RECORD DEZ – Onde é que o João Garcia vai buscar motivação para vencer a mais alta solidão?
JOÃO GARCIA – Bom, essa mais alta solidão, por incrível que pareça, não foi vencida no alto do Evereste, mas sim num quarto de hospital. As coisas no Evereste não correram bem, um companheiro morreu, o Pascal – vítima de uma queda, de esgotamento, não sabemos –, e eu fui parar ao hospital, onde senti uma grande solidão, uma grande indecisão: “O que é que eu vou fazer da minha vida?” Na vida, nós temos dois propósitos básicos, o primeiro é reproduzirmo-nos, para assegurar a continuidade da espécie humana, e o outro é tentarmos ser felizes. Eu, na altura, achava que era feliz a escalar montanhas, e a montanha tinha-me feito uma coisa daquelas. Roubara-me o meu melhor amigo e atirara-me para uma cama de hospital. Aí, senti um grande vazio, senti-me na mais alta solidão. Mas depois apercebi-me que nós é que fazemos os erros, que a montanha não me fizera nada de mal. Temos de ser crescidinhos para aprender com os nossos erros, foi essa a melhor maneira que eu encontrei para lidar com as lesões graves permanentes, precisamente a amputação de parte dos dedos. Mas também redescobri que continuava a ter gosto por me desafiar a mim próprio, por me tentar superar, e para isso utilizando a montanha. Até podia ser no atletismo, na vela, numa casca de noz pelos oceanos, mas foi a montanha que eu escolhi. E voltei, refazendo o currículo, para tentar perceber quais eram as minhas reais limitações e vi que elas não eram grandes. As regras continuavam a ser as mesmas, mas as dificuldades é que eram maiores. A minha motivação é o gosto, o ser fiel a princípios de honestidade, como escalar montanhas sem oxigénio. Para mim, escalar com o recurso ao oxigénio é batota, é como o Carlos Lopes correr meia maratona e a seguir fazer a outra meia maratona de lambreta. Se um dia não conseguir escalar uma montanha sem oxigénio, vou desistir, vou começar a descer a montanha da minha vida.
DEZ – Tem noção de que a generalidade das pessoas não compreende essa ambição de ser feliz na solidão da montanha?
JOÃO GARCIA – Este é um desporto difícil de explicar, porque é colectivo e individual, ao mesmo tempo. É colectivo até ao último acampamento, é individual daí até ao cume. Nessa altura, cada um está por si. Trabalhamos mais de 90 por cento do tempo em grupo, no dia do cume somos nós, pé ante pé.
DEZ – O João Garcia fez dos tectos do Mundo o seu habitat preferido. Sente-se um extraterrestre?
JOÃO GARCIA – Um extraterrestre? Não, eu acho que não. Continuo a ser um português, de Lisboa. Sempre vivi aqui e é aqui que continuarei. É aqui e agora que eu tenho condições para continuar a desenvolver um grande projecto. Ter de viver metade do ano dentro de uma tenda, no nylon, acaba por ser a parte negativa. Se tivesse a hipótese de lá meter um aquecedor, se pudesse tornar as coisas menos boas em coisas mais agradáveis… Mas não, não me sinto um extraterrestre.
Erro humano
DEZ – Na última expedição, ao Shisha Pangma, apesar de ter chegado ao cume, não a considerou bem sucedida por causa da morte de Bruno Carvalho. Na altura, justificou o que aconteceu com o azar. Agora, já consegue encontrar outras justificações?
