Treinava sempre a 20km/h por não ter paciência para andar devagar e o massagista de McEnroe deu uma ajuda
RECORD – Foi medalha de prata nos 10.000 metros em Montreal, em 1976, ficando só atrás do finlandês Lasse Viren. Que recordações guarda daqueles últimos metros em que foi ultrapassado?
CARLOS LOPES – Lembro-me de tudo desde o início da prova. Era atrevido, mas comedido. Não era acanhado, isso não fazia parte do meu ADN, mas tinha acima de tudo consciência do meu valor e dos meus adversários, bem como da minha responsabilidade. Fazia disso o meu trunfo. Nos primeiros 3.000 metros ainda tive a esperança que alguém fosse para a frente imprimir um ritmo mais ou menos à minha medida, só que isso nunca aconteceu. Tive que ser eu a ir para a frente e gerir a prova à minha conveniência. Todos sabíamos que o Lasse Viren era misterioso, aparecia naquele momento e toda a gente tinha medo de dizer algumas verdades. Todos nós sabíamos muito bem quem era o Lasse Viren, um grande talento que era praticamente imbatível. Mas isso não impedia que a gente o tentasse destronar, aplicando as nossas capacidades. Pela primeira vez perdi com um polícia, tive um azar tremendo (risos).
R – Esse momento em que viu fugir o ouro por apenas alguns metros acabou por ser determinante para o que viria a ganhar?
CL – Quando acabou a prova virei-me para ele e disse-lhe 'venceste, mas não convenceste'. Digo-lhe mais, os meus primeiros Jogos Olímpicos, em 1972 [em Munique], foram aqueles que me deram uma experiência e uma visão do que viria a acontecer. Competi nos 5.000 e nos 10.000 numa altura em que o desporto português era zero. Não tínhamos condições e havia uma deficiência ao nível da ambição de vencer. Naquela altura dizia-se que o importante era participar, o que era uma dor tremenda para nós. Eu nunca aceitei isso! Em 1972 passei mais tempo no estádio a ver, a gerir mentalmente e a aprender com um atleta que admirava imenso, o belga Emiel Puttemans. Ele corria lindamente, passava muito tempo a olhar para a sua técnica e a verdade é que mais tarde vim a correr como ele.
R – Sente que foi determinante para modificar essa mentalidade redutora do 'importante é participar', mostrando que os portugueses podem ser tão bons ou até melhores do que os outros?
CL – Apareci na altura em que começaram a dar algumas condições ao desporto em Portugal, sendo depois os resultados visíveis. Isso só foi possível porque também acreditaram nas nossas capacidades e só tínhamos de fazer crer que realmente podiam apostar em nós. Felizmente, fui campeão do mundo de corta-mato e depois começaram a acreditar, até eu, que tinha essa capacidade.
R – Foi 3 vezes campeão do mundo de corta-mato, brilhou também nos 10.000 em pista e mais tarde na maratona, em estrada. É capaz de apontar alguma preferência ou para isso era igual?
CL – Sempre fui uma pessoa da natureza, portanto o cross para mim era um divertimento. Então quando estava aquela chuva miudinha dava-me um gozo tão grande... era imparável! Na pista também me sentia muito bem, com liberdade de movimentos que fazia com que as coisas surgissem naturalmente, mas trabalhei bastante para obter os resultados que consegui alcançar. Tenho que agradecer pela minha vinda para o Sporting, clube que tinha todas as condições, com um bom treinador, bons atletas e onde aprendi muito. Deu-me a capacidade de aumentar a nossa capacidade.
R - Sente que fez parte de uma geração de ouro do atletismo português?
CL – Sim, ao ponto de ter sido campeão olímpico na maratona. Acho que demonstrei ao Mundo a massa de que são feitos os portugueses, que têm a mesma qualidade e um temperamento de irmos à luta convictos daquilo que fazemos.
R – O que lhe passou pela cabeça nos últimos quilómetros em Los Angeles quando percebeu que o ouro já não fugia?
