a minha ida ao Europeu de estrada em Bruxelas acabei por conversar com o Gjert e surgiu o convite de me juntar ao grupo para fazer um estágio em altitude com eles. Oportunidade que acabei por agarrar. Durante o estágio, e nas semanas a seguir, reparei que comecei a melhorar muito a nível de treino e de consistência. E simplesmente acabou por acontecer e acabo por começar a treinar oficialmente com eles", explicou-nos o atleta português.
Depois disso, vieram os resultados, na época alta dos meetings ao ar livre na Europa. Primeiro um pequeno desapontamento a abrir, a 6 de junho em Jessheim. Os 3:38.29 não mexiam no recorde pessoal, mas eram um começo. Seis dias depois, em Oslo, veio o primeiro grande resultado. Dois segundos tirados ao recorde pessoal na prova prévia aos Bislett Stadion. Depois disso, mesmo que o tempo nem sempre acompanhasse a expectativa, foi sempre a ganhar. Cinco provas de seguidas a terminar em primeiro. 3:36.53 na Atleticageneve, na Suíça, em 21 de junho; e 3:34.19 em Ostrava, a 24 (então recorde pessoal). Ambas em junho.
Julho traria, ainda assim, o grande momento. A 15 de julho, em Lucerna, na Suíça, voltou a triunfar, mas ainda longe do objetivo de correr a marca de qualificação para Tóquio (3:33.00). Fez aí 3:34.60. Era um pequeno passo para o que viria quatro dias depois. Na Night of Athletics, em Heusden-Zolder, na Bélgica, a cronómetro finalmente mostrou o desejado, na forma de 3:31.94. Um recorde pessoal de dois segundos. Menos dois segundos na marca e, mais importante de tudo, o carimbo no passaporte para Tóquio.
Foi o resultado de muitos meses de trabalho que já um dos seus (novos) colegas de treino previa. "Para ser muito honesto, todos nós acreditamos que um dia vamos conseguir fazer uma marca de topo mundial e que podemos ir para os grandes palcos. Mas eu quando entrei para o grupo apenas tinha 3:37 aos 1500 metros. Na minha cabeça era uma realidade um pouco inalcançável neste curto espaço de tempo. Lembro-me que na primeira sessão de treino mais 'a sério', o Nordas disse que era muito provável que eu baixasse até aos 3:31 esta época ou quem sabe até um pouco melhor. Claro que fiquei super contente de ver um dos melhores atletas do mundo a depositar esta esperança em mim! Todo este 'setup' acabou por me ir deixando cada vez mais confiante e a acreditar que eu também seria capaz. Mas, claro, que 3:37 para 3:31... ainda agora acho irreal o que conseguimos fazer! Na noite em que faço os mínimos penso que tenha dormido no máximo 2 horas. Não conseguia adormecer por estar tão contente e por ver que as minhas escolhas estavam a dar resultado."
Para trás ficou um período longo de treino com João Abrantes, um técnico que não deixa de enaltecer. "Foram quase três anos em que progredi imenso e tenho muito a agradecer ao professor por me ter colocado num nível que fez o Gjert reparar em mim enquanto atleta. Com o professor bati o recorde dos campeonatos de Portugal de pista coberta, assinei o meu primeiro contrato profissional com uma marca [Hoka], tornei-me o segundo homem mais rápido dos 10 Km de estrada. Fomos a 4 seleções nacionais e tivemos muitas subidas a pódios nacionais", recorda.
Mudanças que fazem toda a diferença
Ao nosso jornal, José Carlos Pinto resume esta sua mudança e evolução de forma muito clara. "O Gjert é um dos melhores treinadores do Mundo, provavelmente é o treinador com mais reconhecimento no meio fundo/fundo dos últimos 10 anos e é fantástico estar a treinar com esta lenda viva. O Gjert é um treinador super preocupado connosco, atencioso, acabo por não ter palavras para descrever. Estive cerca de um mês na casa dele na Noruega e senti-me como se tivesse na casa dos meus pais. A maneira como me receberam de braços abertos foi absolutamente fantástica", destacou.
A sensação de se sentir em casa fê-lo também já tomar uma decisão. "Irei mudar-me para a Noruega por definitivo até me reformar do atletismo. Não faz qualquer sentido estar a treinar à distância e sozinho. Treinar com o grupo é o que nos faz evoluir e progredir neste mundo do atletismo. Acabo por ter todas as condições lá fora que tenho em Portugal, a única coisa que não vou ter na Noruega é o bom tempo de Portugal. E, claro, os meus amigos e família."
Um grupo de treino que, não sendo grande, reúne qualidade de topo. O mais sonante é Narve Gilje Nordås, um norueguês com 3:29.47 nos 1.500 metros e 13:04.85 nos 5.000m. Depois há Per Svela, também ele norueguês, com 7:47.86 aos 3.000m e 13:18.61 aos 5.000m. E, mais recentemente, juntamente com o português, o canadiano Kieran Lumb, recordista nacional do seu país nos 1.500m e milha em pista curta (3:35.80 e 3:52.39, respetivamente). "Somos um grupo pequeno mas com uma dinâmica muito boa. Acaba por ser fácil treinar, temos todos o sentido de humor muito parecido e acabamos por ter muitas coisas em comum. Dou por mim a rir durante toda a corrida, parece que um treino de 10 km passa em 20 minutos com eles."
Presença essencial no Mundial
Conseguido o apuramento para Tóquio, será o concretizar de um sonho, que José Carlos Pinto diz apenas fazer sentido se tiver por perto quem o ajudou a chegar lá. "Vai ser a maior competição da minha carreira desportiva até ao momento. Tenho como objetivo chegar no meu pico de forma, assim como ter capacidade de lutar por uma final. Vou estar num ambiente muito diferente do normal. Tóquio é um dos meus destinos de sonho, mas sei que vou estar preparado e vamos tentar ter um ambiente muito familiar com os meus colegas de treino e com o meu treinador Gjert. É essencial ele estar presente nesta competição", frisou.
Se José Carlos Pinto se mostra entusiasmado e satisfeito por trabalhar com Gjert Ingebrigtsen, também o nórdico deixa elogios ao português, ainda que não citando-o diretamente. "Os atletas que entraram no grupo serão capazes de estar em Jogos Olímpicos e Mundiais, esses são os objetivos. E parece que está a funcionar bem. Três dos quatro devem competir nos Mundiais este ano", disse esta semana, ao 'VG'.
E, para finalizar, o elefante na sala que tem de ser comentado. O caso polémico a envolver Gjert e os seus filhos. "Sinceramente não tenho muito a dizer, o julgamento felizmente já acabou e viu-se que o Gjert não foi considerado culpado e foi ilibado das acusações e isso para mim é suficiente!".
Por Fábio Lima