JOÃO GARCIA – Eu acho que se tratou de erro. A maior parte dos acidentes que envolvem homens ficam a dever-se a erros humanos. Raramente o avião avaria ou o pneu do carro rebenta, e muitas vezes o pneu rebenta porque é dos baratos, que não aguenta velocidades acima dos 160 km/h e o motorista quer ir a 200. No caso do acidente do Bruno Carvalho, muito provavelmente, tratou-se de erro humano. Se houvesse indícios de uma avalancha, de queda de pedras, se fosse um troço de corda e lá houvesse uma corda partida, teria sido azar… mas no caso da queda dele houve uma má decisão ou um erro. Infelizmente, é a única conclusão que se pode tirar e que nos entristeceu muito. Para mim, uma expedição bem sucedida é aquela em que damos tudo e regressamos bem, desta vez houve um dos nossos que não voltou e não posso considerar a expedição como bem sucedida. Há 50 anos, havia uma hierarquia bem definida, uma pirâmide que tinha na base 500 pessoas a trabalhar, para que duas fossem ao cume. No nosso caso, éramos seis e os seis queríamos ir lá acima. Houve duas pessoas (Ana Silva e Hélder Santos) que tiveram o bom senso de concluir que não estavam em condições de ir ao cume e, por razões de saúde, nem sequer tentaram a ascensão. Os outros quatro foram ao cume e, na descida, houve um que caiu e morreu. Há 50 anos seria completamente esquecido.
DEZ – Há um momento em que o João, o Rui Rosado e o sherpa Nuro se cruzam com o Bruno – o vosso grupo a descer e ele ainda a subir. Viu-o bem?
JOÃO GARCIA – Vi, ele estava bem. Não me engano, nem me arrependo da sequência de acontecimentos. O Bruno era o único que tinha levado máquina fotográfica analógica, de slides, e quando nós revelámos o último rolo, em Katmandu, estávamos magoados, é óbvio, mas também foi com alegria que verificámos que ele tinha ido ao cume. Ele tirou várias fotos, com os símbolos dos vários patrocinadores, estava com discernimento e, com certeza, muito feliz por ter atingido o cume dos seus sonhos. As grandes dificuldades da descida já tinham sido superadas, ele já estava em linha de vista com o acampamento. Provavelmente – e isto é só uma suposição – ele terá relaxado um pouco na descida.
DEZ – Há uma coisa que faz muita confusão às pessoas: por que é que não iam todos juntos? É capaz de explicar?
JOÃO GARCIA – Quando andamos a 8.000 metros de altitude, as temperaturas são de 30 graus negativos. Tendo em conta que nesse dia o vento era de 10/15 nós, 25 km/h, essa temperatura, na prática, era de 40 graus negativos. Isto é muito frio. Nós estamos protegidos por bons equipamentos térmicos, mas eles só conservam a temperatura produzida pelo organismo, que é a única fonte de calor. O organismo só produz calor se nós produzirmos trabalho. Os organismos não são todos iguais, a produção de calor não é igual. O Bruno não estaria tão bem preparado ou teria uma performance diferente. Nós, para aquecermos, precisaríamos de andar mais depressa, e ele não. Ele podia ter dado meia volta, mas no último dia a grande motivação é ir lá acima. Se andarmos todos ao ritmo do mais lento, os outros serão penalizados com a congelação. Estamos a falar de coisas muito graves. Quem nunca sofreu uma congelação e perdeu uma extremidade do corpo é que fala, mas fala sem saber. O Rui Rosado voltou com um pé bastante afectado. Estas coisas são invisíveis, mas são graves. Ninguém gosta de andar a treinar-se seis meses e depois ser obrigado a dar meia volta.
DEZ – Essa é a decisão mais difícil, a de dar meia volta?