CL – Eu trabalhei consciente daquilo que era capaz de fazer. Ao fim de 20 anos a correr sabemos tudo acerca do mundo do atletismo, senão não andamos lá a fazer coisa nenhuma. Tinha a coragem e era determinado, sabia bem a minha capacidade. Trabalhando as coisas por fases, eu estive dois anos e meio a preparar a maratona olímpica. Só fui a Los Angeles para ser campeão olímpico! A minha consciência e o meu estatuto de atleta de alto rendimento levaram-me a dizer isso, nunca menti a ninguém. E sempre disse que se 'não ganhar, a mim me devo'. Era responsável por tudo aquilo que viesse a acontecer. Eu treinei para fazer 14m30s mais 14m30s nos últimos 10km, portanto a partir do momento em que controlamos a competição, o resto depois é fácil.
R - No ano seguinte voltou a Roterdão e bateu o recorde do mundo...
CL – Senti-me na obrigação de fazer a maratona de Roterdão. No ano dos Jogos Olímpicos fui lá e desisti, não por falta de pernas ou por ter alguma dificuldade. Agora, quem quer ser campeão olímpico tem de ser muito inteligente. E como eu era inteligente, desisti mas com o compromisso de lá voltar no ano seguinte para cumprir a minha obrigação e bater o recorde do Mundo [acabou com 2h07m12s].
R – Os ténis que usou em Los Angeles foram feitos à medida para si mesmo em cima da competição. Não teve receio de correr com calçado que não conhecia?
CL – Nunca tive dificuldade com o material que calçava pois tenho uns pés saudáveis. Usava o melhor que havia naquela altura e os ténis com que corri foram feitos para ser campeão olímpico. Foram feitos de propósito para mim e entregues na véspera da competição. Calcei-os durante uma meia horinha, fui fazer um treininho curto. Tinha uns pezinhos de ouro (risos), sabia bem como pisar. Estreava quase sempre ténis nas grandes competições, eram tão perfeitos que não valia a pena estar com essa preocupação. Até dizia ao meu filho para escolher os ténis para eu levar.
R - Hoje em dia qualquer atleta mesmo amador faz massagens com regularidade. Como era no seu tempo?
CL – A primeira massagem a sério que levei foi apenas na véspera da maratona, dada pelo massagista do John McEnroe. A minha vida é uma história (risos). Na véspera tinha um dedo a criar uma bolha já grande e cheguei a pensar ‘amanhã não sei como isto vai ser, mas olha, há-se ser o que Deus quiser’. Depois da massagem ele aplicou uma pomada, meteu uma fita e disse para só a retirar no dia da prova. A verdade é que ao tirar estava tudo fresquinho e nada de bolha. Curiosamente, os piores momentos na maratona foram os primeiros 5km. Sentia-me mesmo muito preso, mas depois aquilo libertou e era tudo meu. Fiz 32km sempre suave, perfeito, a analisar os adversários. A partir dos 28km comecei a perceber quem ia para ganhar, quem ia mais fresquinho. E depois nos últimos 10km era eu a decidir e penso que o fiz bem.
R – Acabou fresco e por si ainda dava mais umas voltas ao estádio...
CL – Sim, acabei mesmo muito fresco. Ainda tinha espaço para fazer mais 4 ou 5km à vontadinha (risos). Acho que foi uma preparação perfeita, tão perfeita que sabia o que ia acontecer.
R - Só para as pessoas terem uma ideia do trabalho que fez, qual era a sua carga semanal de treinos?
CL – Fazia uma média de 36km por dia, é fazer as contas (risos). Só parava quando estava cansado. De vez em quando descansava um dia e voltava no dia seguinte. Tinha uma dinâmica de corrida e treinava sempre a 20 km/h, em qualquer treino. Fosse a subir, a descer ou plano, o ritmo era sempre o mesmo. Era quase piloto automático. Como é possível correr a um ritmo elevado em prova se o ritmo não estiver nas pernas? Se andar a treinar a 10km/h não pode depois começar a correr a 20km/h. Só faz meia dúzia de kms e pára logo. As coisas são como são e desde muito novo que aprendi a correr rápido, quando mais depressa acabasse o treino mais tempo tinha para mim. Não tinha mesmo paciência para andar devagar...