JOÃO GARCIA – É, é muito difícil. No dia do cume, cada um tem de andar ao ritmo que o organismo lhe permite, é preciso gerir os nossos próprios recursos. Se eu for à maratona, não vou correr ao ritmo dos especialistas, porque já sei que não duro mais de 10 minutos, rebento. Foi o que o Bruno terá pensado, “não vou ao ritmo deles porque rebento”. Ali, amigo não empata amigo. Para se ter uma noção, no dia anterior, na chegada aos 7.000 metros, cheguei eu e o Nuro e montámos as tendas, que tínhamos acarretado. Uma hora depois chegou o Bruno, duas horas depois chegou o Hélder e três horas depois chegaram o Rui Rosado e a Ana. Isto é, eles estiveram a gerir energia, porque a seguir há o dia do cume…
DEZ – Que significa fazer mais 1.000 metros a subir…
JOÃO GARCIA – Mais 1.000 metros, já sem mochila, nem tendas, mas é violento. Pergunto-me: será que o Bruno, na véspera, terá puxado demais e queimou energias para o dia do cume? O Bruno era um pouco mais pesado, mas tinha o “endurance” necessário. Não era a primeira vez, nem a segunda que estava no Himalaia. A performance dele era de ir sempre ao cume, tecnicamente sabia o que estava a fazer. Para nós, foi uma grande surpresa, pela negativa, o que aconteceu. A cair, o normal é que tivesse acontecido lá para cima, em pendentes mais perigosas. Agora, também é verdade que quanto mais tempo esteve em esforço, pior. O que aconteceu ao certo não sabemos.
DEZ – O pai do Bruno reagiu e disse estar à sua espera para uma conversa olhos nos olhos. Essa conversa já aconteceu?
JOÃO GARCIA – Não, já me disponibilizei, mas ainda não aconteceu. O sr. Jorge está a ter uma dor de pai, já falei com ele ao telefone, dei-lhe explicações, outros elementos da expedição fizeram o mesmo, mas ainda não houve feedback da parte dele. Ele tem todo o direito de ouvir da minha boca o que aconteceu e acho que essa conversa vai acontecer. Mas ainda não se proporcionou.
DEZ – Em vários órgãos de comunicação social, o pai do Bruno questiona o João Garcia porque a expedição demorou muito a avançar, tendo ficado isolada.
JOÃO GARCIA – As montanhas podem escalar-se durante 360 dias por ano e na cordilheira dos Himalaias existe uma coisa que é a chuva da monção, um fenómeno meteorológico em que há grandes precipitações. Na monção, as montanhas ficam carregadas de neve e as bases tornam-se impraticáveis, cheias de lama. Antes da partida, isto foi tudo explicado. Em 2002, quando fui pela primeira vez ao Shisha Pangma, houve o fenómeno “El Niño”, que atrasou a monção, e foi isso que fez abortar a expedição. Para 2006 estava previsto o “La Niña”, que nos fazia correr o risco de passarmos um mês no campo base, com neve a cair a potes, sem possibilidade de ir ao cume. Eu, ou tive muita sorte ou tive visão para atrasar a expedição um mês. O que é que aconteceu? Em 11 expedições, apenas uma, de japoneses, colocou dois alpinistas no cume, e outra, mista, que levou dois peruanos e um italiano lá acima. Onze expedições levaram cinco pessoas ao cume, a nossa levou quatro. Nós estávamos certos, convictos da nossa estratégia. Eu prefiro apanhar o frio do Inverno do que o excesso de neve da monção, está escrito. Eu não preciso das outras expedições para escalar a montanha, não preciso de ir na molhada. Eu até tenho mais gozo em ir sozinho.
DEZ – O pai do Bruno Carvalho também o recriminou por não ter ficado a comandar a operação de resgate…
JOÃO GARCIA – Não tinha hipótese, do ponto de vista legal e do ponto de vista físico. No meu novo livro, que foi entregue à editora antes de ir para o Shisha Pangma, tenho lá um capítulo sobre um caso que aconteceu no Paquistão, quando fui ao Gasherbrum II, e em que um alpinista belga morreu. Na altura, a família pediu para que resgatássemos o corpo. O helicóptero não ia lá, só ia até uma base militar. Mas a situação era completamente diferente, não tínhamos feito cume, não estávamos desgastados. Conseguimos transportar o corpo até ao campo base, e o que é que aconteceu duas horas depois? Uma avalancha gigantesca varreu o glaciar por onde tínhamos passado e o sopro arrastou as nossas tendas. O que escrevo no livro é que é uma estupidez colocar em risco a vida de pessoas por causa de um corpo. Sei que vou ser criticado, mas não tirarei estes parágrafos do livro. Mantenho a minha convicção: não se arrisca uma vida para trazer um corpo, que era o que estava aqui em causa. Nós podíamos congelar. Íamos ficar mutilados para satisfazer uma família? E não é bem uma família, porque eu falei com a mãe do Bruno e ela disse-me: “João, o Bruno está onde sempre quis estar”. A mulher dele diz o mesmo. O pai, que via o Bruno de ano a ano, é que está a fazer alarido e eu não vou discutir as reais motivações dele. A verdade é que nós não tínhamos capacidade. Estávamos exaustos. Uma coisa garanto: bastava eu não saber onde é que ele estava, que teria voltado a colocar as botas para ir à procura dele. Tinha de arranjar forças. Mas quando se observa que o corpo está para além de qualquer ajuda, não há nada a fazer. A nossa educação diz que o corpo deve ser enterrado e eu enterrei o Bruno. Para além disso, nós tínhamos problemas de logística, a licença que estava a terminar, os alimentos a acabar. Quando o Ministério dos Negócios Estrangeiros contacta a Embaixada, em Pequim, esta solicita ajuda às autoridades locais, que reencaminham o pedido para os alpinistas profissionais chineses. Isto passa a ser um problema oficial, eu deixo de ter competências. O nosso visto era colectivo, não podia mandar os outros e eu ficar para trás. O que nós podíamos fazer foi feito: sinalizar o corpo, fotografá-lo e dar conta desses dados às autoridades.
DEZ – Não se sente culpado?
JOÃO GARCIA – Não, nem eu, nem qualquer outro companheiro. Foi elaborado um plano, feita a logística, foi constituída uma boa equipa, de gente experiente, que se conhecia, mas houve um acidente, uma coisa que não podia controlar. Se eles fossem marionetas, eu andasse ali a controlá-los e tivesse deixado cair um…
DEZ – No Evereste morreu Pascal, agora o Bruno Carvalho. A morte tem andado a rondar. O João Garcia não tem medo?
JOÃO GARCIA – Tenho, obviamente que tenho, e esse medo é muito importante. Eu tenho a noção apurada do que é o risco na alta montanha, muito mais do que o cidadão comum, que diz que eu sou maluco. Mas não sabem porquê, não conhecem os verdadeiros riscos que corro. O medo, a mim, serve-me para calibrar o bom senso, para tomar as boas decisões. Se eu realmente fosse maluco, como as pessoas dizem, estaria morto em três tempos. A grande lição que eu posso tirar destas expedições é um pouco como a do filósofo: “Quanto mais sei, mais tenho a certeza que pouco ou nada sei.” Quanto mais escalo e mais desgraças observo, mais concluo do quanto somos pequeninos nas grandes montanhas. Nós tentamos prever o que vai acontecer, mas não controlamos. Será que eu a 8.000 metros estou a pensar como penso aqui?
DEZ – O projecto dos 14 “oito mil” é para manter até ao fim?
JOÃO GARCIA – É.
DEZ – O patrocinador não abanou?
JOÃO GARCIA – O Millennium bcp recebeu contactos que não consigo qualificar, de pessoas que perguntavam pelo projecto, se não iam abandonar o João Garcia. E a resposta foi de que o projecto é do João Garcia, ele decidirá o que fazer. Lamento a perda de um bom amigo, mas não é a primeira vez que um alpinista morre e o alpinismo continua. O Ayrton Senna morreu na pista e a Fórmula 1 continuou. Houve rectificações, tiraram potência aos carros. Eu próprio faço adaptações e já decidi que não levarei mais portugueses comigo. Já é suficientemente duro perder um amigo e depois ainda ser confrontado com situações desagradáveis.