R – Alguma vez pensou no tempo que conseguiria fazer com a tecnologia atual dos ténis de corrida, nomeadamente as placas de carbono que têm ajudado à aproximação à barreira das 2 horas na maratona?
CL – Naquela altura corria com o melhor que havia. Os ténis que mais adorei foram os Nike Terra TC, que eram muito maleáveis. Como eu tinha uma corrida muito levezinha adaptei-me lindamente e foi aí que comecei a fazer bons resultados. Com os atuais, se calhar, teria de adaptar a minha corrida de outra forma... tendo a passada adequada talvez fizesse outros resultados. Se naquela altura fiz 2h07m é bem provável que tivesse a capacidade para fazer um resultado muito melhor. Aliás, quando fiz essa marca senti que podia ter feito menos. Naquele dia, em Roterdão, não quis fazer melhor, já era recorde mundial. Eu ia a correr e a pensar ‘não adianta andar muito’.
R – Sente que se tivesse competido nos JO de Moscovo, em 1980, poderia ser o único atleta português medalhado em 3 edições dos Jogos?
CL - Não tenho dúvidas nenhumas. Quem ganhou lá nos 10.000 foi o Miruts Yifter, que era o único que podia ter ganho. Na pior das hipóteses era segundo novamente. Na altura não fui porque estava lesionado no tendão de Aquiles. Estive quase 2 anos parado, mesmo que tivesse treinado bem não teria capacidade para ganhar. Os Jogos Olímpicos são uma competição muito específica, a gente tem de trabalhar e ir lá mesmo para ganhar.
R – A garra que sempre demonstrou a correr ficou bem patente quando a cerca de duas semanas da maratona em Los Angeles teve um incidente na 2ª Circular. Chegou a duvidar sobre o seu estado físico?
CL – Fui atropelado. Quando me levantei, comecei a ver se tinha partido alguma coisa. Como não estava nada partido disse logo ‘está bom’ (risos). Até com o braço partido tinha ido, não sei se ganhava mas ia. Nós corríamos no meio dos carros, mas era o que havia. Fiz várias provas em que a circulação automóvel não era cortada, mas também não havia tanto trânsito como há hoje em dia. Mais. A radial de Benfica até Monsanto tinha uma parte muito larga com um passeio, que em frente ao Estádio da Luz teria uns 15 metros. O condutor era um candidato à presidência do Sporting, Lobato Faria, que quis abandonar rapidamente o local pois estava atrasado para ir para o aeroporto. Ficou tudo sanado e ainda o livrei de apanhar uns chapadões (risos). São coincidências tremendas... também ia focado a fazer um treino de 15km o mais rápido possível. Então, ia mesmo em cima da estrada por o piso ser mais liso. Tive azar mas, ao mesmo tempo, acabei por ter sorte e tudo correu na perfeição.
R - Após 40 anos do ouro em Los Angeles, o Carlos Lopes continua a ser reconhecido na rua? O que é que as pessoas lhe dizem?
CL – Se não fosse reconhecido não estava aqui a entrevistar-me (risos). É um sentimento de enorme felicidade. As pessoas agradecem-me por tudo aquilo que fiz pelo desporto português. Acredito que várias pessoas tenham começado a correr devido à minha inspiração. Sei que abri as portas e as janelas a muita gente. Outras dinâmicas, outras capacidades e outros apoios para criar infraestruturas.
Prova já conquistou os amantes da corrida e disputa-se no dia 14 de dezembro
Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla recebeu, esta quarta-feira, um cheque donativo das mãos de Sérgio Krithinas e Manuel Paula
Prova juntou mais de 10 mil pessoas em Lisboa
Vencedor masculino fez novo recorde na prova com 29m11s
Fayza Lamari revela curiosas histórias sobre o craque francês e os seus ídolos
No processo que acabou por redundar no empréstimo de Kolo Muani ao Tottenham
Interrogatório do Hungria-Portugal
Ex-Sporting retira-se aos 32 anos