DEZ – O “dream team”, como já lhe chamou, não avançará?
JOÃO GARCIA – Morreu com o Bruno. Eu teria muita honra em continuar a defender o nome e a capacidade de Portugal, mas as pessoas não compreendem. A partir de agora irei com estrangeiros.
DEZ – Quanto custa preparar uma expedição destas?
JOÃO GARCIA – É coisa para 50 mil euros.
DEZ – É caro ou barato?
JOÃO GARCIA – Pode considerar-se acessível.
DEZ – Sem patrocinador conseguiria suportar o custo?
JOÃO GARCIA – Sim, mas não podia pensar num “dream team” português. Integrar-me-ia numa expedição de estrangeiros e aquilo que recebo de alguns trabalhos nos Alpes e a colaboração da Record DEZ, por exemplo, iria directamente para suportar algumas despesas.
Maior treino são as dificuldades
DEZ – Sei que a base da sua preparação é a prática das modalidades do triatlo – natação, ciclismo e corrida -, mas só faz isso?
JOÃO GARCIA – Isso era antigamente. Agora preparo a montanha na montanha. Neste momento, estou já a planear seis a oito fins-de-semana na montanha.
DEZ – A que altitude?
JOÃO GARCIA – Não muita, passo é lá seis a oito horas por dia.
DEZ – Mas não é na Serra da Estrela?
JOÃO GARCIA – É em Gredos, nos Pirenéus. O objectivo é obrigar o organismo a andar àquele ritmo, a hidratar, sabendo que no dia seguinte há mais. Faço isto de sábado a terça-feira, na quarta, quinta e sexta faço um bocadinho de bicicleta, corro, nado.
DEZ – Também há treino psicológico?
JOÃO GARCIA – Cada vez mais há especialistas a quererem entrevistar-me para saber como é que eu me preparo nessa área, mas eu digo-lhes que não faço nada. Andar na montanha motiva-me. Nunca tive psicólogo. O maior treino são as dificuldades do dia de cume, quando pensamos que podemos ter de fazer meia volta, depois de tantos dias de treino e de tanto dinheiro gasto. Aí temos motivação extra.
DEZ – Não tem “staff”?
JOÃO GARCIA – Não, porque este é um desporto diferente. Basta ver que não temos uma organização federativa. Nos outros desportos, os atletas só têm de preocupar-se com o treino, com a arte deles.
DEZ – Nunca procurou apoios oficiais?
JOÃO GARCIA – Não, neste desporto não temos hipóteses. Em 2003, quando fomos ao Pumori, o professor José Magalhães fez um estudo sobre as mutações dos alpinistas, fez-nos testes antes e depois, para uma pós-graduação que ele estava a fazer e que tinha uma componente de investigação muito forte. Pediu fundos comunitários e foi o próprio IDP (Instituto do Desporto de Portugal) que não deixou o processo avançar, dizendo que o alpinismo não é uma prioridade do desporto para Portugal. Nós somos representados pela Federação de Campismo, que não nos ajuda minimamente. Eu não faço o seguro de montanha cá, faço-o na federação aragonesa, porque não acredito que com 20 euros me dêem as mesmas garantias que recebo quando pago 500, em Espanha.
Antecipar o Annapurna
DEZ –Dos 14 “oito mil” já fez oito, entrou em contagem decrescente, consegue hierarquizá-los por nível de dificuldade?
JOÃO GARCIA – Ainda conheço pouco destas montanhas. Ainda tenho montanhas muito difíceis e perigosas. O K2 tem uma estatística de acidentes mortais assustadora.
DEZ – O K2 é a próxima que irá tentar; o facto de ser extremamente mortífera assusta-o?
JOÃO GARCIA – Sim, obviamente que me assusta, mas a montanha está lá e nós temos vontade de ir lá acima. Mas também sei que a pequenina, a Annapurna, é terrível. Aliás, na próxima Primavera, se souber que o Ivan Vallejo e o australiano, o Andrew Lock, lá vão, eu também tentarei.
DEZ – Antecipa uma etapa?
JOÃO GARCIA – Sim. Cada um deles já escalou 12, faltam-lhes duas. Ao Ivan falta-lhe o Annapurna e o Dalaghiri, tentou o Dalaghiri este Outono e não conseguiu. Se eu conseguir apanhar estes dois numa expedição vou com eles, mesmo desobedecendo ao programa Millennium, que é flexível. Ir com duas pessoas fortes dá-me mais chances de sucesso, do que ir cegamente. Eu deixei o Annapurna para o fim, de propósito, mas se tiver oportunidade de ir mais cedo…
DEZ – Atingir um cume significa ter limitação de tempo para lá permanecer, devido à falta de oxigénio. Quinze minutos lá em cima não são uma glória demasiado efémera?
JOÃO GARCIA – Quinze minutos, meia hora. Irmos lá acima é bom, mas importante é descer bem. O gozo é cá em baixo, no regresso a casa, com o ego bem elevado.
«Portugueses têm orgulho em mim»
DEZ – O Record está a eleger o maior desportista português de sempre. Colocou uma listagem de nomes no “site” e pediu aos leitores para elegerem um núcleo restrito de 30. O João Garcia inclui esse lote, ao lado do Eusébio, do Carlos Lopes…
JOÃO GARCIA – A sério?... A sério?...
DEZ – Como é que convive com isso?
JOÃO GARCIA – Olhe, com surpresa. É um orgulho. Os portugueses têm orgulho em mim e eu tenho orgulho em ser português.
«Acompanho a carreira da magnífica Vanessa»
DEZ – Como é o João Garcia fora da montanha?
JOÃO GARCIA –Agora, não faço nada, estou na ronha.
DEZ – Mas há um alpinista à civil…
JOÃO GARCIA – Sim, é alguém que veste normalmente, que faz a sua vida. Tenho “n” solicitações para ir a escolas e agora sou embaixador da luta contra a sida. Procuro responder sempre a toda a gente.
DEZ – Quais são os seus interesses?
JOÃO GARCIA – Cada vez mais a escrita. Aproveito os meus diários e tento transformá-los em obras literárias. Gosto muito de fotografia, de filme. Não tenho capacidade para montar os meus filmes a nível profissional, mas vou fazendo algumas coisas no computador. Tento aperceber-me das necessidades dos realizadores, para melhorar futuros trabalhos. Gosto de ir ao cinema, gosto de ver desporto. Gosto muito de ver râguebi. Aos domingos de manhã, se vou correr ao Estádio Universitário, acabo por lá ficar a ver os jogos dos putos. Também gosto de ver um Nova Zelândia-País de Gales, na televisão. Até faz faísca. Também gosto de acompanhar a magnífica carreira da Vanessa Fernandes. E fico muitas vezes a ver uma boa maratona na televisão. O pessoal diz que é uma “treta”, mas eu gosto. Às vezes, até fecho os olhos e começo a sonhar: “Com as capacidades que tenho, se tivesse ido para o atletismo, como é que seria?”
DEZ – Como é que a sua família convive com a actividade que escolheu? Sei que tem uma filha…
JOÃO GARCIA – Ela, com 4 anos, não tem noção do risco, mas fala do papá, da montanha. Todos os colegas e professores sabem que o pai anda nas maiores montanhas do Mundo. Os meus pais foram-se habituando. Nunca me encorajaram, nem desencorajaram. Foi como com a mota. Queres mota, vai trabalhar. Nunca me incitaram, nem me travaram. Apesar do Evereste, perceberam que é isto que eu gosto fazer. E eu não quero engrossar as estatísticas das pessoas que fazem aquilo de que não gostam.